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A observância do não-confisco e dos direitos fundamentais no controle dos

Capítulo 3 – O Não-Confisco

VII. A Aplicação do Não-Confisco e dos Direitos Fundamentais na Produção e

VII.3. A observância do não-confisco e dos direitos fundamentais no controle dos

Cabe ao Poder Judiciário controlar a aplicação das leis e sua conformidade com a Constituição. Como nossos temas são dos direitos fundamentais e o princípio da vedação ao confisco, ambos de patamar constitucional, temos em mãos caso de controle de constitucionalidade, seja a via difusa ou concentrada, seja no controle abstrato ou concreto.

Tanto no controle abstrato quanto no difuso, se poderá verificar a constitucionalidade da norma que criou o tributo (regra matriz), tendo como parâmetro a norma de competência. O tributo pode violar um ou diversos aspectos dela; também um critério e, por via reflexa, outros. Este será o caso do princípio do não-confisco quando a inconstitucionalidade residir em critérios diversos da alíquota. Apenas quando esta for desmedia, haverá frontal descumprimento do referido princípio.

Os direitos fundamentais aparecem tanto limitando diretamente o processo legislativo, quanto para ajudar na interpretação de outros princípios, no nosso caso, o que veda o confisco. A primeira situação ocorre se a criação de um dever instrumental restringir a liberdade da atividade econômica. A segunda, se a redução patrimonial causar limitações à atividade econômica, estaremos diante de efeito confiscatório.

A verificação de inconstitucionalidade do tributo passa pelo seu confronto com a norma de competência.

Primeiro se observa o antecedente da norma de competência. Se cumpridas as formalidades do processo legislativo, a norma será formalmente válida. No

segundo momento, será analisada a constitucionalidade material da norma de comportamento, recorrendo-se ao consequente da norma de competência.

Por conta do nosso objeto, iremos nos concentrar na inconstitucionalidade por violação do princípio do não-confisco, que consiste na mitigação de direitos fundamentais em decorrência da redução patrimonial do contribuinte.

Em relação ao antecedente da regra-matriz, ao fazer estudo similar, Fabio Brun Goldschmidt concluiu, por meio de exemplos, que o princípio do não-confisco é violado: por meio do critério material “quando o imposto de renda recair sobre algo que não corresponda à renda”; por meio do critério espacial no “caso de legislação do IPTU que faz incidir imposto sobre propriedade que não esteja localizada nos limites territoriais do Município”; e por meio do critério temporal quando há “redução da periodicidade anual de impostos como IPVA ou IPTU, para fazer com que o fato gerador de tais exações passasse a se realizar mais de uma vez por ano.”314

Em síntese, o autor defende serem confiscatórios tributos nos quais os critérios material, espacial e temporal ultrapassam a delimitação constitucional. O antecedente normativo é a interpretação do legislador acerca do disposto na norma de competência. Se o Tribunal Constitucional interpretar que a referida competência era menor do que a descrita na hipótese, poderá determinar sua inconstitucionalidade.

O vício pode residir no consequente da regra-matriz. O mesmo Fábio Brun Goldschmidt nos diz que “terá efeito confiscatório, em sentido amplo, toda obrigação de pagar tributo imposta a quem não guarde qualquer relação com o fato gerador.”315 Sem dúvida. O legislador deve colocar como sujeito passivo alguém relacionado ao fato, ou, no caso de responsabilidade, que tenha vínculo com o fato ou com aquele que o praticou, como os curadores, citados acima. Essas são circunstâncias de descumprimento do critério da norma de competência que regula a escolha do sujeito passivo ou do responsável.

Quanto à base de cálculo, para Fábio Brun Goldschmidt, pode-se violar o princípio do art. 150, inciso IV, se ocorrer “repentino e excessivo alargamento da

       314 GOLDSCHMIDT, F. B. Ob. cit., pp.127‐9.  315 Idem, p. 131. 

base de cálculo do tributo pela nova legislação. O aumento excessivo de tributos, como vimos, é também objeto de controle pelo princípio do não-confisco.”316

Todos os casos citados são indiretamente confiscatórios porque, antes, foram descumpridos outros preceitos constitucionais, gerando uma incidência não autorizada pela CF. Como o conceito de confisco é a subtração de patrimônio sem autorização legal, o tributo o será se for desenhado em desconformidade com a norma de competência, independente da proporção da imposição fiscal.

A solução é coadunar a norma de comportamento à norma de competência. Se a União, sem previsão na CF e sem cumprir os requisitos do seu art. 154, criar imposto por Lei ordinária, ele deverá ser retirado do sistema por desrespeitar a divisão de competências. É caso de supressão total do tributo. Se apenas parte dele viola a Constituição, poderá ser alterada a parte do texto legal que está em dissenso. No nosso já citado exemplo do IPTU incidente sobre a propriedade de trailers, poderá ser excluída a parte do dispositivo que trata sobre o assunto.

Se o dispositivo tiver uma redação que impeça a retirada do elemento textual que cria a inconstitucionalidade, poderá a Corte Constitucional “declarar a inconstitucionalidade parcial da norma sem reduzir o seu texto, ou seja, sem alterar a expressão literal da lei. Normalmente ela é empregada quando a norma é redigida em linguagem ampla e que abrange várias hipóteses, sendo uma delas inconstitucional.”317 O julgador deixa consignado que aquela parte do dispositivo não poderá ser considerada no processo de interpretação/construção da norma.

É relevante buscar ajuda da interpretação conforme a constituição, quando se determinará qual, entre as diversas exegeses, é a correta do ponto de vista da constitucionalidade.

Essas técnicas visam a preservar a vontade do Legislador, evitando intromissão em competências alheias, vácuo normativos e, no campo da tributação, desequilíbrio no orçamento público.

Os casos descritos são de choques frontais entre uma regra inferior e outra superior. O nosso princípio do não-confisco entrará indiretamente nesse conjunto de

       316 Ibidem, p. 132. 

considerações. Igualmente, os direitos fundamentais são feridos por conta da violação daquela primeira regra. Vimos precedentemente, a dificuldade de se trabalhar com os princípios e na colisão de direitos fundamentais em questão de constitucionalidade. Se o problema puder ser resolvido no confronte entre as regras, preservando-se os direitos do contribuinte, é interessante que se pratique a auto- contenção, e não se traga ao debate argumentos que não sejam imprescindíveis.

Se do processo hermenêutico das regras em conflito, não surgir solução, contudo, o Julgador não deve se intimidar. Reconheça-se o efeito confiscatório por via reflexa, e siga demonstrando quais os direitos fundamentais do contribuinte que foram afetados. Depois, identifique quais os direitos que o Estado pretende implementar com a tributação, relação meio-fim. Se estes forem lícitos, que se verifique a adequação do objeto. Por fim, a necessidade; ou seja, haveria outras formas de se conseguir os recursos, preservando ao máximo os direitos do contribuinte e os compromissos estatais (nos quais também se incluem direitos fundamentais).

Os casos expostos são violações reflexas ao não-confisco. Em termos argumentativos, o princípio serve para ligar a primeira infração às consequências dela nos direito fundamentais. Isso, em parte, porque o princípio tem seu conceito a limitação a um direito fundamental (a propriedade), que, por sua vez, prejudica outros, como o mínimo vital. Haverá descumprimento frontal do princípio quando o problema residir na alíquota.

Há dispositivos constitucionais que regulam as alíquotas, com alíneas do inciso II do § 2º do art. 149 da CF, que determinam que elas serão “ad valorem, tendo por base o faturamento, a receita bruta ou o valor da operação e, no caso de importação, o valor aduaneiro” (alínea a) ou “específica, tendo por base a unidade de medida adotada” (alínea b). Contudo, não estipulam suas proporções.

Mesmo quando a CF faculta ao Senado, em certas circunstâncias, estabelecer limites para as alíquotas do ICMS (art. 155, § 2º, inciso V), não fala em valores numéricos. O principal parâmetro para isso será a vedação ao confisco.

Como o efeito confiscatório não é objetivo, o julgador deverá verificar se ocorreram restrições exacerbadas aos direitos fundamentais do contribuinte.

Constatadas, podemos falar em descumprimento da norma de competência. É uma avaliação complicada, sujeita a subjetividades.

Primeiro, é importante observar o tamanho da depreciação patrimonial. Como vimos acima, Aires Barreto fala que retirar mais de 50% do patrimônio caracteriza confisco. Fábio Brun Goldschmidt fala que o tributo confiscatório causaria um sentimento de punição para o contribuinte. São alguns parâmetros que merecem consideração, mas não tornam a análise precisa. Podemos imaginar a busca por análises econômicas que indiquem os prejuízos.

Deve-se buscar a repercussão da depreciação patrimonial em outros direitos fundamentais. No caso, o mínimo vital e as liberdades de profissão e atividade econômica. A verificação é semelhante à que ocorre em outras esferas: se a queda no patrimônio (incluído aí os rendimentos) impedir a manutenção desses outros direitos, será indicativo de confisco.

Antes da análise do efeito confiscatório, porém, deverão ser construídas as normas de imposição tributária e de direitos fundamentais envolvidas. Buscar-se-á o sentido dos textos que terão, como falamos acima, limites na cultura. Depois, auferir se a norma de comportamento cumpriu a antecedente da norma de competência, que a tornará formalmente constitucional.

Com as normas elaboradas, o julgador avaliará se houve ou não o confisco. Primeiro, deverá identificar os direitos fundamentais perseguidos pelo Poder Público e aqueles que, do lado do contribuinte, estão sendo mitigados. Podemos identificar aparente violação do direito de propriedade e do direito à moradia (parte do mínimo vital).

Estamos no campo do controle de constitucionalidade, temos princípios envolvidos e direitos fundamentais em conflito. Aplicar-se-á o método da proporcionalidade, cujas etapas são: licitude do propósito, licitude do meio, adequação e necessidade.

É prudente se recorrer à exposição de motivos, aos debates legislativos e aos textos legais para construir o propósito da tributação. Este seria o cumprimento dos deveres estatais, como as obrigações com saúde e educação. Dependerá do tributo

em questão. Em síntese, o propósito da tributação é arrecadar recursos para o Estado promover o bem de todos.

O meio para esse fim é o próprio tributo. Este é licito, pois permitido pela legislação. Aqui, deve ser observada a existência de previsão constitucional. Não havendo ilicitudes, se passará para a adequação. Nessa fase, tem que se averiguar se o tributo é adequado ao fim. Ora, cobrar tributos é via eficiente para transferir recursos do contribuinte para o Estado. Podem ser adequados ao fim tanto a manutenção a sua formulação pelo Legislador, quanto a redução da alíquota ou alteração de outro critério da rega-matriz. O julgador pode levantar outras hipóteses para atingir o fim, como a redução de gastos, realocação de recurso de um setor para o outro.

O centro do debate ocorrerá na fase da necessidade. Das opções resultantes da adequação, a que melhor se coaduna aos interesses e não afeta tanto os direitos fundamentais é a tributação. Reduzir gastos e realocar recurso é uma avaliação delicada, que o juízo de constitucionalidade tem poucas condições de realizar. Alterar a lei Orçamentária implica em desequilibrar o planejamento do governo, podendo refletir para além daquele ano fiscal.

Sem dúvida, o meio necessário para se auferir recurso é a tributação. Cabe investigar se, há alguma alteração na norma tributária que permita conciliar arrecadação e não-afetação dos direitos fundamentais. Recorrendo-se, sempre que viável, a aspectos fáticos que comprovem a mitigação dos direitos do contribuinte.

Poderá o julgador solicitar análises econômicas acerca da redução patrimonial, por exemplo. Isso não exclui a evidência do fato: se os prejuízos forem claros, não há necessidade de buscar auxílio de especialistas.

A violação de outros direitos em decorrência da queda do patrimônio será mais um elemento na avaliação do confisco. Se o IPTU impôs ao cidadão a mudança da residência por não ter condições de pagá-lo, poderá ser um indicativo de violação do direito à moradia. Principalmente se a elevação do imposto não decorreu de melhorias na região.

A decisão deve também colacionar os benefícios que a tributação trará à sociedade.

A solução do processo pode ser o reconhecimento da lei como constitucional ou como inconstitucional. Nesta última alternativa, a declaração poderá ser de toda a norma ou de algum critério da regra-matriz. Sua retirada completa deve ser evitada, se houver alternativas. Isso cria um vácuo legal que desequilibra as contas públicas. Há as opções tanto de alterar a alíquota quanto outros critérios da regra-matriz.

Se escolher por alterar a alíquota, arbitrar-se-á um valor compatível com as necessidades do Governo e a proteção dos contribuintes. O nível de subjetivismo é enorme. Preponderantemente será uma decisão guiada pelos valores do juiz. O uso de laudos e avaliações econômicas fornecem parâmetros para a grandeza da redução. Mas são sugestões, e não uma fórmula objetiva.

Outra via para sanar a ilegalidade consistirá na alteração de outros critérios do tributo. Pode ser que a alíquota exerça pressão apenas sobre uma parcela da população. Uma solução seria uma mudança nos critérios pessoal ou material. No exemplo do IPTU, uma resposta seria excluir regiões da cidade onde a população de baixa renda resida.

Tudo dependerá do caso concreto. Ao descrever o pensamento do julgador, queremos dar instrumentais que possam auxiliar em futuros julgamentos e na melhor compreensão da realidade normativa, uma das mais nobres funções da ciência jurídica.

Declarada a inconstitucionalidade total ou parcial, os efeitos da sentença poderão ser modulados para que a decisão tenha efeitos no ano seguinte. Evitar-se- ia o abalo inesperado das contas públicas. Essa modulação deverá ser aplicada segundo as condições do caso concreto. Não propomos isso como uma regra.

Sempre restará a opção de se manter a norma no ordenamento quando os indícios de inconstitucionalidade não forem consistentes. As vantagens dessa decisão vão do equilíbrio nas contas públicas a não intromissão pelo Judiciário nas competências do Legislativo. As regras não podem ser vistas como um empecilho, uma forma do Governo infringir direitos individuais, e os princípios como uma miríade que trará a solução de todos os problemas.

Por essas mesmas razões, também defendemos no caso de o tributo violar regras, e reflexamente princípios, que a solução se limite a análise daquelas,

evitando-se o debate principiológico. A argumentação por princípios é tortuosa, pouco controlável, aberta a decisões políticas do juiz que influirão no desequilíbrio entre os poderes. As regras indicam com razoável clareza a conduta a ser seguida. A estabilidade nas relações sociais é maior. Os princípios exigem maior esforço de fundamentação, ao menos quando se pretenda uma sustentação que respeite preceitos democráticos.

As decisões, igualmente, devem observar os precedentes. A jurisprudência pode fornecer respostas que auxiliem os julgamentos, aumentando a segurança jurídica. Denominando os precedentes de regras de decisão, escreve Robert Alexy:

“(...) Por mais densa que seja a rede de regras de decisão, novos casos sempre apresentam novas características, que podem servir como razões para uma diferenciação. Além disso, a força vinculante das regras de decisão é prima facie. Uma regra de decisão pode ser abandonada se forem apresentadas razões suficientes para tanto. Em segundo lugar, é necessário sublinhar que, por trás do sistema de regras de decisão, os princípios mantêm sua vigência. Nos casos mais simples, isto é, naqueles em que os princípios não exijam uma decisão distinta daquela da regra de decisão torna-se supérfluo um amplo sopesamento entre princípios.”318

Os precedentes devem ser observados e respeitados. Havendo razões para divergências, o julgador deve ter consciência de que “aquele que pretende afastar o precedente tem o ônus argumentativo para tanto.”319 Esta é uma regra cardeal no uso dos precedentes, segundo Robert Alexy. A outra é: “Se é possível utilizar um precedente favorável ou contrário a uma decisão, ele deverá ser utilizado.”320

A construção de uma Jurisprudência sólida é um dos melhores caminhos para se chegar à segurança jurídica, algo sem o qual, qualquer direito, fundamental ou não, fica vulnerável.