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Memória da viagem, viagem da memória

No Brasil, a atenção que a história e áreas ains dão aos viajantes ou às expedições cientíicas dos séculos XVIII e XIX já gerou um signi- icativo número de estudos.55 O mesmo não se pode dizer sobre o século

XX. E a razão para essa pouca quantidade de trabalhos de interpretação não está certamente na diminuição do número de relatos de viagem.56

A lista, ainal, não é pequena. Entre as décadas de 1920 e 1950, os lei-

54 BARROSO, Gustavo. Seca e Meca..., p. 58.

55 Especiicamente a respeito da conexão entre a viagem e os usos do passado, Karl von Marius

e Varnhagen receberam análises especíicas e signiicaivas: CÉSAR, Temístocles. O oício do historiador no século XIX. Notas sobre o caso Varnhagen. In: SEBRIAN, Raphael Nunes Nicolet- i (Org.). Leituras do passado. Campinas: Pontes Editores, 2009, p. 9-34. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História e natureza em von Marius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação. História, ciência e saúde. Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, jul./out. 2000.

56 Tudo indica que o único relato de viagem que tem merecido a análise “acadêmica” é o livro

de Mário de Andrade Turista Aprendiz. Cito os dois livros que me parecem mais signiicaivos: CARNICEL, Amarildo. O fotógrafo Mário de Andrade. São Paulo: Unicamp, 1993; NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. Por um inventário dos senidos: Mário de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário. São Paulo: Hucitec, 2005.

tores não passavam muito tempo sem mais um relato. Além de Gustavo Barroso, José Lins e Graciliano, outros autores. Uns já consagrados, outros que nunca iriam ser, e ainda aqueles que eram e deixaram de ser (ou que não eram, mas se tornaram). Desde Oswaldo Orico57 até Jorge

Amado.58 De Afrânio Peixoto59 a Gilberto Freyre.60 Isso, considerando-

-se apenas os deslocamentos para fora do país. Relatos de viagens na- cionais (não cientíicas) vão de autores como Nery Camelo61 e Gilberto

de Alencar62 até Câmara Cascudo63 e Mário de Andrade.64 Sem entrar

em detalhes sobre a especiicidade de cada um, importa destacar que esse conjunto heteróclito de escritores pode trazer indícios sobre o modo pelo qual a poeira e a ruína vão servindo de componente básico na elaboração de narrativas sobre a temporalidade da cultura material: da pátina ao desgaste, do desgaste à desintegração.

É claro que, nesses casos citados, não se trata das viagens “cien- tíicas”, “ilosóicas” ou de “grand tour”, realizadas pelas elites letradas entre os séculos XVIII e XIX. Objetivos, métodos, teorias, estilos, tudo isso será diferente na escrita aqui enfocada. Mas, diante dessa diferença entre séculos e da própria particularidade de cada autor que escreve no século XX, há traços comuns: as operações de temporalização do espaço. A preocupação com identiicações e medidas do tempo a partir da leitura de pormenores será uma constante e tem desdobramentos va- riados, desde o “culto da saudade” de Gustavo Barroso no século XX até o desaio, no século XIX, de von Martius, no sentido de dar um passado ao Brasil levando em conta a natureza (já que aqui não havia

57 ORICO, Osvaldo. À sombra dos Jerônimos: diário de viagem ao Portugal de oito séculos. Lis-

boa: Imp. Portugal-Brasil, 1941.

58 AMADO, Jorge. O mundo da paz: União Soviéica e democracias populares. Rio de Janeiro:

Editorial Vitória, 1952.

59 PEIXOTO, Afrânio. Viagem senimental. Rio de Janeiro: Americana, 1931.

60 FREYRE, Gilberto. Aventura e roina: sugestões de uma viagem à procura das constantes por-

tuguesas de caráter e ação. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. (1. ed.: 1953)

61 CAMELLO, Nery. Atravez dos sertões. Rio de Janeiro: A Noite, 1939.

62 ALENCAR, Gilberto de. Cidade do sonho e da melancolia (impressões de Ouro Preto). Juiz de

Fora: Tipograia Brasil, 1926.

63 CASCUDO, Câmara. Viajando o sertão. 4. ed. São Paulo: Global, 2009. (1. ed.: 1934) 64 ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. 2. ed. São Paulo: Duas cidades, 1983.

ruínas nem documentação escrita) e as línguas indígenas (já que não havia documentação escrita).65

Na viagem, e na escrita posterior, o viajante percebe melhor a saliência do tempo que se faz no espaço. É por isso que, para Bakhtin, a primeira grande narrativa da temporalidade moderna não é um romance, e sim um relato: Viagem à Itália (1786-1788), escrito por Goethe. No deslocamento espacial, Goethe foi sistematizando algo que se tornaria comum: ver o tempo através do espaço, dando-lhe não somente uma história, mas também lhe atribuindo historicidade. Não é que, antes, não houvesse relatos sobre o que aconteceu em certo lugar. Isso havia, obviamente. O que não existia era a operação que faz do espaço algo que, em si, só se deine no tempo. Goethe, nessa perspectiva, produz o primeiro relato sistemático do tempo moderno: não mais somente o que acontece sobre um espaço, mas o que ocorre com o espaço no decorrer do tempo. Não é que ele gostasse de ruínas. Ao contrário, Goethe via na veneração desses restos uma espécie de fanatismo. Seu regime de tem- poralidade funcionava na observação da interação entre humanidade e natureza: como as paisagens ganham formas na medida em que vão se formando e, o mais importante, vão deixando indícios dessa histori- cidade intrínseca, e visível aos detentores de uma observação direta e mediada por procedimentos racionalmente comprovados.66

O gosto de observar o tempo pode ser considerado como o traço comum entre todos esses viajantes do século XX. Nenhum deles asse- melha-se aos viajantes do século XIX, mas guardam certa contiguidade nas operações de temporalização do espaço e especialmente com aqueles que, no século XVIII, empreendiam o percurso do “grand tour”. Se, ao inal do século XVIII, o “grand tour” era realizado principalmente por ilhos da aristocracia, como forma de distração e de reinamento do saber, no século seguinte, os burgueses prósperos começaram a ter na viagem dessa natureza uma forma de distinção social. A Inglaterra, pelo seu enri-

65 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História e natureza em von Marius: esquadrinhando o

Brasil para construir a nação. História, ciência e saúde, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, jul./out. 2000.

66 BAKHTIN, Mikhail. O tempo e o espaço nas obras de Goethe. In: ______. Estéica da criação

quecimento, foi o país onde o “grand tour” fez mais sucesso, como se per- cebe, por exemplo, na criação, em 1743 da Society of Dilettannti, “fun- dada por um grupo de gentlemen que havia viajado em um tour à Itália” e tinha como missão promover a pesquisa e a publicação sobre os vestígios das grandes civilizações do passado. Para conseguir prestígio, não bas- tava viajar, era preciso publicar o relato de viagem, que geralmente “pro- curava referir-se a passagens históricas e a textos da literatura clássica para estabelecer relações com o que era visto no ato da viagem”.67

No Brasil do século XX, Ouro Preto parece ter sido a “nossa Roma”,68 gerando os relatos pioneiros de “descobridores”, como

Gilberto de Alencar, Gustavo Barroso69 e o grupo dos “modernistas”70

(que fez a antológica viagem para mostrar a arte brasileira ao poeta Blaise Cendrars). Como se sabe, Gustavo Barroso não terá sucesso em manter a liderança sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais, setor que ele mesmo criou na estrutura administrativa do Museu Histórico. Perderá a batalha pelo controle do Sphan, que passará a ter o comando de Rodrigo de Mello Franco. Não constituirá exagero airmar que uma das lutas entre ele e os “modernistas” será em torno da pátina, ou me- lhor, das marcas do tempo. Sua vitória (para continuar a usar termos bé- licos) circunscreveu-se ao território onde ele conseguiu entrincheirar- -se de modo seguro: o Museu Histórico Nacional.71 Nesse sentido,

sobressai a relação entre espaço e tempo: descobrir o tempo antigo do Brasil em viagens ao interior de Minas, como se o passado fosse mais real diante das pedras desgastadas. Daí a luta de Gustavo Barroso para

67 SALGUEIRO, Valéria. Grand Tour: uma contribuição à história do viajar por prazer e por amor

à cultura. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, 2002, p. 301.

68 BITTENCOURT, José Neves. Ouro Preto, nossa Roma. Aniquários e tradições numa trajetória

de preservação. Oicina do Inconidência: Revista de trabalho, Ouro Preto, v. 5, n. 4, p. 123- 138, dez. 2007.

69 MAGALHÃES, Aline Montenegro. Imagens e vesígios da Cidade Sagrada. Ouro Preto na cole-

ção do Museu Histórico Nacional. Oicina do Inconidência: Revista de trabalho. Ouro Preto, v. 5, n. 4, p. 139-160, dez. 2007.

70 AMARAL, Aracy A. Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas. São Paulo: Marins, 1970. 71 MAGALHÃES, Aline Montenegro. Ouro Preto entre Anigos e Modernos: a disputa em torno

do patrimônio histórico e Arísico Nacional durante as décadas de 1930 e 1940. Anais do

mostrar que, na verdade, ele foi o primeiro a descobrir o valor de Ouro Preto para o país. A disputa pelos usos do passado estava diretamente atrelada, nesse caso, a uma disputa pelo gerenciamento do poder em cargos da administração pública.

No geral, não se tratava de viajar para descobrir terras diferentes, inéditas no relato escrito, mas de exercitar a escrita e mostrar ao leitor que o autor tem sensibilidade para destacar detalhes signiicativos que ninguém havia percebido ou que alguém percebera de modo superi- cial ou inadequado. Uns a respeito de costumes ou características das populações, como Nery Camello. Outros com mais interesse sobre lin- guagens e artes populares, como Câmara Cascudo e Mário de Andrade. Entre esses viajantes brasileiros no século XX, Gustavo Barroso não chega a ser “original”, mas há, obviamente, características que o di- ferenciam. A diferença mais saliente é o compromisso do seu texto com o “culto da saudade” diante da matéria vislumbrada. A voracidade do olhar extrapola, e muito, os conselhos que ele mesmo dava no seu Introdução à Técnica de Museus, no sentido de identiicar as peças com poucas palavras e, mais do que isso, palavras precisas.72 No Museu

Histórico Nacional, a saudade o fez comandante de inventários enxutos e diretos, como se vê no catálogo que ele organizou em 1924 e nas le- gendas das exposições. Nas viagens, por outro lado, a mesma saudade lhe deu uma escrita romântica e loreada, prolongada por uma narrativa detalhista e povoada com imagens já desgastadas, como a luz da lua sombreando castelos enegrecidos pelo tempo ou a melancolia solitária no silêncio das ruínas. Na sua literatura de viagem, a saudade gerou o que não poderia ser gerado no espaço museológico: elogios a pátinas seculares, divagações sobre ruínas e o fascínio diante do tempo que mata e ressuscita o espaço.

Palmilhando castelos, ele escreverá em torno da pátina sublime, como se quisesse superar Victor Hugo. Gerenciando o Museu Histórico Nacional, seu procedimento será ambíguo: entre a preservação do “ene-

72 BARROSO, Gustavo. Como se cataloga um museu. In: _____. Introdução à técnica de museus.

grecido” como marca do tempo e a limpeza que passava a ser exigência museológica e sanitária, a solução era retirar certas marcas do tempo, subtraindo do artefato parte da sacralidade que permitia o seu tão vene- rado “culto da saudade”.73

Gilberto Freyre, também fascinado pela pátina, mais especiica- mente com o antigo “verde” da arquitetura de Recife, não se cansará de se opor aos “arquitetos sanitaristas”, como se vê em vários artigos da década de 1910 e 1920, que ele depois reuniria para formar o livro Tempo de aprendiz.74 Indício de mais uma tensão, não apenas entre pro-

postas de usos do passado, mas, em sentido mais alargado, também entre os usos do passado e as políticas de higiene.

Gustavo Barroso manipulava sua “operação historiográica” a partir de certas especiicidades, tentando, inclusive, superar a lacuna e a crise instauradas pelo tempo da história moderna em sua separação irrevogável entre passado e presente e, sobretudo, na sua escrita de rito e mito para lidar com a morte, dando-lhe o devido epitáio.75 Isso pode

ser dito, é claro, se são postos como vocabulário possível os termos cunhados por Michel de Certeau, mas, se forem convocadas de palavras de Mikhail Bakhtin, pode-se imaginar que o “cronotopo” de Gustavo Barroso seguia mais ou menos a curvatura dos românticos.76

Se, como destaca Hartog, as viagens de Ulisses exigiam a “prova ocular”,77 portanto, uma “prova espacial”, o deslocamento geográico

como condição de possibilidade para determinados conhecimentos vai

73 BARROSO, Gustavo. Como se fazem restaurações. In: _____. Introdução à técnica de museus.

2. ed. Rio de Janeiro: Gráica Olímpica, 1951, p. 83-97.

74 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz: arigos publicados em jornais na adolescência e na pri-

meira mocidade do autor: 1918-1926. São Paulo: IBRASA; Brasília: INL, 1979.

75 “A história moderna ocidental começa efeivamente com a diferenciação entre o presente e

o passado. Desta maneira se disingue também da tradição (religiosa) da qual, entretanto, não conseguirá jamais separar-se totalmente, mantendo com esta arqueologia uma relação de dívida e de rejeição”. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 14.

76 BAKHTIN, Mikhail. Formas de tempo e de cronotopo no romance: ensaios de poéica histórica.

In: _____. Questões de literatura e de estéica: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 211-362.

77 HARTOG, François. Memória de Ulisses: narraivas sobre a fronteira na Grécia Aniga. Belo

ter novas conigurações na (e pela) racionalidade moderna, valorizando como jamais se haviam valorizado as “provas temporais”. Daí é que se pode pôr em cena a potência de ideia de cronotopo. Se o cronotopo se põe na qualidade de problema a ser investigado, a investigação parte exatamente das variadas dependências que o tempo tem do espaço. Localizá-las em suas historicidades signiicará, portanto, pensar como os usos do passado atrelam-se aos usos dos deslocamentos no espaço.

Na “operação historiográica” de Gustavo Barroso emergem “cronotopos” de um viajante/museólogo (quando a museologia tentava estabelecer-se, no Brasil, como campo disciplinar autônomo, que poste- riormente passou a tratar Gustavo Barroso como um dos “precursores”). Seu espaço, ressaltado na cultura material capturada no texto, continha as marcas do tempo que ele reverenciava, para além dos limites patrió- ticos, já que o alcance do seu olhar, em certas ocasiões, não se submetia à fronteira nacional e migrava para uma noção mais abrangente, que hoje poderia ser chamada de “patrimônio da humanidade”. Sua me- mória de viagem alimentava o “culto da saudade” exercitado na criação e na manutenção do Museu Histórico Nacional, mas ganhava limites submetidos a compromissos administrativos, vinculados ao gerencia- mento da conservação e da restauração do acervo. Assim, misturava princípios que, no século XIX, estavam em oposição quase sempre acir- rada: a sensibilidade antiquária e o nacionalismo. Daí a complexidade do seu discurso expositivo no percurso museológico que procurava dar conta do passado do Brasil: fragmentos de uma sensibilidade mais ou menos articulados numa narrativa romântica.