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“Pela primeira vez”, escreve Primo Levi, “nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a ani- quilação de um homem. Num instante, por intuição quase profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo”. O fundo, onde “mais baixo não é possível”, não dizia respeito a algo interior. Essa “condição humana mais miserável”, para surpresa do leitor, não tinha a ver com uma ofensa moral, ou um desrespeito no âmbito religioso, por exemplo.

Trata-se não de uma ofensa ao sujeito, mas aos objetos do sujeito: a sua roupa, o seu sapato. Os prisioneiros perdem algo fora do corpo. Algo que, ao ser perdido, passa a ser percebido como pedaço da carne. É como o cabelo, que parece acessório, mas não é. Os nazistas sa- biam disso e izeram disso um componente da tortura nos campos de concentração: “Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos.” Em seu esforço para ser melhor entendido pelo leitor, Primo Levi faz comparações com experiências fora do campo: “... que cada um relita sobre o signiicado que se encerra mesmo em nossos pequenos hábitos de todos os dias, em todos esses objetos nossos, que até o mendigo mais humilde possui: um lenço, uma velha carta, a foto- graia de um ser amado”. Conclusão: “Essas coisas fazem parte de nós, são algo como os órgãos de nosso corpo”.165

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“Meu primeiro impulso”, escreve Paulo Mendes Campos, “era tocar do apartamento aquele homem corpulento, de voz gorda, o ini- migo que me expulsava de casa. Mas iquei irme; eu mesmo pedira seus serviços”. A crônica trata do transporte dos móveis de sua casa para outra e deixa entrever essa “potência soberana do objeto”. O que antes parecia tranquilo se desestabiliza. É claro que aí se tem a experiência de invasão do território antes privado e, mais do que isso, privativo, numa espécie de apego que remete aos conectores do sujeito ao objeto, por motivos variados e, obviamente, vinculados à experiência do indi- víduo moderno, cada vez mais afeita a certas delimitações do espaço e do tempo. Mas, além disso, ou subjacente a isso, as experiências tanto de Primo Levi quanto de Paulo Mendes Campos. Especiicamente em relação ao tempo, a crônica mostra-se sensível a certos códigos que se dão a ver somente em situações nas quais os artefatos são deslocados. O que não tinha tempo passa a ter:

Examinou as peças, cheirou os móveis com um nariz expe- riente, fez o preço. Pegou o telefone, deu instruções à compa- nhia, acrescentando com meio desprezo: “O que tem mais aqui é livro”.

Em meia hora os bárbaros chegavam.

As coisas estavam acomodadas em sua velhice e discretamente compunham um lar; mas, reviradas, empilhadas, foi como se as desnudassem brutalmente para mostrar os ridículos estragos do tempo. Era chocante.

Quando agarraram o armário, ele quis correr e perdeu a compos- tura; tinha um pé torto, coitado. Da gravura do Cristo de Chagall caiu uma chuva de pó.166

E a angústia continua. Aliás, aumenta. O problema é óbvio: os carregadores estavam mexendo em um território marcado — um prin- cípio ancestral e animal. O que mais doía, entretanto, era sentir, ali no calor da hora, que o espaço estava abarrotado de tempo (a poeira embutida não deixava a menor dúvida sobre isso). A posse do tempo tinha vindo devagar, paciente, imperceptível: “Aquela cômoda estava tão suja, e não sabíamos”. Mas icaram sabendo, de repente. O que ali estava se perdendo não era um móvel. Ainal o objeto iria para outro espaço, mas em outro espaço o tempo já não seria o mesmo. Não que o objeto fosse icar novo, mas a situação seria nova, com novas camadas de pó e desgaste.

“Viver, ilosofei, é colecionar ruínas. Os carregadores não tinham ilosoia, eram os coveiros proissionais de um certo espaço meu, de um certo tempo meu”. A ilosoia, ao invés de acabar com a angústia, dava-lhe mais força, na medida em que ajudava a transformar a poeira em vestígio, atribuindo-lhe sentido de melancolia e desespero. O que mais revoltava era a agilidade das mãos, sem distinguir uma coisa de outra: “Não amavam aquele vaso tarde de maio em Minas depois de ter chovido um pouco (quanta pretensão nos prende ao que é nosso), como

166 CAMPOS, Paulo Mendes. Quatro histórias de ladrão e outras crônicas. Rio de Janeiro: Agir,

não sentiam antipatia (e as aversões criam também alianças) da bandeja que nos deram de presente”.

“Às vezes paravam na faina, exibiam uma bugiganga e pergun- tavam com violência para mim: ‘Isto vai?’.” Ia tudo, decidiu inicial- mente. Logo depois, o desdobrar da resposta aos carregadores, não pela voz, mas em seu pensamento: “Vai tudo ou não vai nada”. A pergunta sobre o que escolher era fatal e, na trama da narrativa, assume o sen- tido de engate para um desfecho que, ao invés de responder, pergunta como é possível separar o sujeito do seu objeto. Para reagir ao amor exagerado aos pertences, vinha “uma vontade de atear fogo naqueles objetos que me submetiam a um modesto passado e me forçavam ao compromisso de um modesto futuro”. Mas, pensando nisso, como o cronista poderia saber o limite entre ele e as coisas? — “Atear fogo em mim. De que adianta mudar, se carrego comigo as minhas coisas e a Coisa? Se carrego a mim mesmo? Eu – o traste mais gasto e manchado de minha vida”.167

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Do campo de concentração à mudança de endereço, de Primo Levi a Paulo Mendes Campos. De uma escrita a outra, o objeto apa- rece entranhado no sujeito — tentativas para diminuir a soberania do “eu” suiciente. As experiências textuais do século XX, nesse sentido, revoltaram-se contra a soberania autocentrada do sujeito. Pelas mais variadas conigurações, a matéria será reabilitada, com a ajuda, ou não, da sensibilidade romântica. No caso de Gustavo Barroso, o trajeto é peculiar. O par humano/inumano não é o seu ponto de partida. A sua compreensão a respeito do valor dos objetos articula-se com sua afeição pelos animais:

À tarde, damos uma fugida até a venda do Teodureto. O grande Judas de lor ao peito já está içado na forca e começa a pegar

fogo. Toda a gente larga os divertimentos a que se entrega no terreiro da bodega para assistir à execução do traidor. O maior desses divertimentos é o jogo do pato que me causa horror. En- terra-se no chão um pato, que ica somente com a cabeça fora da terra. Vários sujeitos pagam quinhentos réis de entrada e, de olhos vendados, armados com um pau, completamente desnorte- ados, vão para lá e para cá batendo com aquele pau. O que acertar a cabeça do pato e o matar ganha, além do pato morto, cinco mil réis. Ainda estou vendo aqueles homens grosseiros do baixo povo, estivadores, carregadores, marinheiros, embarca- diços, vagabundos, dando pancadas de cego que faziam a assis- tência morrer de riso e, no meio daquele movimento e daquele bruá, a cabeça do pobre pato, com os seus olhos muito redondos, mal se podendo mover e como que mostrando o horror daquela morte que estava instintivamente adivinhando. A expressão da- quele animal, talvez mais criada na minha imaginação do que real, continua gravada na minha retentiva.

Eu tinha horror àquele jogo. Criado entre moças e mulheres, pe- netra muito fundo na minha alma a natural piedade dos espíritos femininos. Eu não suportava ver o sofrimento. Nunca pude mal- tratar um bicho. Quando os moleques amarravam latas ao rabo dos cães vadios ou das cabras à solta, fazia os esforços possíveis para apanhá-los e libertá-los da judiação. Essa piedade se es- tendia até às cousas inanimadas. Não compreendia que se pu- sesse fora um objeto que houvesse servido à casa muito tempo. Entendia que aquele servidor inanimado merecia uma aposenta- doria silenciosa a um canto, entre as cousas velhas que se i- navam na companhia das baratas e das teias de aranha.

Aos quatro anos de idade, iz uma manha dos diabos por causa de um velho uru das compras. As nossas compras eram feitas no Mer- cado todas as manhãs pela negra Teresa, antiga escrava de minha avó, que se conservava iel à família. Trazia num uru de palha de carnaúba, a tiracolo, as verduras e os legumes comprados, despe- java-os sobre uma velhíssima mesa na copa e fazia as contas com minha tia Iaiá, que era a ecônoma da casa. Depois, pendurava o uru de um prego na porta que abria da porta para a cozinha. A toalha estava lustrosa pelo uso e pela gordura das mãos que o manuse- avam. Parecia envernizada. As chamas do imenso fogão de alve- naria nela se reletiam, oscilantes com relexos sanguíneos. Todos os dias. Desde quando andava de gatinhas, via aquilo.

Numa manhã de chuva, ao voltar dum passeio com minha tia Nenen, deparo o uru da Teresa, como chamava aquele cesto in- dígena, esiapado, abandonado no meio da rua, sob a chuvinha miúda que chorava a sua desgraça. Tinha largado a alça e não podia mais servir. Parei com as lágrimas a me espocarem dos olhos e inquiri minha tia:

— Este é o uru das compras lá de casa, não é? Ela adivinhou a tragédia e quis negar. Eu despejei o Niágara de tal modo que teve de consentir que trouxesse o velho uru e o escondesse de- baixo duma mala, num dos quartos de depósito. Ali ele se acabou dignamente dentro de sua casa e não na via pública.

Imagine-se como não icava quando via o pobre pato naquela triste situação! Que vontade de soltá-lo e que revolta surda por não compreender que aquela gente achasse prazer em tanta mal- vadez. Eu não conhecia os homens. Hoje sei do que são capazes. Por dinheiro fazem com outros homens o que aquele poviléu rude fazia com o pato. E são às vezes inteligentes, educados su- pericialmente e mesmo um tanto cultos.168

Uma narrativa das origens, comum em livros de memória e congêneres. Também comum é a declaração de amor aos animais (aos objetos nem tanto). O incomum é o conector entre os dois amores. Animais e objetos apresentam-se como se fossem duas paralelas que se encontraram em algum lugar do passado, e permanecem se encon- trando, numa espécie de acordo não declarado. Animais e objetos na mesma direção, eternamente pares e paralelos, juntos no tempo e sepa- rados pelo espaço. O paralelismo, entretanto, não é uma particularidade desse livro. A ideia se faz presente em vários outros escritos, tanto de icção quanto de relexões sobre história, como é o caso das considera- ções que ele faz no livro Inteligência das coisas, a respeito dos “heróis do passado” que eram animais, como gatos, cachorros e cavalos, inclu- sive com participações decisivas e tão memoráveis quanto os atos de heroísmo dos humanos. Citando casos e mais casos, numa listagem que percorre séculos e continentes, um dos capítulos termina, por exemplo,

com a seguinte relexão: “Como na sociedade dos bichos não há elogios mútuos nem igrejinhas literárias, estou que, quando um deles alcança nomeada, em verdade a mereceu. Daí se poder francamente airmar que os animais são célebres com muito mais justiça do que os homens”.169

O mutismo dos objetos, portanto, não é rompido apenas pela evocação da memória de quem a cultiva devidamente, mas também pela própria potência da materialidade em sua irredutível diferença entre sujeito e objeto e na eterna semelhança entre objeto e animal. Assim, Gustavo Barroso vai endossando alguns contratos com o ro- mantismo e também fazendo pactos com outras tradições, que, pelo menos até agora, não foram nomeadas pela epistemologia da história do pensamento, da história da arte, da ciência ou algo congênere. Sua concepção da “fala” proveniente dos animais e das coisas não se reduz a uma ideia romântica. Poder-se-ia convocar o termo mitologia para alargar a questão, abrindo-se o desaio de identiicar traços de uma an- tiguidade que se recria a partir de certas historicidades. Ou, do mesmo modo, não seria razoável esquecer a imensa inluência que certos li- vros como o Lunário Perpétuo — criadores e criaturas de um mundo não-cientíico (pelo menos na acepção da ciência moderna), mas que, a partir de certas circunstâncias, interagem com a ciência (moderna) tornando-a, ao mesmo tempo, amiga e inimiga, tese e antítese, prova e contraprova, limite e eternidade. Convergência de tantos ios, a escrita de Gustavo Barroso não fará um tecido inédito ou nunca antes visto. Isso, obviamente, se não se leva em conta a delimitação da categoria “autor”. Considerada a autoria, é claro que o correto será airmar que ele fez a trama ao seu modo (inclusive lutando para ser reconhecido como escritor original, em conformidade com a circulação das legitimi- dades do “criador” que se fundamenta na noção de “gênio”).

Se a escrita da memória articula-se com o culto da saudade, é o sentimento da perda que alimenta a narrativa. A escrita assim estabe- lecida é agonizante e redentora, devedora do passado e crente na in- solvência da dívida, mas coniante no rito de permanente reatualização

da herança e, por isso mesmo, conclusiva sobre o perigo real de se viver como deserdado. O registro vive à beira do precipício, na corda bamba, sem porto seguro. Seu lamento é hino patriótico e réquiem me- lancólico, dá presença aos ausentes e faz dessa presença um ritual de celebração do tempo, atribuindo-lhe uma existência mais perceptível e menos caótica.

Só a idade traz a perda. Mais tempo, mais espaço para a saudade — a equação é quase regra. Ainal, a idade da perda vem tarde. Mas, na vida de Gustavo Barroso, veio cedo (em analogia, é claro, com escri- tores mais ou menos da sua geração). Seu primeiro livro Terra de sol já vem marcado pelo sentimento de um escritor que, morando no Rio, vê-se distante do Ceará — a geograia transmuta-se em história, quer dizer, a distância no espaço vira distância temporal. Pelas medidas da topograia, ele é seduzido e reduzido pela cronologia.

O espaço se dispõe na espreita, disponível e alerta para injetar, no sentido do tempo, a idade da perda. E o tempo não ica atrás, dando o troco, humilhando-se, revoltando-se, mas nunca na indiferença. A dis- puta não se dá entre dois querelantes, mas na própria razão de existir do tempo e do espaço. O tempo da saudade e o espaço da saudade fazem o tempo ser tratável pelo espaço e o espaço ter tempo. Tudo isso no plano da linearidade. Se a saudade é alimentada pelo vestígio, o vestígio ali- menta a saudade na medida em que sua concretude se faz na linearidade do tempo. Ainal, a signiicância do vestígio “requer a síntese entre a impressão deixada aqui e agora e o acontecimento terminado”.170