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E a comunicação? Onde está?

No documento PORTCOM (páginas 37-41)

Porque um livro que cujo objetivo principal era interpretar o Brasil a partir de suas “raízes” poderia ser considerado um precursor das chamadas Ciências da Comunicação no Brasil?

Em busca de resposta para essa indagação reli o velho livro já amarelecido pelo tempo e que figurava em um lugar pouco acessado na minha estante com um novo olhar. E lá descobri alguns motivos para essa inserção. Busquei as re- ferências explícitas à comunicação e à dimensão de um olhar histórico sobre a imprensa.

Escrito a partir ideia moderna de história, o livro, paradoxalmente, faz da gênese o ponto de partida para a reflexão. Assim, no capítulo IV, especificamen- te na nota sobre a vida intelectual na América Espanhola e no Brasil, Sérgio Buarque de Hollanda surpreendia-se com o contraste existente entre a América Espanhola e a América Portuguesa, no que dizia respeito à introdução da im- prensa no Brasil. Qualificando a imprensa, como “importante instrumento de cultura” (p. 85), listava cidades em que na América Espanhola já existiam desde séculos antes a impressão de livros (desde 1535, no México e 1584, em Lima). No Brasil, cita a tentativa frustrada de Antonio Isodoro da Fonseca, no Rio de Janeiro, em 1747, que teve sua oficina fechada por ordem da Metrópole, já que não era conveniente que no Estado do Brasil:

[...] se imprimam papéis no tempo presente, nem ser utilidade aos impressores trabalharem no seu ofício aonde as despesas são maiores que no REINO, DO QUAL PODEM IR IM- PRESSOS os livros e papéis no mesmo tempo em que deles dever ir as licenças da Inquisição e do meu Conselho Ultra- marino, sem as quais não se podem imprimir nem correrem as obras (HOLLANDA, 1993, p. 86).

Na interpretação de Sérgio Buarque de Hollanda, esses entraves foram defi- nitivos no desenvolvimento da cultura intelectual no Brasil, já que na visão da administração lusitana era imperioso impedir a “circulação de ideias novas que pudessem por em risco a estabilidade do seu domínio” (p. 87).

Chama a atenção na análise dois aspectos: primeiro a profusão de dados com que sedimenta seu diagnóstico (chega a detalhar a quantidade de obras impressas no México desde o século XVI, por exemplo) e a interpretação que

faz da importância da circulação de papéis impressos para a criação e a expansão de uma esfera pública no Brasil.

Coerente com este raciocínio, em outro capítulo do livro (Capítulo II, Tra- balho e Aventura) atrela o desenvolvimento das cidades não apenas à expansão econômica, mas ao papel que a “circulação de notícias” adquiriu já no século XIX. A expansão das cidades e da economia, a partir da segunda metade do século XIX, é atribuída pelo autor não apenas ao “incremento dos negócios”, mas o fato de este “incremento” ter sido favorecido pela rapidez na circulação das notícias, em função do desenvolvimento de transportes modernos entre as praças comerciais do Império (p. 42). Tão importante quanto a circulação das mercadorias era a circulação das ideias que os modernos caminhos de ferro passaram igualmente a transportar.

Escrevendo seu livro quando a imprensa (jornais e revistas) era o meio de comunicação mais importante no país, sobretudo para o grupo de intelectuais aonde se movia Sérgio Buarque de Hollanda, ele mesmo que tinha escrito em

Klaxon, no Jornal do Brasil e na Revista do Brasil e fundado com Prudente de Mo-

raes Neto a revista Estética (1924), atribui a ela um valor simbólico em função de permitir a amplificação das ideias circulantes no território brasileiro.

Mas talvez o conceito mais importante contido na obra de Sérgio Buarque de Hollanda para a interpretação do passado histórico dos meios de comunica- ção e da sua produção por um grupo restrito de pessoas – que serão designados jornalistas – seja o de “bacharelismo ilustrado”.

Ao mesmo tempo em que considera imprescindível a circulação das ideias impressas nos livros e jornais para o desenvolvimento duradouro do país, identi- fica como parte das raízes do Brasil o que denomina “bacharelismo ilustrado” e que permite interpretar o simbolismo construído pelos jornalistas, desde o final do século XIX, em torno da profissão.

Destacando a importância dos valores individualistas sobre os coletivos, uma “verdadeira praga na formação do país”, atentava também para o fato de que na sociedade brasileira o prestígio era decorrente muito mais do simbolismo que dis- tinções materiais poderiam conferir. Nesse sentido, os símbolos do letramento – anel de doutor e diploma de bacharel – valiam mais do que títulos honoríficos e serão esses valores os fundamentais na definição do ser jornalista e que conferia a profissão lugar de distinção na sociedade. Aqueles que não possuíam esses símbolos distintivos certamente não iriam ocupar lugar de destaque no campo profissional.

Como parte do mesmo argumento identifica outros valores atavicamen- te relacionados aos lugares simbólicos construídos pelos jornalistas quando a

imprensa se transforma definitivamente nas “fábricas de notícias”: o fato de o jornalismo ser ponto na trajetória em direção a ocupar um lugar de prestígio na política ou na diplomacia; a profusão de advogados ou de estudantes de direito que exerciam o jornalismo nas horas vagas ou como forma conseguir recursos para manter a vida na academia; e o “vício do bacharelismo” que acompanhava a profissão, sobretudo no que diz respeito à exaltação do indivíduo frente a valores coletivos.

Identificando o prestígio das profissões liberais (“uma carta de bacharel vale quase tanto como uma carta de recomendação nas pretensões a altos cargos públicos”, p. 116), enumera os símbolos mais cadentes desse bacharelismo: “o prestígio da palavra escrita, da frase lapidar, do pensamento inflexível, do horror ao vago, ao hesitante, ao fluido que obrigam à colaboração, ao esforço”. Em de- corrência, observava-se uma tendência à exaltação da personalidade individual.

Com essa radiografia contundente de um modo de ser que perdurou no tempo, advoga, por fim, a necessidade de uma grande transformação no país. Uma transformação que começava exatamente com o conhecimento mais pro- fundo de suas origens e de suas filiações simbólicas, tal como ele fazia.

E com um olhar que atravessou as épocas diagnosticou:

A grande revolução brasileira não é um fato que se registra em um instante preciso; é antes um processo demorado e que vem durando pelo menos há três quartos de século. Seus pon- tos culminantes associam-se como acidentes diversos de um mesmo sistema orográfico. Se em capítulo anterior se tentou fixar a data de 1888 como o momento talvez mais decisivo de todo o nosso desenvolvimento nacional, é que a partir dessa data tinham cessado de funcionar alguns dos freios tradicio- nais contra o advento de um estado de coisas, que só então se faz inevitável. Apenas nesse sentido é que a Abolição repre- senta, em realidade, o marco mais visível entre duas épocas. (HOLLANDA, 1993, p. 127)

Se tivesse colocado seu marco entre três épocas (o século XIX, o XX e o XXI), se tivesse escrito seu livro na alvorada do século XXI certamente Sér- gio Buarque de Hollanda teria compreendido que a longa revolução brasileira continua se produzindo e se transformando nos atos cotidianos daqueles que continuam reivindicando, hoje, contra a prevalência do mesmo individualismo que denunciou no seu livro.

Mas como a história não se faz com “se”, como a história está atavicamente relacionada ao passado, resta a cada um de nós, quase um século depois da escrita das Raízes do Brasil seguir tentando interpretar os ecos que o passado continua produzindo no presente.

Referências

CANDIDO, Antonio. “O significado de Raízes do Brasil”. In: HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

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No documento PORTCOM (páginas 37-41)