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Saudade: críica e critério

Na primeira página, a dedicatória é emblemática: “À Terra Natal, um ilho ausente”. É ausente do Ceará que Alencar escreve Iracema. Não poderia ser de outro modo, porque a matéria-prima do romance é a saudade. Não qualquer saudade, mas aquela que só um ilho sabe sentir. Além disso, ou subjacente a isso, o escritor deixa claro que é ilho da cultura (porque sabe ter saudade) e da natureza (porque a saudade é

148 CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das maravilhas: através do espelho e o que Alice

da terra). Seu livro, também sendo ilho da cultura, conta exatamente como essa natureza indômita passou a ter história, a partir do encontro entre o branco Martim e a índia Iracema. Se a história do Ceará começa na natureza, é da natureza que se deve tirar a memória.

Iracema dá o mapa da mina. Há uma cartograia da memória: roteiro de indicações para o cearense lembrar onde o Ceará guarda seu passado. O inal do romance é eloquente e fornece a senha. “O camucim que recebeu o corpo de Iracema”, escreve Alencar, “foi enterrado ao pé do coqueiro”.149

Envolvida e envolvente, a carne passa a fazer parte da terra e da água: “E foi assim que um dia veio a chamar-se Ceará o rio onde cresceu o coqueiro, e os campos onde serpejam o rio”.150 A cova da índia é, na verdade, o útero

do Ceará — que os cearenses se lembrem disso. Na natureza, exatamente nela, havia os vestígios do vínculo entre o morador e a morada. Não havia ruínas, nem poderia haver. As pedras que existissem seriam materiais ar- queológicos: machados e outros instrumentos, a mostrar a antiguidade do homem na América. E o escritor não conseguiu inseri-los numa trama tal como ele desejava (enredo convincente e, antes de tudo, comovente).

Guardadas as proporções devidas e cabíveis, o primeiro livro de Gustavo Barroso, Terra de sol (1912), segue os passos de Iracema: trata-se, também, da escrita de um “ilho ausente”. “Natureza e cos- tumes do norte” é o subtítulo, bem ao gosto de uma literatura que co- meçava a fazer sucesso. Embora imitando Euclides de Cunha, há um “quê” de Alencar, sobretudo nessa pose de escritor que, ausente, deixa transparecer a saudade da terra natal, tornando-a razão de livros e lite- raturas. Jornalista recém-chegado ao Rio, Gustavo Barroso encontra no mote “mostrar o Brasil aos brasileiros” uma forma fazer o seu nome. Daí Terra de Sol. Assim como Alencar, Gustavo Barroso procura fun- damento na natureza e na saudade. Diferente de Alencar, mistura pre- tensões de análise sociológica da “raça” com aquilo que ele trouxe na memória. Sobre isso, vale a pena citar o modo pelo qual ele inicia as suas considerações sobre o papel dos cachorros:

149 ALENCAR, José de. Iracema. Fortaleza: Edições UFC, 1985, p. 168. 150 ALENCAR, José de. Iracema..., p. 168.

O cão sertanejo desconhece o agrado. Nunca lhe izeram uma carícia. Põem-no fora de casa para que não furte alguma cousa e não encha os quartos de pulgas. Ademais, ele tem originalidades: gosta de se enroscar dentro dos caçuás, de repimpar-se sobre os montões de arreios e mantas, de dormir confortavelmente alo- jado nas liteiras de viagem. Tratam-no quase sempre às chico- tadas e quando o aborrecem dizem que está danado, dão-lhe in- fusões de ervas venenosas a beber ou matam-no às pauladas. Precisando de seu auxílio, assobiam-lhe: e ele vai, muito alegre, satisfeito, balançando a cauda.

Jamais se nega; nunca se recusa. Vai à caça e só lhe dão do pro- duto ossos roídos e limpos que trinca com furor. Persegue os porcos da vizinhança, que se vêm chafurdar nas cacimbas do gado, toldando a água. Pega ao nariz os ásperos novilhos; mete boiadas no curral. Nada recebe em paga. Não se revolta. Não se furta sequer às tarefas. Seu olhar manso e veludoso só lampeja ao avistar os animais daninhos e trapaceiros.

É humilde, obediente, triste e desconiado. Desconiado é ao ex- tremo. Sua vida quase selvagem, o descaso com que é tratado deram-lhe essa feição ao caráter.

Quando os sertanejos comem sentados ao chão, sobre rude couro de boi, segue a comida com a vista, desde que deixa o prato atufando a tosca colher de estanho, até se sumir nas man- díbulas; e todas as contrações da deglutição. Se um pouco de farinha espalha-se pelo chão, lambe-o até arrancar o derradeiro carocinho. A mim, que muita vez comi sentado em duro couro um pouco de ovelha cozida com pirão, parecia ter o seu olhar a força dos raios-X a varar-me os tecidos, acompanhando famin- tamente o descer do alimento pelo esôfago até o estômago... Ficava penalizado. Atirava-lhe um pouco. Devorava. Mais con- iante, com os olhos tristes, lacrimosos, pedia mais. Adivinhava uma compaixão na minha generosidade: daí o pedido. Dava. Quase sempre, um sertanejo intervinha:

— “Ora, seu moço, deixe esse preguiça. O mato tá cheio de bicho. Em vez de ir caçar tá aqui acerando a janta!” E levan- tando o braço: “Vai-te embora, cachorro!”151

151 BARROSO, Gustavo. Terra de sol (natureza e costumes do norte). 6. ed. Fortaleza: Imprensa

No inal das contas, ele mesmo se transforma em objeto da pes- quisa: “Tive um cão elegante e astuto, cor de borra de vinho, manchado de branco, inimigo terrível de porcos e raposas. Ao menor aceno, ao mais pequeno gesto, isgava qualquer animal. Chamava-se Vampa”. O fato é que um dia Barroso atravessava uma várzea, e Vampa o seguia. De longe, Barroso avistou um porco ruivo e, sem pensar, açulou o ca- chorro: — “Isca! Pega!”.

O cão de um salto ferrou os dentes no suíno gordo e pesado. Os dois rolaram numa nuvem de pó. Fisgado ao pescoço, o porco quase sem fôlego guinchava de dor. Foi quando me lembrei que estava fora das terras da fazenda e, temendo que o porco icasse bastante maltratado, gritei ao cão que o largasse e viesse a mim. Mas o animal no ardor da luta não me atendeu. Peguei de uma vergôntea de cipó e dei-lhe umas quatro pancadas se- guras e rijas. Humilhado e triste, soltou o barrão e acompa- nhou-me à casa, desconiado, à distância. E desde esse dia nunca mais coniou em mim. Eu saía, chamava-o, e ele que- dava no alpendre a olhar, a fazer festas com o rabo, porém nunca mais me acompanhou.152

Terra de sol é um livro que descreve tipos humanos e animais, da natureza e do Além. É topográico, cartográico, etnográico e afeito à taxonomia em geral. Mas o que justiica a sua demora em certos as- suntos não tem nada a ver com isso. É que o autor faz questão de mos- trar que o seu critério vem da saudade. Comovido, ele diz que aqueles animais jamais lhe saíram da lembrança: “[...] sentados tristemente sobre as patas traseiras, ‘acerando a janta’ ou vendo o vaqueiro esfolar uma rês, com aquele olhar ito e imoto a traduzir todo um mundo de cobiça, todas as angústias cruéis de uma grande fome, toda a sua pa- ciente resignação!”.153

152 BARROSO, Gustavo. Terra de sol..., p. 73. 153 BARROSO, Gustavo. Terra de sol..., p. 67.

Se a saudade era o seu “norte”,154 se ela estava dentro e fora

da “Casa do Brasil”155 que ele criou no Museu Histórico Nacional, se

essa saudade era a sua maneira de “viver e pensar a história”,156 cabe

perguntar como ele se fez saudoso, como ele se gerou para si e, na me- dida em que se gerava, fazia-se participante (e querelante) do mundo letrado, acionando um variado circuito de dispositivos, ora mais dispo- nível, ora menos acessível, mas sempre circulando e recebendo remo- delagens e reconigurações.

Para ele, o culto da lembrança seria o mote e a peleja, da escrita e da museologia. A saudade não é qualquer memória, mas aquela que faz o memorioso sentir falta da coisa lembrada, mesmo sem nunca tê-la visto. A história, aliás, teria que se unir à literatura e aos museus exa- tamente para fazer a ponte com esse passado que, mesmo sem fazer parte do campo de visão, torna-se visível pela imaginação controlada na pesquisa. Essa memória, assim carente, ele a chamou de saudade. A saudade teria tanto destaque que ela, na carência cumulativa e sedutora, tornar-se-ia inseparável da sua escrita, tanto na icção quanto no museu; ora partícipe da narrativa, ora objeto de relexão.

“A saudade é a maior testemunha da verdade”, conclui Gustavo Barroso ao fazer uma nota para apresentar o primeiro volume dos seus três livros de memória, publicado em 1939. Trata-se de um aforismo am- bíguo, e, nessa ambiguidade, é possível localizar um dispositivo que ele foi burilando para compor as suas maneiras de usar o passado. Antes de aliar a saudade com a verdade, ele tece o seguinte argumento: “como a distância azula as serranias e as uniformiza, fazendo desaparecer an- tractos e despenhadeiros, é possível que a saudade também azuleça ho-

154 MOREIRA, Afonsina Maria Augusto. No Norte da saudade: esquecimento e memória em Gus-

tavo Barroso. 2006. 292 f. Tese (Doutorado em História) – Poniícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

155 MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da Saudade na Casa do Brasil. Gustavo Barroso e o

Museu Histórico Nacional (1922-1959). Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006.

156 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. As sombras do tempo: a saudade como maneira

de viver e pensar o tempo e a história. In: ERTZOGUE, Marina Haizenreder; PARENTE, Temis Gomes (Org.). História e sensibilidade. Brasília: Paralelo 15, 2006, p. 117-140.

mens e cousas na distância do tempo”. Fica claro, portanto, que o azul do tempo não se confunde com a mentira. Se não é mentira, por que seria verdade? A resposta vem no início da nota: “Neste livro somente conto a verdade. Os arranjos e atavios literários envolvem-na para diminuir-lhe a intensidade ou para torná-la mais acessível”. Mas o que isso quer dizer?

“Os atavios literários” — eis a senha, que pode ser melhor deco- diicada se essa nota for posta ao lado de outra. Reiro-me à que se en- contra em seu último livro, Mississipi. Um romance que, em princípio, repete aquilo que já foi visto nos três livros de memórias: fatos, pessoas e cenários de Fortaleza entre o inal do XIX e o início do XX. Há inclu- sive o mesmo lamento fundante em torno de uma cidade que não volta mais, porque foi pondo abaixo tudo que havia, em nome das novidades e do progresso. A “advertência”, na primeira página, explica que os per- sonagens saíram da “vida real”: “As pessoas que se julgarem por este ou aquele motivo retratadas nas páginas deste livro não se devem sentir ofendidas, porque, se isto se deu, é que enterraram uma carapuça até as orelhas”. Assim, vê-se a mesma promessa de verdade. Uma verdade tão real que poderá ofender quem tentou encobri-la.

Depois do depoimento, uma icção sobre o depoimento. Por quê? Obviamente não é o caso de especular sobre razões íntimas, mas per- ceber que a sua insatisfação relaciona-se de modo íntimo com a sua crença no poder da icção. É claro que, em matéria de fatos, ele é ri- gorosamente dependente da história cientíica do século XIX. Mas sua dependência vinha ainda da literatura, que, também no século XIX, não cansava de soltar farpas para arranhar as pretensões da história, como já foi visto aqui a partir de Victor Hugo e José de Alencar. Gustavo Barroso, aliás, repetiria o mesmo argumento que fazia a delícia dos romancistas diante da escrita da história e dos historiadores: “O roman- cista, do ponto de vista da crítica social, está acima do historiador pelos simples fato de ser mais livre”.157 “Sou historiador ao meu modo” —

não foi à toa que José de Alencar ironizava com a suposta superioridade de quem se dizia capaz de dizer a verdade sobre o passado.

A saudade como fundamento da verdade tem mais a ver com a essa realidade literária reivindicada pelos romancistas do que com a re- alidade histórica pregada pela pesquisa cientíica. Melhor dizendo, a sua saudade enraizava-se no culto da “literatura histórica”, um híbrido que vai do “romance histórico” à narrativa de “episódios históricos” (tudo, é claro, com base em fontes coniáveis, mas com a costura do verossímil). Seu investimento na área não foi de pouca monta. E, para não alongar muito o argumento que tento compor, partirei de um caso que parece em- blemático: O livro dos enforcados, cuja nota de abertura também merece atenção especial: “À memória do BARÃO DE STUDART, meu amigo, eminente historiador da minha terra, e à do Desembargador PAULINO NOGUEIRA, que proicientemente coligiu os documentos históricos sobre os enforcados do Ceará”.

Em certo sentido, O livro dos enforcados não apresenta nada de novo, apenas reproduz a mesma sequência de fatos já descritos por Paulino Nogueira. Isso, numa perspectiva que confunde o fato com a re- alidade. Para quem entende que o fato depende, também, da narrativa, O livro dos enforcados traz um “fato” novo: a trama, no seu poder de en- volver e desenvolver ações, reações, cenários, costumes, cotidiano. É que Gustavo Barroso encontrou na pesquisa do conterrâneo a pedra bruta e se sentiu seduzido pelo exercício de formatá-la, a partir de algo que ele do- minava: a feitura do enredo. Ora, aí parece haver a ponta de um iceberg, o indício de algo completamente fundamental no critério de verdade: a trama literária. A saudade, para ele, deveria ser despertada pela lin- guagem. Não qualquer linguagem, mas exatamente aquela que, calçada em “documentos coniáveis”, tivesse a potência para captar o cotidiano polivalente dos acontecimentos, vivido por seres humanos limitados pelo tempo e pelo espaço. Daí os loreios e os devaneios no decorrer dos re- latos de viagem. Daí a missão da sua literatura: gerar saudade.

Na trama do romance Mississipi, Gustavo Barroso pode dizer, exa- tamente por ser literatura, aquilo que não pode ser dito em seu livro de me- mórias. É que o regime discursivo da icção permite o desenvolvimento de certas realidades que só a icção pode aceitar, como se vê, por exemplo, no trecho em que o personagem central percorre determinado percurso.

“Mississipi refez o caminho muitas vezes, no qual conhecia todos os dormentes do ramal ferroviário da praia, todas as pedras do enroca- mento do Maceió e todos os beiços de tijolo que sustinham a ladeira do Gasômetro”. Aí está o tempo da continuidade, o io que une o passado com o presente. Mas, no meio do cominho, Mississipi encontrou uma ruptura: “No lugar do velho teatro S. Luiz, encontrou andaimes e paredes novas. Varandon lhe anunciara o seu desaparecimento; mas ouvir dizer é uma coisa e outra é ver com os próprios olhos que a terra há de comer, se- gundo o dito popular”. Uma fratura no tempo, como se o passado que ele viu e viveu fosse abaixo junto com as paredes: “Apiedou-se do casarão demolido, recordando seu palco empoeirado e sem conforto, os cama- rotes de pilastras e balaústres de madeira, a plateia estreita e baixa, o gás de iluminação silvando nas gambiarras. Toda a gente fumando lá dentro! Se houvesse um incêndio, seria um vulcão. Não escapava um rato”.

Mas, pior do que a quebra é o remendo. Cindido, o tempo é cos- turado, mas não adianta muito, porque o tempo é como um corpo muti- lado: recebe uma prótese que jamais terá a vida perdida: “Indagou dum pedreiro que construção nova era aquela. O homem pediu-lhe um cigarro e só depois duma baforada respondeu: – São dois palacetes de moradia”. Na verdade, o implante novo não consertava o destruído, nem de- sejava consertar. O que estava em jogo não era a restauração da conti- nuidade perdida, e sim a instauração da diferença a ser encontrada: dife- renciar-se do passado para se assemelhar ao futuro: “O Cabeça d’Água atravessou a rua da Misericórdia para gozar a sombra do hospital. A meia-água, onde vivera e penara o Estevão Bode, achava-se ocupada por uma bodega. [...] Como em pouco tempo os aspectos mais familiares vão mudando em torno de nós!, ilosofou”. Se o futuro passou a ser assim tão operoso, a solução seria a saudade. Valorizá-la, transformá-la em de- núncia contra o desmonte que se faz na aceleração geral das coisas: “... pensou lá dentro da alma, a humanidade vive a catar, nas ruínas e nos en- tulhos dos séculos, os cacos do passado com saudade de si mesma...”.158

O critério da saudade como fundamento da verdade sustenta-se, então, na escrita literária provida de crítica ao progresso. Em suas pri- meiras ideias sistematizadas sobre a saudade como via de acesso ao passado, Gustavo Barroso deixa muito claro que o “culto da saudade” pressupõe críticas ao progresso e, ao mesmo tempo, elogios aos países que, exatamente pelo progresso civilizador, não esquecem o passado.

Montagens

Não é raro encontrar romances ou livros autobiográicos que des- crevem o objeto da lembrança circundando-o de comentários sobre as armadilhas do ato de lembrar, ora com o intuito de mostrar a verdade, ora para torná-la relativa. A depender do caso, essa é uma estratégia dos autores para compensar alguma “falta de reconhecimento”. É claro que a escrita de Gustavo Barroso tem componentes dessa maneira de se autopromover, à custa da exibição de feitos e de raciocínios ressentidos. Mas não é o caso aqui de desenvolver especulações sociológicas sobre a formação do campo intelectual a partir dessa chave de leitura que, apesar de simpliicadora e generalizante, não para de fazer sucesso.159

O que quero destacar é a memória produto — escrita com a qual Gustavo Barroso tentou fazer a espinha dorsal de sua autobiograia. Mesmo temporalizando o espaço, o tempo aí emerge praticamente pronto. O objeto mnemônico, apesar de esmiuçado, vem montado. Não se sabe, por exemplo, como um cesto velho se tornou objeto signiica- tivo para a sua vida. É como se fosse da essência do próprio artefato tornar-se algo digno de conservação. Cabe ao sujeito reconhecer o ob- jeto. Diante do objeto, o sujeito age e reage. A narrativa conta e ponto inal. A narrativa, nesse sentido, não precisa se explicar.

Sobre brinquedos, ele escreve que os abandonou somente aos 14 anos: “[...] porque criticam um menino tão grande, um ganjalão desse tamanho ainda brincando com bonecos!”. “Encerro-os em uma lata de

biscoitos”, lamenta Gustavo Barroso, “bem forradinhos de papel ino, e a encafuo no fundo do gavetão da cômoda da alcova de minha avó. Ficam ali como mortos durante longos anos. Vivem somente na minha saudade”. Ou seja: vivem mortos, por isso podem viver na saudade.

“Por duas vezes em que vou ao Ceará”, ele escreve, “visito-os, tiro-os um por um do seu esconderijo. [...] A longa ausência desapa- rece naquele momento como por encanto. Parece que foi ontem!”. Quer dizer: os brinquedos passam a existir porque inados, inados porque passam a ser saudade, saudade porque o presente, ao ser separado do passado, ica carente e, como se trata de uma carência sem im, a so- lução é sentir que o passado distante parece ter sido ontem.

Enim, brinquedos inados e, portanto, declaradamente porta- dores de ausência: “Acham que mudei bastante no aspecto. Estou mais alto, mais forte, barbado, sobretudo mais triste. Não insistem muito sobre essa mudança, porque estão pertinho de minha alma e sabem que ela não mudou para eles. De minha parte, não lhes noto mudança al- guma”. Como?

Seu Cabo conserva as mesmas bombachas garance e a mesma barbicha em ponta de veterano da Argélia. A espadinha do Pe- drinho continua a luzir encostada à sua túnica azul escura, como luz a mocidade de seu rosto esmaltado. A face metralhada do Joaquim nem melhorou nem piorou. O Galamarte mantém-se a apontar a caçadeira. A águia do capacete imperial do coronel não criou outra asa. O Nanantém conserva-se nu como quando foi enjeitado numa noite escura como breu. O pé do Guabiru está como sempre quebrado. A negrura do Abel é a mesma. As caras felinas do John e do Miguel riem como sempre riram. Cães, va- quinha, carneirinho, cabrita e cavalos, tudo no mesmo estado.

Finados, trazem um passado que parece não passar. Ultrapassam