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Em Roma, diante da arte e dos monumentos, Goethe percebeu o que normalmente era percebido, sobretudo pelos letrados: “Aqui existiu, existe e existirá o grande”. A diferença entre ele e os outros é que Goethe se estende em explicações sobre o tipo de percepção que consegue articular passado, presente e futuro, chamando-a de “convicção sensorial-ultra-sensorial”: “... não experimentamos o sen- timento de tristeza ao passarmos ao lado das ruínas, antes fomos to- mados de alegria diante da ideia de que tanta coisa foi conservada, tanta coisa foi restaurada de modo ainda mais pomposo e grandioso do que existiu outrora”.199 Em resumo: o espaço tem tempo — conclusão

que, de acordo com Bakhtin, começava a se fazer presente não só nos relatos de viagem, mas também no modo pelo qual a sensibilidade do iluminismo passava a inluenciar a escrita da arte e da ciência. Na Roma de Goethe, a escrita entrava no tempo, como nunca antes havia entrado: “Quando contemplamos uma tal existência de mais de dois mil anos, [...] se torna difícil para o observador acompanhar uma Roma seguindo-se à outra, e não apenas a nova à antiga, mas as diversas épocas de uma e outra sucedendo-se”.200

O texto de Goethe, portanto, poderia ser assinado por Gustavo Barroso. Ambos temporalizam o espaço em termos semelhantes, apesar da distância entre o século XVIII e o XX. Sendo assim, a análise de Bakhtin sobre Goethe poderia ser aplicada, sem diiculdades, ao pen- samento de Gustavo Barroso: “A capacidade de ver o tempo, de ler o tempo no todo espacial do mundo e, por outro lado, de perceber o preenchimento do espaço não como um fundo imóvel e um dado aca- bado de uma vez por todas, mas como um todo em formação, como acontecimento...”.201

199 GOETHE, Johann Wolfgang von. Viagem à Itália, 1786-1788. Apud BAKHTIN, Mikhail. Estéica

da criação verbal. São Paulo: Marins Fontes, 2010, p. 243.

200 GOETHE, Johann Wolfgang von. Viagem à Itália, 1786-1788. Apud BAKHTIN, Mikhail. Estéica

da criação verbal..., p. 243.

Mas, se outras partes do diário de Goethe são examinadas, a se- melhança se dissolve. Bakhtin destaca, por exemplo, a aversão aos que cultivavam o gosto pelas ruínas. Em certa ocasião, quando um guia começou a contar-lhe sobre batalhas que haviam ocorrido por onde estavam andando, a reação foi imediata: censurou de modo incisivo qualquer tipo de evocação dos “fantasmas desaparecidos”.202 Era exa-

tamente em busca desses ausentes que Gustavo Barroso alimentava o seu “culto da saudade”.

Para Goethe, a pátina do tempo não deveria nem poderia ser cri- tério de valor. Aquilo que não pertencia à obra “em si” não deveria ser levado em conta. Atributos vinculados à sacralização ou algum mistério sobrenatural não faziam parte da sua ideia de arte. Atributos postiços poderiam impressionar animais e não seres humanos, como se percebe em uma parte de seu diário de viagem em que ele descreve uma repro- dução trazida de Roma, com a qual ele desenvolvia o seu culto ao belo, baseado na análise meticulosa e avessa aos motivos “ocultos”:

Tenho já comigo uma bela reprodução, mas a mágica do már- more se foi. A nobre semitransparência da pedra amarelecida, aproximando-se da cor da pele, desapareceu. O gesso, em vez disso, conserva sempre o aspecto do calcário e parece morto. E, no entanto, que alegria dá ir até um gesseiro, ver as porções magníicas das estátuas nascendo uma a uma da fôrma e poder, assim contemplar as iguras sob aspectos inteiramente novos. Divisa-se ali então, lado a lado, o que em Roma se encontra es- palhado por toda parte, e isso é de inestimável valia para uma comparação. Não pude me conter e adquiri a colossal cabeça de um Júpiter. Ela se encontra agora em frente à minha cama, bem iluminada, a im de que eu possa de pronto dirigir a ela minha primeira oração matutina, além do que, tem toda a sua grandeza e dignidade, ela ensejou ainda a mais divertida historiazinha. Nossa senhoria tem por hábito vir pé ante pé fazer a cama, seguida de seu conhecido gato. Sentado no salão, eu ouvia a mulher lá

202 GOETHE, Johann Wolfgang von. “Viagem à Itália, 1786-1788”. Apud BAKHTIN, Mikhail. Estéi-

dentro, cuidando de seus afazeres. De repente, com muita pressa e ímpeto, o que não lhe é habitual, ela abre a porta e me chama, di- zendo-me que vá correndo ver um milagre. Perguntada de que se tratava, responde que o gato estava orando para o Deus Pai. Por certo, já notara que aquele gato tinha um espírito cristão, disse- -me, mas aquilo era, de fato, um grande milagre. Fui correndo ver com meus próprios olhos e, de fato, a cena era prodigiosa. O busto repousa sobre um alto pedestal e o corpo interrompe-se bastante abaixo do peito, de modo que a cabeça se ergue lá no alto. Pois bem, o gato havia subido na mesa, colocado as patas sobre o peito do deus e, esticando-se todo, conseguia alcançar com o focinho a barba sagrada, a qual lambia com grande carinho, não se deixando incomodar nem um pouco quer pelas interjeições da senhoria, quer pela minha chegada. Não privei a boa mulher de sua admi- ração, mas expliquei a mim mesmo aquele estranho fervor felino pelo fato de esse animal de olfato apurado ter, provavelmente, sentido o cheiro da gordura que se transferira da fôrma para as reentrâncias da barba e ali se alojara.203

A dúvida e a dívida

No livro Teoria da restauração, publicado em 1963, Cesare Brandi explica que “os defensores da limpeza a fundo começam com uma crítica ao conceito de pátina: acusam-na de ser um conceito romântico”. Haveria, assim, “a inclinação romântica pelos sentimentalismos, ruínas, mistério, luz do crepúsculo e assim por diante”. Mas, ao contrário do que possa inicialmente parecer, Brandi não vai defender a preservação da pátina detendo-se em considerações sobre o romantismo. Sua estratégia consiste em fazer um recuo cronológico para, assim, provar que não se deve sim- plesmente ignorar ou desvalorizar a existência da pátina — “mesmo que tenha sido promovida de forma artiicial e exagerada na época român- tica, não foi uma invenção romântica”. A seguir, a prova — o Vocabolario Toscano Dell’Arte del Disegno, publicado em 1681, “quando nem mesmo

203 GOETHE, Johann Wolfgang von. Viagem à Itália, 1786-1788. São Paulo: Companhia das Letras,

os historiadores mais confucionistas poderiam falar de romanticismo”, ressalta, já que se vivia “em plena época barroca”. É que o autor do dicio- nário, F. Baldinucci, deinia a Patena (pátina) de modo positivo, retirando a primazia dos românticos: “Verbete usado por Pintores, que a chamam, outrossim, pele, e é aquele universal escurecimento que o tempo faz apa- recer sobre as pinturas, que, mesmo, algumas vezes as favorece”.204

O encadeamento do raciocínio mostra que não é viável provar a necessidade de preservação da pátina com argumentos do romantismo. O romântico emerge no discurso como algo negativo, que não serve para legitimar o saber, porque não chega nem a ser conhecimento, mas apenas um artifício sentimental. Mais adiante, isso ica ainda mais in- cisivo: “... o conceito de pátina, longe de se coninar em uma fabulação romântica, se foi reinando em um conceito que tem a intenção de res- peitar as razões de arte e da história...”. Em termos de Michel Foucault, um encadeamento epistemológico: a evolução da técnica de restau- ração foi se “reinando”, e, na segunda metade do século XX, veio a síntese dos opostos, um patamar superior. Aperfeiçoando-se, a ciência dos restauradores passou a reconhecer que a pátina “é instrumento pre- cioso para designar, seja a passagem do tempo sobre a pintura, que pôde muito bem ter sido prevista pelo artista, seja aquele novo equi- líbrio em que as matérias da pintura acabam por acomodar-se através do enfraquecimento de uma crueza originária”. Sendo assim, a limpeza deveria lidar com essas variantes. Não poderia sacralizar o objeto, mas transformá-lo em objeto de estudo.205

Por um lado, pode-se pensar que o autor não se sente à vontade para sacar do romantismo a legitimidade para promover o reconheci- mento da restauração como campo de saber cientíico e, portanto, “pro- issional”. Por outro lado, o indício da desqualiicação de um saber sem o qual o prestígio da pátina não teria sido tão cultuado: a história ro- mântica. A desqualiicação opera uma mudança na roupagem: o tempo romântico é chamado de tempo cientíico. A questão é que o valor de

204 BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. São Paulo: Ateliê, 2004, p. 154. 205 BRANDI, Cesare. Teoria da restauração..., p. 173.

antiguidade não vem do método cientíico, e sim da erudição antiquária, sobre a qual os românticos vão alimentar o gosto pelo passado.

Um exemplo hipotético, calcado na teoria do “tipo ideal” (Weber): um historiador cientíico não vai incluir na sua narrativa con- siderações sobre o pó dos arquivos ou a pátina dos monumentos. Para ele, a quantidade de tempo dos vestígios não se reverte em qualidade temporal. No “tipo ideal” do historiador romântico, a marca do tempo é fundamental, porque a diferença entre passado e presente deve ser vivida pelo corpo. Só assim, a imagem do passado pode ganhar a vi- talidade a ser transmitida aos leitores. Michelet, obviamente, é o ápice dessa maneira de conectar o presente com o passado, tanto na prática quanto na teoria.

“Nenhum desses grandes atores da revolução me deixou frio” — escreve Michelet ao se demorar em considerações sobre a sua pesquisa em arquivos raros e, mais do que isso, “raramente visitados”. Aí, na superfície manuscrita, era preciso identiicar as senhas que abriam as fronteiras que cercavam o passado. O método de trabalho acionava o olho, mas antes de tudo o dedo. Para ser mais tocante, o documento precisava ser tocado. Era com o contato da pele que os papéis reagiam: “Eu jamais os tocava sem que certa coisa deles saísse, despertasse...”. Acabado era o pretérito, e não o vestígio: “... tudo isso não está tão morto quanto parece”. Mas, nessa transiguração calculada e metódica, havia algo sem o qual o olho e o dedo não funcionariam bem — o nariz: “A poeira do tempo permanece. É bom respirá-la, ir e vir através desses papéis, desses dossiês, desses registros.” 206

Daí o tempo. Ou melhor: aí o tempo. “A história é tempo” — ad- verte Michelet.207 Se é tempo, não é possível confundir o passado com

o presente. A alma que a poeira ajuda a aparecer não é propriamente o passado. Pelo contrário, porque não se trata de transportar o passado para o presente e sim respirar vestígios, como parte de um árduo tra-

206 MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa: da queda da Basilha à festa da Federação.

São Paulo: Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1989, p. 31.

balho que consiste em dar ao arquivo algo que nenhum arquivo jamais terá: uma narrativa. Não há historiador sem arquivo, mas um arquivo não faz um historiador. O historiador se faz no estilo. Daí é que vem a legitimidade da história e não da abundância de documentos citados, ou da proliferação de notas explicativas: “O que dá autoridade ao relato é a sua sequência, sua coesão, mais do que a multidão das pequenas curio- sidades bibliográicas”.208 Ao ser narrada, a vida reaparece em sua pe-

culiaridade — “... o próprio da ciência é especiicar...”.209 Ressuscitar

os mortos signiica tirá-los da generalidade pelo poder da imagem dis- cursiva. O pó seria, então, o complemento alimentar do historiador. Assim, o vestígio limpo perderia algo. Com a poeira, os vivos farejam melhor os mortos, e a própria morte.

“Se constituíssemos um guardião dos túmulos, como um tutor e protetor dos mortos?” — indaga Michelet, referindo-se ao adminis- trador dos bens dos falecidos, que ele viu em Camões. “Sim”, argu- menta Michelet, “cada morto deixa um pequeno bem, sua memória, e pede que cuidemos dele. Para quem não tem amigos, é preciso que o magistrado cumpra essa função. Pois a lei, a justiça, é mais irme que nossas ternuras passageiras, nossas lágrimas logo secas”. Se “essa ma- gistratura é a história”, não é difícil concluir que “os mortos são, para falar como o direito romano, essas miserabiles personae com as quais o magistrado deve se preocupar”. Para concluir, Michelet confessa que, no decorrer da sua carreira, jamais perdeu de vista “esse dever do his- toriador”: “A muitos mortos esquecidos dei a assistência que eu mesmo sinto necessitar”.210

A dúvida metódica da erudição foi, assim, acolhida pela dívida apaixonada dos românticos. Gustavo Barroso, nesse sentido, é her- deiro de Michelet. Assim como Michelet, Gustavo Barroso farejou, na pátina do passado, um apelo narrativo. Sua dúvida, obstinada pela identiicação de acervos e acontecimentos antigos, atrelava-se ao

208 MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa..., p. 30. 209 MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa..., p. 292.

210 MICHELET, Jules. História do século XIX, t. II: O diretório, prefácio, p. II (1872). Apud Barthes,

reconhecimento de um débito que ele chamava de saudade. Mas os seus livros e as suas ações no MHN não vinham para, simplesmente, pagar a dívida, e sim para fazê-la perpétua, como uma espécie de falta que não deve ser preenchida e sim reverenciada. No inal das contas, ele era um criador de faltas, tanto na icção quanto na história: dava tempo aos mortos, na medida em que lhes dava força a partir da au- sência sentida pelos vivos. Não é o caso, propriamente, de um apetite pelo passado. Não se trata, apenas, de condenar essa metáfora já tão desgastada pelo uso recorrente. Para não fugir desses termos, pode-se dizer, aliás, que se trata de algo mais grave: ele se alimentava para ter mais fome.