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Dos Deveres: Tributação e Finalidade do Estado

Capítulo 3 – O Não-Confisco

I. Dos Deveres: Tributação e Finalidade do Estado

O direito de alguém implica em um dever de outro. Na linguagem dos modais, direito é uma permissão de fazer ou não fazer algo (exemplo: a liberdade de expressão); deveres são obrigações e proibições. (exemplo: obrigação de respeitar a liberdade alheia). A permissão concedida criará, ao menos, a obrigação de respeitá-la. Desta maneira, os direitos fundamentais quando prescritos, criam deveres para os não titulares. Essa relação é perceptível no próprio consequente normativo, onde, um sujeito ativo pratica uma ação contra um sujeito passivo. Um deles terá direito a uma prestação, o outro de prestá-la.

Ingo Sarlet fala na “(...) existência de deveres conexos ou correlatos (aos direitos) e deveres autônomos, cuja diferença reside justamente no fato de que os últimos não estão relacionados diretamente à conformação de nenhum direito subjetivo, ao passo que os primeiros tomam forma a partir do direito fundamental a que estão atrelados.”213 Vamos adaptar a explicação para nossos pressupostos: deveres conexos ou correlatos aos direitos são aqueles decorrentes de dispositivos normativos que expressamente descrevem um direito; um exemplo são os Direitos Fundamentais são que descrevem um dever implícito em um enunciado que fala de uma permissão, de um direito. Por outro lado, os dispositivos que textualmente impõe um ônus para alguém são os chamados deveres autônomos, que no momento de construção da norma, podemos identificar o sujeito que receberá a prestação; os tributos são um exemplo desses deveres autônomos.

Essa distinção está relacionada com o foco: se a preponderância que a fonte produtora da norma quer dar é ao direito, fará uma descrição de prerrogativas; se a relevância for maior para uma obrigação ou proibição, o dispositivo legal irá impor ações a serem praticadas.

Os direitos fundamentais são limitados tanto pelos próprios direitos quanto por obrigações. Devo respeitar a liberdade de expressão dos sujeitos; contenho qualquer impulso no sentido de impedir que alguém expresse algo. A obrigação de

       213 Idem, p. 228. 

pagar tributos limita minha propriedade, por ter que repassar aos cofres públicos dinheiro sob o qual não poderei – ao menos diretamente – decidir como será gasto.

Conforme vimos no final do capítulo anterior, os Direitos Fundamentais implicam em deveres para os Estados, seja a proibição de não interferir na esfera privada seja a obrigação de prestar certos serviços. Esses deveres implicam em prestação de certos tipos de serviços: as liberdades individuais necessitam de um aparelho de polícia que repreenda todas as interferências; para que os direitos políticos sejam exercidos, é preciso uma estrutura que viabilize a realização de eleições, por exemplo; e os direitos sociais exigem prestações de serviços capazes de concretizá-los, como uma rede de saúde.

Esses deveres têm em vista alcançar um objetivo. É o chamado fim do Estado. Uma classificação, colhida na Teoria Geral do Estado, distingue fins em subjetivos e objetivos. Esses são uma perspectiva histórica, de buscar saber qual papel essa instituição exerceu no tempo. Para os teóricos que se concentram nos fins subjetivos, as finalidades estatais variam de acordo com a sociedade. Cada Estado foi forjado em uma dinâmica histórica, levando a finalidade a se alterar com o passar do tempo.214 É um produto da evolução social, não uma criação conscientemente planejada, como defendem as teorias contratualistas.

Vamos nos ater aos fins estatais em uma perspectiva subjetiva. Ora, nosso objeto de estudo é o direito posto. Se quisermos conhecer os fins do Estado, deveremos olhar para a norma. Nessa linha, não teremos como dizer qual a função comum a todos eles; apenas qual a finalidade do Estado brasileiro.

Da observação feita no capítulo anterior sobre os direitos fundamentais, a nossa Constituição de República é de caráter social-democrático. Combinando com os incisos do art. 1ª e do art. 3ª, podemos concluir que o Estado brasileiro busca a preservação da democracia, garantindo um regime de liberdade econômico conciliado com a busca do bem-estar social.

Wagner Balera fala do princípio fundamental da promoção do bem de todos:

“(...), o cânon gravado no inciso IV do art. 3ª, da Constituição de 1988, pode ser considerado a síntese de todo o arcabouço pacientemente engendrado pelo direito

      

pátrio para que, afinal, o Brasil alcance o estágio social que corresponda ao lugar econômico que já ocupa no mundo.

Eis o objetivo fundamental daquele preceito: a promoção do bem de todos.”215

O dispositivo citado prescreve:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

A base democrática da nossa República não deixa dúvidas: a busca do bem- estar social deve pretender a inclusão de todos os sujeitos. O objetivo das políticas públicas é implementar ações que resultem em melhorias concretas da qualidade de vida da população. Wagner Balera alerta-nos o articulado nos incisos do art. 3º: estabelece dois objetivos, o de construir uma sociedade livre, justa e solidária e garantir o desenvolvimento nacional (incisos I e II). Isso se dará por meio de outro objetivo, a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III). Feito isto, terá se concretizado o bem de todos, grande fim do Estado, que deverá persegui-lo sem qualquer forma de discriminação (inciso IV):

“Tal itinerário exige que o desenvolvimento se faça mediante a erradicação da pobreza e da marginalização, com consequente redução das desigualdades sociais e regionais. Exige, mais ainda, que a justiça se manifeste com a eliminação de todas as formas de discriminação.”216

Os constituintes tinham uma perspectiva democrática para o Brasil. Mas não apenas uma ideia formal de democracia. Queriam resultados concretos, que reduzissem as desigualdades sociais. Para arcar com seus compromissos, o Estado deve angariar recursos entre a população. Cria-se, desta forma, o dever de pagar tributos.

A cobrança de tributos é uma limitação ao direito de propriedade. O contribuinte deve entregar ao Estado parte de seu patrimônio para que este cumpra seus deveres. Entre eles, implementar os direitos sociais e garantir a proteção dos direitos civis e políticos. Com isso, a tributação deixa de ser vista como mera limitação ao direito de propriedade; é forma de garanti-la:

“É difícil saber qual deve ser a forma apropriada de um sistema de direitos de propriedade e como ele deve ser moldado pela estrutura tributária; para tentar resolver essas questões, temos de resolver também certas questões relativas à liberdade

       215 BALERA, W. O princípio... cit., p. 989.  216 Idem, p. 992. 

individual, à obrigação dos cidadãos uns para com os outros e à responsabilidade pessoal e coletiva. Os direitos de propriedade não são o ponto de partida dessa

discussão, mas sua conclusão.”217

A propriedade não seria absoluta. Antes, é resultado de uma convenção, de uma evolução social que reconheceu tal direito. Para tanto, é preciso que o Estado garanta-o. Desvela-se uma vinculação entre direito de propriedade e tributação: é necessária certa subtração do patrimônio dos particulares para se estruturar um sistema de segurança que proteja esse mesmo patrimônio.218

Essa concepção assenta raízes no contratualismo, desenvolvida no período Iluminista. Um dos seus principais representantes, Jean-Jacques Rousseau, escreveu:

“(...) O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para que não haja engano a respeito dessas compensações, importa distinguir entre a liberdade natural, que tem por limites apenas as forças do indivíduo, e a liberdade civil, que é limitada pela vontade geral.”219

A metáfora do Contrato Social se adere à concepção de democracia: em nome de se garantir certos direitos do indivíduo, restringem-se. Jamais, porém, deverá ser algo arbitrário. As limitações aos direitos fundamentais, já assentamos, devem ocorrer para a promoção de outros direitos.

Entra em jogo a proibição de utilizar tributos com efeitos confiscatórios (art. 150, inciso IV, da CF). Nem a necessidade de promoção do bem-estar social, nem a proteção da propriedade privada, autorizam ao Estado subtrair esta da esfera de domínio do contribuinte. Estamos diante de uma colisão de direitos fundamentais: a propriedade, como direito de o indivíduo usufruí-la como liberdade, e o dever do Estado de implementar os direitos sociais e proteger a própria propriedade privada.

O equilíbrio entre esses dois pólos tem como fiel da balança a proibição ao confisco, verdadeiro limite à aniquilação do direito de propriedade e, como será melhor exposto, em consequência, de direitos ao mínimo vital e à liberdade de profissão e atividade econômica.

      

217  MRUOHY,  Liam.  e  NAGEL,  Thomas.  O  mito  da  propriedade.  Trad.:  Marcelo  Brandão  Cipolla.  São  Paulo: 

Martins Fontes, 2005, pp. 13‐4. (grifo nosso) 

218  “(...)  a  propriedade  privada  é  uma  convenção  jurídica  definida  em  parte  pelo  sistema  tributário;  logo,  o 

sistema tributário não pode ser avaliado segundo seus efeitos sobre a propriedade privada, concebida como  algo dotado de existência e validade independentes. Os impostos têm de ser avaliados como um elemento do  sistema geral de direitos de propriedade que eles mesmos ajudam a criar.” In.: Idem, p. 11. 

Essa equalização deve ter como norte uma concepção de Justiça Fiscal, que poderíamos entender a tributação apenas daquilo que está acima do necessário para a manutenção do mínimo vital, sendo, jamais, confiscatório. Mas, essa concepção de justiça não é mais do que uma especialização e um conceito mais genérico de justiça social.

Considerando os preceitos da Constituição pátria, podemos dizer que o Brasil tem como parâmetro de justiça social a promoção do bem de todos, transportando a democracia do papel para a realidade social, o que, novamente, não implica em supressão de nenhum direito individual. Fiquemos com as representativas palavras do já citado pensador iluminista, ao descrever a base de todo sistema social:

“em vez de destruir a igualdade natural, o pacto fundamental substitui, ao contrário, por uma igualdade moral e legítima aquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade física entre os homens, e, podendo ser desiguais em força ou em talento, todos se tornam iguais por convenção e de direito.”220