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“Dezembro de 1978”, anota Philippe Lejeune, “ao lado de um autorretrato de Hogarth, há um outro retrato também pintado por ele que representa um de seus amigos”. Mas, a questão é que logo veio uma pergunta. O segundo quadro era mesmo a igura de um amigo de Hogarth ou mais um autorretrato? Era parecido com a lembrança que ele tinha de um outro autorretrato dele, visto provavelmente em Londres. A partir da comparação, Lejeune icou convencido de que esse segundo retrato era um autorretrato de Hogarth: “Só vi que estava er- rado ao consultar a etiqueta, mas iquei tão surpreso que me perguntei se não haveria um erro nela!”

“Tudo é uma questão de etiqueta”, ironiza Lejeune. Por outro lado, ele conclui, com um ar mais de vencido do que de convencido: “Se aquela tela não é um autorretrato, preciso mudar meu olhar”.233 No

desenvolvimento da relexão, ele se pergunta sobre a necessidade que alguns pintores tiveram quando identiicaram o “autorretrato” na própria tela e a razão pela qual esse costume desapareceu. “Em pouco tempo, in- felizmente, os pintores se distanciaram da clareza dos primeiros tempos, deixaram de pôr os nomes nos retratos. Por descrição? Para puriicar a pintura de toda e qualquer escrita?”.234 Não como conclusão, mas como

provocação, ele sugere que a necessidade de legenda relaciona-se com a memória, advertindo que essa necessidade relaciona-se com o esque- cimento a respeito do que é igurado. Ao se tornar esquecido, o rosto torna-se desconhecido e carente de identiicação.

Como era de se esperar, a referência mais incisiva sobre a escrita em museus não veio da museologia, e sim da literatura. Trata-se do artigo “Combating redundancy: writing texts for exhibitions”, publi- cado em 1994 por Margareta Ekarv. Envolvida com a edição de livros para adultos de pouca “literacia”, ela propôs um estilo especíico para

233 LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Ed. UFMG,

2008, p. 238.

a escrita em exposições: frases curtas e diretas.235 Na verdade, nada de

muito excepcional, sobretudo quando essas prescrições são postas em comparação com os manuais de propaganda e marketing ou com os li- vros didáticos. Por outro lado, Ekarv pode ser vista hoje como partícipe dos variados movimentos que, desde o inal do séc. XIX, procuraram fazer aproximações entre o museu e o visitante. De modo mais parti- cular, é possível circunscrevê-la em uma preocupação que, nas últimas décadas, transformou o termo “comunicação” em âncora conceitual para deinir o caráter educativo e democrático do espaço museoló- gico. Além do famoso caso do “Victoria and Albert Museum”, com seu “Interpretation Editor”, entre muitos outros, é bastante sintomático o título do primeiro congresso internacional organizado em Portugal pelo GAM (Grupo para a Acessibilidade em Museus): “Saber escrever para todos? A acessibilidade da comunicação escrita em museus”.236

De uma maneira geral, o que está em pauta é o empreendimento educativo com base na eiciência da comunicação. A partir de pes- quisas quantitativas, conclui-se que visitantes não leem textos longos. Conclusão facilmente adquirida a partir de uma observação informal, não somente em torno de placas de museus, mas ao redor das placas em espaços públicos.

Ora, não é difícil constatar a diminuição de tamanho dos textos publicitários no decorrer do século XX. O problema é que a peda- gogia não icou imune às investidas dos valores da sociedade de con- sumo e, nesse sentido, não é possível desvincular o investimento na “comunicação” da própria noção de tempo constituída nas relações de mercado. No campo da história, ou melhor, na área dos usos da memória, isso também pode ser notado na atual moda de biograias que são expelidas dos computadores de jornalistas. Tudo isso, enim, indica que vivemos novas maneiras de usar o passado, por meios que associam velocidade e prazer.

235 EKARV, M. “Combaing redundancy: wriing texts for exhibiions”. In: The educaional role of

the museum. Oxon: Routredge, 1999 [1994], p. 201-205.

236 MINEIRO, Clara. Mas as peças não falam por si?! A importância do texto nos museus. Lisboa:

A relação dos escritores com as exposições, airma Alberto Manguel, tem sido longa e fértil: “é difícil encontrar algum deles que não tenha, em algum momento, escrito sobre o que viu numa visita a um museu”.237 Como exemplo, ele cita trechos de Petrônio em Satyricon

e um escrito de Rilke para sua esposa em 1907. Dezenove séculos se- param esses dois autores, mostrando que, se, por um lado, a inferência de Manguel é frutífera, por outro, é um risco para os parâmetros da história social. Ainal, em um período tão longo, não se pode ignorar que mu- daram as noções de museu, escrita, literatura, autor e leitor. A proposta de Manguel, mesmo com a soisticação que lhe é peculiar, com a erudição e a sensibilidade dos seus escritos, coloca em cena a possibilidade de ana- cronismos. Obviamente, isso daria uma longa discussão, que não é o meu objetivo. Aqui, a citação da inferência de Manguel tem apenas o intuito de ressaltar o seguinte: mais comum e mais radical do que a presença de museus na literatura é a participação dos artefatos, dentro ou fora de ex- posições. E esse recurso não é despropositado, porque, nas tramas entre seres humanos, é impossível dispensar, por completo, as mediações dos objetos. Os objetos tornam-se signiicativos na literatura porque são in- separáveis das construções culturais, porque juntam e dividem seres hu- manos, porque habitam no âmago das relações sociais. São constituintes e construtores de acordos e conlitos historicamente engendrados. Mas, tal necessidade do narrar não é homogênea no decorrer do tempo.

Barthes, nessa direção, adverte que não se deve generalizar o sentido da cultura material nas operações literárias, pois é possível loca- lizar como os objetos passaram a ter um peso mais decisivo nas tramas da icção a partir dos romances de Balzac: “[...] teria podido Grandet ser avarento (literariamente falando) sem os seus tocos de velas, seus pe- daços de açúcar e seu cruciixo de ouro?”.238 Em certa medida, Michel

Serres pensa a mesma coisa. Em um livro de entrevistas, recentemente traduzido para o português, ele avalia que Balzac, ao contrário de Júlio

237 MANGUEL, Alberto. No bosque do espelho: ensaios sobre as palavras e o mundo. São Paulo:

Companhia das Letras, 2000, p. 157.

Verne, descrevia tapetes, quadros e tabaqueiras como se fosse um cole- cionador, com a gula de um “antiquário”.239

Não é meu intuito aprofundar esse debate sobre a presença dos objetos na literatura. Apenas desejo apresentar algumas situações nar- rativas nas quais a icção se pergunta a respeito das condições do ato de nomear os artefatos. É claro que as condições de possibilidade para a existência dessa relação não podem ser interpretadas como algo natural ou eterno. Ainal, há várias maneiras de compor pontes e abismos entre a materialidade das coisas e a materialidade da escrita. De qualquer modo, o fundamental é pensar que, nessas tensões, constituíram-se po- deres verbais diante das coisas, relações de dependência entre o mu- tismo dos utensílios e o falatório das letras. No decorrer do tempo, não foram poucos os convênios e as quebras de contrato, não foram curtos os jogos de concórdias e querelas.