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Capítulo 3 – O Não-Confisco

IV. Norma de Competência

O direito positivo concede capacidade para os sujeitos criarem normas, materializadas em textos com linguagem apropriada. Estas são a aplicação de normas superiores. “(...) a criação de uma norma inferior através de uma norma superior pode ser determinada em duas direções. A norma superior pode não só fixar o órgão pelo qual e o processo no qual a norma inferior é produzida, mas também determinar o conteúdo desta norma.”262

Tanto sujeitos de direito público quanto de direito privado podem receber dita capacidade, denominada competência.263 Essa variedade de sujeitos não permite confundi-la com uma permissão. “Ainda que uma ação que seja o exercício de uma competência seja, em geral, também permitida, uma ação que seja meramente a realização de algo permitido não é, por si só, o exercício de uma competência, o que é perceptível pela diversidade de ações permitidas que não implicam alteração de uma situação jurídica.”264

A liberdade de locomoção é apenas uma permissão. Mover-se de um ponto a outro não gera nada mais do que a mudança de local onde a pessoa se encontra. O exercício de competências cria ou altera situações jurídicas. O casamento transfere os nubentes do estado civil de solteiros para o de casados, por exemplo. As alterações de situações jurídicas só serão vistas como exercício de competências se estiverem sustentadas por uma norma. Nas palavras de Alexy:

“(...) Ações que constituem o exercício de uma competência são ações institucionais. Ações institucionais são ações que podem ser realizadas não somente em razão de capacidades naturais. Elas pressupõem a existência de regras que lhes são constitutivas.”265

O mesmo autor diferencia a norma de competência da norma de conduta que gera uma permissão:

“As normas de competência criam a possibilidade de atos jurídicos e, por meio deles, a capacidade de alterar posições jurídicas. As normas de conduta não criam alternativas de ação que, sem essas normas, seriam impossíveis; elas apenas qualificam ações, ao estabelecer obrigações, direitos a algo e liberdade.”266

A construção da norma de competência consiste na identificação, entre os dispositivos das leis, do sujeito capaz do ato, do procedimento a ser seguido e dos

       262 KELSEN, H. Ob. cit., p. 261.  263 Cf ALEXY, R, Teoria... cit., p.236.  264 Idem, pp. 236‐7.  265 Ibidem, p. 239. (grifos no original).  266 Ibidem, p. 240. (grifos no original). 

limites que o conteúdo da novel norma deve respeitar. Quando se tem em mente as competências de órgãos estatais, emergem os direitos fundamentais como verdadeiras normas negativas de competência267. São limites fortes, que não podem ser transpostos se não houver exceções expressas em dispositivos constitucionais.

Dentre as competências estatais, queremos dirigir nossos esforços para o estudo da competência tributária, identificando a relação entre o não-confisco e os Direitos Fundamentais na tutela do contribuinte. Escreve Roque Carrazza:

“(...) competência tributária é a possibilidade de criar in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas. Como corolário disto, exercitar a competência tributária é dar nascimento, no plano abstrato, a tributos.”268

Para Paulo de Barros Carvalho, competência tributária é:

“(...) uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes das quais são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na faculdade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos. Configura tema eminentemente constitucional.”269

Entendemos a competência tributária tanto como possibilidade de criar tributos quanto de regular os demais aspectos dessa seara, como os procedimentos de fiscalização ou os casos de isenções fiscais. Essas normas de comportamento serão válidas se atenderem ao disposto na norma de competência. Estas são construídas como qualquer outra: partindo dos dispositivos legais, no caso do nosso direito, constitucionais. Em julgado do STF, disse Min. Celso Mello:

“O exercício do poder tributário, pelo Estado, submete-se, por inteiro, aos modelos jurídicos positivados no texto constitucional que, de modo explicito ou implícito, institui em favor dos contribuintes decisivas limitações à competência estatal para impor e exigir, coativamente, as diversas espécies tributárias existentes. Os princípios constitucionais tributários, assim, sobre representarem importante conquista político- jurídica dos contribuintes, constituem expressão fundamental dos direitos individuais outorgados aos particulares pelo ordenamento estatal. Desde que existem para impor limitações ao poder de tributar do estado, esses postulados tem por destinatário exclusivo o poder estatal, que se submete a imperatividade de suas restrições." (ADI 712-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-10-92, DJ de 19-2-93).

Essas limitações constitucionais ao poder de tributar são a denominação dada aos dispositivos legais que delimitam o espaço de incidência da norma de competência. Estamos diante de uma norma de estrutura, pois regula o funcionamento do sistema. Como as estruturas lógicas das normas são idênticas, podemos recorrer a esse instrumento da lógica jurídica, para compreender as

       267 Cf Idem, pp. 247‐8. 

268 CARRAZZA, R. A. Ob. cit., pp. 471‐2. 

relações existentes entre os vários elementos constitucionais delimitadores da competência tributária.

Em trabalho sobre as contribuições de intervenção no domínio econômico – CIDE, Tácio Lacerda Gama desenhou a estrutura lógica das normas de competência tributária. A hipótese de uma norma de competência descreve um fato que, se ocorrer, enseja no estabelecimento de uma nova relação jurídica:

“A norma de competência tributária em sentido estrito requer a reunião das proposições construídas a partir da leitura do direito positivo numa estrutura lógico- condicional. No antecedente dessa norma, descreve-se um fato – o processo de enunciação necessário à criação dos tributos –, imputa-se a esse fato uma relação jurídica, cujo objeto consiste na faculdade de criar tributos.”270

Recorrendo a paralelismos com as normas de comportamento, o autor descreveu a hipótese e o consequente das normas de competência da seguinte forma:

“No antecedente, devem ser reunidos os enunciados que possibilitem a identificação do fato, no espaço e no tempo, que dá ensejo à edição de um tributo, entendendo aqui como norma jurídica geral e abstrata.”

O antecedente ou hipótese dispõe sobre os critérios de validade sintática. Ele descreve o procedimento a ser seguido para uma norma seja formalmente válida. São os seguintes elementos: procedimento, sujeito competente, local e o tempo da aplicação da norma, a partir de quando a nova lei produz efeitos.

Com a descrição, o antecedente permite que identifiquemos se a norma é formalmente inconstitucional. Caso os acontecimentos cumpram o determinado, significa que a norma atendeu aos requisitos de forma. Faltarão os requisitos materiais. O sujeito competente tomará conhecimento deles pelo consequente.

O consequente da norma de competência tributária, a semelhança com as de comportamento, cria uma relação jurídica. No caso, o pólo ativo é ocupado pelo sujeito detentor da competência, que no setor tributário é o Estado. O sujeito passivo são todos aqueles obrigados a respeitar a norma; ou seja, todos aqueles que farão parte da relação jurídica surgida com a nova norma. Novamente, vejamos o que diz Tácio Lacerda Gama:

“(...) no seu consequente estão dispostos os elementos de validade semântica do tributo. O objeto da relação de competência é formado pela permissão de editar o

      

270 GAMA, Tácio Lacerda. Contribuição de intervenção no domínio econômico. São Paulo: Quartier Latin, 2003, 

tributo, faculdade essa cujo delineamento é fruto da reunião de princípios

constitucionais, imunidades e enunciados complementares. Este é o campo da

significação material, que delimita a possibilidades de editar um tributo. Por isso, a referência à validade semântica no consequente da norma de competência.”271

Os princípios, as imunidades e os enunciados complementares (que são dos dispositivos constitucionais diversos dos dois primeiros), delimitam o campo de competência. Formam o objeto da relação jurídica de competência: Cn = Rj [Sc . Sp . Obj].

Esse é o consequente da norma jurídica de competência, tomando por base o trabalho de Tácio Lacerda Gama. Cn significa consequente; Rj relação jurídica; Sc é o detentor da competência; Sp é o sujeito passivo, destinatário da norma; Obj é o objeto da regra de competência. No caso, são os critérios que regulam o conteúdo da norma produzida.

Concentraremos esforços nos princípios constitucionais. Como não objetivamos estudar o regime jurídico de um tributo específico, mas entender como o não-confisco e os direitos fundamentais protegem o contribuinte, suficiente uma análise do consequente.

A semelhança com os Direitos Fundamentais, a vedação aos tributos com efeitos de confisco é um princípio. Possui uma posição privilegiada no sistema e é altamente indeterminado. Não foram exitosas as tentativas de formular uma maneira objetiva de aplicá-lo. Mesmo com a jurisprudência e os avanços da doutrina, não se conseguiu estabelecer um valor a acima do qual, o tributo seria confiscatório.

A despeito dos nossos dois objetos se classificarem como princípios, aconselhável verificar a contribuição do que Tácio Lacerda Gama denominou como enunciados complementares, pois, a prolixidade da Constituição gerou dispositivos que não são princípios, mas são relevantes para compreendê-los.

Os princípios servem para “delimitar um ou mais dos critérios da norma de competência.”272 Tanto o não-confisco quanto os Direitos Fundamentais fornecerão entendimentos acerca da competência. Mas, como cada um deles funciona? Como eles interagem?

       271 Idem, pp. 80‐1. 

A finalidade do processo legislativo, ao menos na parte que nos interessa, é a criação de tributos. Paulo de Barros Carvalho pormenorizou os componentes de um tributo em uma estrutura lógica conhecida como Regra Matriz Incidência Tributária. Encontramos no antecedente dessa norma os critérios material, espacial e temporal. No consequente, descreve a relação jurídica tributária decorrente, indicando os sujeitos ativo e passivo e os elementos quantificadores da obrigação (base de cálculo e alíquota).

A norma de competência irá guiar o legislador na formatação do conteúdo da regra matriz, quer dizer, do tributo. Vejamos o caso do IPTU. O art. 156, inciso I, da CF autoriza aos municípios instituí-lo, fazendo-o incidir sobre “propriedade predial e territorial urbana”. Neste inciso, temos os critérios material e espacial: ser proprietário de um edificação e estar localizada em perímetro urbano. Também se identifica os sujeitos da relação: os municípios como sujeitos ativos e os donos de edificações como sujeitos passivos.

A base de cálculo é ínsita ao critério material, ou seja, ao aspecto material da hipótese de incidência. Servirá para mensurar o valor a ser pago pelo contribuinte. “O aspecto material da h.i. é sempre mensurável, isto é, sempre redutível a uma expressão numérica. A coisa posta na materialidade da h.i. é sempre passível de medição.”273 A base de cálculo acaba por ter uma função comparativa em relação à hipótese, servindo para confirmar, infirmar ou afirmar se o critério material da Regra Matriz é verdadeiro:

“Confirmando sempre que houver total sintonia entre o padrão da medida e o núcleo do fato dimensionado; infirmando quandou houver manifesta incompatibilidade entre a grandeza eleita e o acontecimento que o legislador declara como a medula da previsão fáctica; e afirmando, na eventualidade, ser obscura a forma legal.”274

Os critérios espacial, material, os sujeitos e a base de cálculo, no exemplo do IPTU, são derivados do mesmo dispositivo constitucional (art. 156, inciso I, da CF). A constitucionalidade deverá ser verificada pelo cumprimento das determinações do artigo. Isso vale para outros tributos. Alguns serão mais ou menos pormenorizados. É a chamada por Roque Carrazza de “norma-padrão de incidência”275. A CF não cria

       273 ATALIBA, G. Ob. cit., p. 109. 

274 CARVALHO, P. B. Direito tributário: linguagem... cit., pp. 546‐7.  275 Cf. CARRAZZA, R. A. Ob. cit., pp. 478‐81. 

tributos. Descreve os elementos básicos que dirigirão a conduta do legislador no momento da formação de um tributo.

O critério temporal e a alíquota (parte do critério quantitativo) ficam de fora dessa “norma padrão”, mas não são destituídos de limites. No seara do Poder Legislativo, esses elementos serão limitados pela proibição ao confisco.

O consequente da norma de competência do IPTU seria: “deve-ser o município permitido obrigar os donos de imóveis urbanos a pagar imposto sobre sua propriedade, vedado efeitos de confisco e violação aos direitos fundamentais.”

A norma de competência tributária da qual estamos falando é dirigida ao legislativo municipal. Sempre que for dirigida ao Poder Legislativo, independente da esfera, a vedação ao confisco atuará na limitação da alíquota (consequente da regra matriz) e, em situações que não foram expressamente determinadas pelo Constituinte, como o critério temporal (antecedente da regra matriz) do IPTU. São elementos totalmente abertos ao arbítrio do legislador.

No IPTU, o dispositivo não fornece elementos para construção do critério temporal. Já os impostos aduaneiros, o momento em que ocorre o fato gerador decorre da natureza dos tributos: saída ou entrada de produtos no mercado nacional. O critério temporal pode ser depreendido do material.

Quando limitamos a vedação ao confisco à alíquota e aos demais elementos indeterminados da norma de competência, não queremos falar que é proibido ao legislador pensar nesse princípio quando constrói o critério material. Ele é o primeiro intérprete da Constituição. Possui alta discricionariedade na produção de leis. Tem liberdade para considerar múltiplos aspectos constitucionais na sua produção legiferante. O que queremos acentuar é que não se faz necessário o confronto com esse princípio em casos que a Constituição fornece elementos para determinar a zona de atuação do sujeito competente. Iremos explicitar isso adiante.

A vedação ao confisco terá menor abrangência nas normas que concedem competência para aplicar o tributo ao caso concreto. É o momento do lançamento. Quem está autorizado a lançar também se submete a uma norma de competência. Porém, ela será formada por elementos provenientes de dispositivos constitucionais e infra-constitucionais. A norma que regula o lançamento terá a estrutura descrita

anteriormente: uma hipótese descrevendo os procedimentos formais que validam sintaticamente a imposição do tributo, e o consequente, descrevendo os critérios semânticos a serem respeitados, quais sejam, a própria norma de comportamento que contém o tributo e os princípios constitucionais.

O resultado será uma norma individual e concreta. Atentando para o consequente, ele prescreve ao sujeito ativo a obrigação de obrigar o pagamento do tributo quando a Regra Matriz descreve uma hipótese que se coadune ao fato concreto, respeitados os preceitos constitucionais e legais.

Como o direito tributário é preponderantemente formado por regras, a atuação da administração está limitada pela estrita legalidade. Ele está adstrito ao que diz o antecedente e o consequente da norma de imposição tributária. A alíquota, por exemplo, foi definida pelo legislador. Cabe ao sujeito lançador, apenas dosar a percentagem, sem ultrapassar os parâmetros legais. O grau de confisco deverá ser em proporção ao fato; dentro dos limites estabelecidos, o aplicador deverá encontrar uma alíquota proporcional à capacidade contributiva do sujeito passivo.

O disposto no art. 150, inciso IV, da CF será plenamente utilizado pelo Poder Judiciário no controle de constitucionalidade da norma de comportamento instituidora do tributo. Mais adiante, iremos especificar todas as relações do não- confisco em cada um dos três poderes: no Legislativo, no Executivo (administração fiscal) e Judiciário.

A atuação dos direitos fundamentais na delimitação da competência se dá por duas vias, uma genérica e outra específica.

Genericamente, os direitos fundamentais impedem a criação de qualquer norma, de qualquer setor do direito, que os limitem de forma desproporcional. A produção de normas deve ser feita em atenção à máxima eficácia e proteção aos direitos fundamentais. Eles só poderão ser limitados se for para proteção de outros direitos, igualmente fundamentais. É, em boa medida, uma decisão política. Aqui, todo o catálogo deve ser observado. Nenhuma interdição a esses direitos pode ser criada se não de forma a permitir o máximo de aproveitamento dos demais direitos fundamentais.

De forma específica, os direitos fundamentais podem ser feridos se desrespeitada a vedação ao confisco. Por essa via, apenas os três conjuntos de direitos fundamentais anteriormente mencionados podem ser afetados: propriedade, liberdade de profissão e mínimo existencial. Isto porque o não-confisco pretende a proteção dos bens do contribuinte. Esses Direitos Fundamentais serão violados se decorrentes da depreciação financeira sofrida pelo contribuinte. Vejamos:

A redução significativa do patrimônio, por si só, atenta contra um direito fundamental, qual seja, o direito de propriedade. Decorrente disso pode haver a limitação às liberdades de profissão e de atividade econômica e prejuízos ao mínimo vital; desde que sejam motivados pela depreciação econômica causada pelo tributo. Exemplo: se o pagamento do tributo impedir o cidadão de praticar sua profissão, de aplicar na ampliação de seu negócio e até criar dificuldades para cuidar da sua saúde ou manter sua moradia, estará sendo violado o art. 150, inciso IV, da CF.

Desta feita, o efeito confiscatório do tributo fica caracterizado pela limitação do direito de propriedade, isoladamente considerado, e pelo desrespeito às liberdades de profissão e de atividade econômica ao mínimo vital, decorrentes daquela primeira violação.

No campo mais genérico, os Direitos Fundamentais podem ser afetados pela tributação sem turbação patrimonial. É uma situação mais rara. Podemos citar o caso de criação de taxas pelo Poder Público para circulação em certa região da cidade. Se for valor alto, pode ocorrer das pessoas deixarem de ir àquele local. Não pagarão o pedágio, não terão depreciação patrimonial, mas terão violado o direito de livre locomoção.

A proteção fornecida pelos direitos fundamentais é mais abrangente que aquela da vedação ao confisco. Mesmo inexistindo esta última, não poderiam ser violados direitos como o de propriedade.

Este momento serviu para comprovar que a competência tributária é delimitada pela vedação aos efeitos confiscatórios e pelos direitos fundamentais, e que a sua violação via confisco decorre da redução da capacidade econômica do sujeito. Detectamos diferenças no uso do princípio do não-confisco dependendo de qual autoridade competente se fale.