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“Tudo parece não ter mais a menor utilidade...” — observa Gustavo Barroso. Objetos anônimos para sempre, e quase sempre ava- riados: “Móveis estragados ou fora de moda, ferramentas enferrujadas

ou tortas, livros sebentos e comidos de bichos, telas sem moldura e molduras sem telas, panelas e caçarolas amolgadas...”.

Um verdadeiro mundo à parte, cujo inventário parece impos- sível. Impossibilidade que, certamente, torna esse acervo sem im ainda mais fascinante: “... velhos uniformes e condecorações, mo- edas antigas e bilhetes de banco recolhidos, caixas de selos do cor- reio usados, vasilhas, pregos, parafusos, torneiras, malas, caixotes, brinquedos, louças...”. Além disso, é possível encontrar um “grampo de cabelo retorcido”, um “quadro rasgado”, ou ainda um “armário de portas empenadas”.

Nada de heróis ou testemunhos de fatos notáveis, mas, aos ou- vidos de Gustavo Barroso, tudo isso era curioso e fascinante. Cada coisa com as suas marcas, ou melhor, com as marcas que o tempo havia feito e deixado: “Vale a pena perder algumas horas, ou ganhá- -las, conforme a opinião, visitando essa instituição curiosíssima”. Trata-se do comércio informal de coisas usadas, que ele costumava visitar no decorrer das viagens. No caso, o registro refere-se mais es- peciicamente à Madri. Em Madri, além da arte e da história, Gustavo Barroso se empolga com a feira dos anônimos: “Dou minha palavra de que é um dos lugares mais interessantes da bela capital espanhola”.172

Mas como conciliar a sensibilidade que aí se mostra com a admi- nistração de um museu? O seu gosto pela poeira e pelo desgaste era evi- dente, mas isso entrava em choque frontal com o que se tornava senso comum no trabalho dos conservadores (que, no Brasil, passariam a ser chamados de museólogos). Como criador e diretor do Museu Histórico Nacional, Gustavo Barroso dava o tom de quase tudo: do acervo cole- tado ao acervo exibido. E, em 1932, seu comando passou a ser maior, com a abertura do “Curso de Museus”. Tornou-se criador e diretor do primeiro curso de museologia do país e seu mais destacado professor.

O seu domínio, porém, não parou por aí. Na década seguinte, ele mesmo passaria a ser o autor do livro da sua disciplina: Introdução às Técnicas de Museus, manual em dois volumes, cuja primeira edição

foi de 1945, e cujo sucesso só seria contestado com as ondas da cha- mada “nova museologia”, em ins da década de 1970. Sobre a “pátina do tempo”, o manual estaria, então, em contraponto com o relato de viagem? Gustavo Barroso defendeu que a conservação deveria, antes de tudo, ser preventiva: “toda higiene é preferível aos remédios”. Quanto à restauração, o manual acentuava os cuidados com o uso dos materiais da mesma época das peças a serem recuperadas e, inclusive, destaca que o ideal era “o emprego de ferramentas do passado”. Até aí, tudo em sintonia com a higiene antipoeira, mas, na página seguinte, ele co- meçou a dar indícios de outra percepção, especiicamente ao defender a preservação da pátina, que ele chama de “assinatura do tempo”: “Em certas peças, às vezes, no entanto, por exceção, se pode tornar o res- tauro invisível. Nas pinturas sobretudo”.

O “restauro invisível”, entretanto, não é bem delimitado. E essa delimitação não era algo menor: desde o século XVIII, vinha gerando acalorados debates, como se nota, por exemplo, a partir de uma obser- vação que Goethe fez sobre a coleção de pinturas do seu pai, cujas es- colhas quase sempre recaíam na compra de quadros novos. Não porque fossem necessariamente melhores, mas pelo seu repúdio ao “mau gosto” dos que valorizavam as obras somente a partir de certo escurecimento provocado pelo tempo — “cor mais castanha e mais sombria”.173 Tudo

indica que a restauração, segundo Gustavo Barroso, deveria preservar a “grosseria” que Goethe aprendeu, desde cedo, a identiicar.

“Mas, em geral, naquilo que esteja fundamente impregnado do caráter duma época ou de várias épocas isso absolutamente não convém”. Isso signiica que, tirando as pinturas, o tempo deve ser cla- ramente exposto. A pátina é apagada, mas não totalmente, e as lacunas podem ser preenchidas com reposições, desde que sejam nitidamente explicitadas. Nada de imitar o tempo. Nada de misturar o novo com o velho. A restauração deve-se tornar “percebível”. Assim, o restaurador faz aparecer um “testemunho de profundo amor à peça restaurada”, prova do cuidado pela “conservação e solidez” do artefato. Respeita a

“sua antiguidade” e “seu cunho artístico ou histórico”. Além disso, ou por causa disso, o proissional evidencia “a modéstia e a probidade do trabalho efetuado”.

“Nos monumentos sobretudo, sua forma deinitiva, atual, levou séculos a se constituir”.174 Há, então uma parada arbitrária no presente.

Doravante, os “séculos” jamais terão espaço para continuar a fazer o que outrora faziam: produzir pátinas e desgastes. Ao “conservador”, caberá a tarefa de dizer que os “séculos” já estão acumulados. Qualquer intervenção terá seu norte a priori.

O afeto pelo passado convocava a preservação de certas manchas que se acumularam na superfície dos objetos. Inclusive as manchas de poeira? Sim e não. Não, porque ele mesmo esclarece, em seu manual, que “é preciso não confundir pátina com sujeira”.175 Sim, porque o li-

mite entre uma coisa e a outra depende, e muito, do valor que se dá às interferências ocorridas no período entre a criação da peça e a sua con- dição de monumento a ser restaurado. Até onde se deve limpar é uma questão que não pode ser separada da “confusão” por ele condenada.

Um problema prático: como e o que limpar, como e até onde insistir na limpeza. Na pedra ao ar livre, o sujo não era problema. No objeto recolhido ao museu é que a questão tornava-se ambígua: estava em jogo a produtividade do tempo. O tempo se apropriava das coisas de um modo peculiar: por meio da sujeira. A assinatura do tempo se fazia com rasuras, numa caligraia borrada e milimetricamente aleatória (era difícil reproduzir o caminho do lodo ou das rachaduras). Ao tempo, agradava a cobertura de dejetos: esses excrementos que vinham não se sabe bem de onde. Assim como os animas marcavam o território com os odores do corpo, o tempo se apossava das coisas, com invasões perenes e pacientes, injetando na matéria todo e qualquer tipo de sujeira. Objeto limpo era objeto com perda de tempo, ou pior, perda da aura, cujo poder o torna único, no meio dos outros. A força do tempo para se apropriar

174 BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus. 2. ed. Rio de Janeiro: Gráica Olímpica,

1951, p. 87.

dos artefatos era proporcional ao desgaste e ao acúmulo das impurezas, que ia dando cores e estrias especíicas. Pode-se dizer que, nesse sen- tido, o passado polui. Poluição que o faz ser “antigo”.

Como destaca Michel Serres, a poluição permite a posse. A pro- priedade que o ser humano impõe sobre o mundo se dá pela poluição que o corpo pode derramar na superfície das coisas. A saliva ou o suor, por exemplo, afastam os estranhos do ninho e, exatamente por isso, estabelecem propriedades e deinem proprietários. Os luidos estabe- lecem posses e afastam invasores.176 A poluição constitutiva de qual-

quer vestígio o faz possuído pelo tempo. Tempo necessariamente linear. Se não fosse linear, o tempo do vestígio seria uma poluição de outra natureza, incapaz de gerar períodos a partir de marcos e divisórias entre passado e presente.

O vestígio é, então, uma dádiva do tempo. Mas, o tempo que dá, também tira. É por isso que Gustavo Barroso alarmava, no inal da década de 1920, que era urgente defender Ouro Preto dos “insultos do tempo”, e curar as “feridas do abandono”.177 Assim, a avaliação

fundamentava-se numa divisão do trabalho do tempo. De um lado, o tempo positivo que, na corrosão ou no acúmulo de poeira, acrescenta pátina e as avariações aceitáveis. Do outro lado, o tempo negativo, que insulta e fere, que arranca pedaços e daniica. O limite entre uma coisa e outra não era preciso: dependia daquilo que Gustavo Barroso elegia como signiicativo — procedimento que, por exemplo, poderia classi- icar determinada ruína no âmbito da positividade.

Assim como ocorria no MHN, em Ouro Preto, Gustavo Barroso viu-se obrigado a decidir sobre essa fronteira quando tomou para si a tarefa de coordenar alguns trabalhos de restauração. Lá, ele não aceitou as ruínas (como as aceitava e as apreciava em certos lugares da Europa). O método foi recompor imitando matérias e procedimento de época, de modo a preservar o cheiro e as rugas da cidade. Ele explica que, diferente

176 SERRES, Michel. O mal limpo: poluir para se apropriar? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011 p. 9-50. 177 BARROSO, Gustavo. A cidade sagrada (Correio da Manhã, 03/11/1928). In: Documentário

da ação do Museu Histórico nacional na Defesa do Patrimônio Tradicional do Brasil. Anais do

de muitos outros lugares, como Guimarães ou a “Nurembégia”, havia lá uma memória peculiar: “Ouro Preto me atrai e me fascina, porque ali não é somente o passado que sinto, palpo e respiro, porém, o passado de minha terra, o passado de minha raça e o passado de minha língua”.178