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O contexto acadêmico

No documento PORTCOM (páginas 127-135)

“Você é muito corajoso ao se doutorar com um tema duplamente fora de moda: o negro e o rádio” (PEREIRA, 2013). Aos 84 anos, João Baptista Borges Pereira não esquece a frase dita pelo amigo Carlos Guilherme Motta poucos dias antes de sua banca de defesa, em 19647. A afirmação de Motta nos coloca

frente a duas questões de grande relevância para compreendermos a obra: o desenvolvimento dos estudos sobre raça e sobre a radiodifusão sonora no Brasil. A fala, que ostentava tom de crítica, refletia o panorama dos estudos científicos realizados naquele conjunto de décadas.

Na visão do autor, o país passava por uma “conspiração do silêncio”, termo que fora cunhado por Artur Ramos para falar sobre o desinteresse dos intelectu- ais para com a temática racial, especialmente negra. E o rádio? Ainda de acordo com João Baptista não era levado a sério como objeto de pesquisa (PEREIRA, 2013).

Bem quisto pela audiência, com grande influência cultural na sociedade, seus programas e artistas eram amplamente noticiados em publicações especia- lizadas, mas o rádio ainda não era tratado como assunto relevante para os pes- quisadores brasileiros, sendo ignorado quase que completamente. “Excluindo croniquetas de duvidoso valor informativo, o pouco que se escreveu sobre esse órgão de comunicação está tão diluído em obras aparentemente alheias ao tema, que a sistematização de tais registros transforma-se em busca microscópica [...]” ( PEREIRA, 2001, p.36).

7. João Baptista Borges Pereira relembrou em entrevista para a autora. O episódio tam- bém está descrito em seu depoimento para a revista especial da USP sobre os 80 anos de rádio no Brasil, intitulado O negro e o Rádio: um depoimento.

Em sua tese, a historiadora Lia Calabre de Azevedo (2002, p.35) referenda e complementa esta observação afirmando que “a maioria dos estudos existentes sobre radiodifusão no Brasil foi produzida nos programas de pós-graduação em Comunicação Social e, pelas características próprias do campo, dedicam- -se a trabalhar com um tempo bem próximo ao presente (os recuos temporais raramente ultrapassam o período de 10 anos)”. A autora também aponta Cor,

Profissão e Mobilidade: o negro e o rádio de São Paulo entre os pioneiros dos estudos

que se apropriam deste universo de investigação.

O antropólogo conhecia bem a produção radiofônica, ocupou diversos car- gos - da locução à direção - na ZYQ-8, emissora de sua cidade natal. No en- tanto, o autor explica que

A escolha da esfera radiofônica para campo desta análise nada tem de arbitrária ou acidental. Experiências do dia-a-dia tes- temunham com eloqüência que na sociedade brasileira, ou em suas variantes mais urbanizadas, há pelo menos duas dimensões onde o homem parece gozar de condições peculiares, diferen- tes daquelas comumente observadas nas demais esferas de ati- vidades das quais participam brancos e pretos. Referimo-nos ao rádio e ao futebol (PEREIRA, 2001, p.26).

O objetivo do autor era utilizar o ambiente de produção como um lócus de análise e, para isso, concentrou-se em doze emissoras de rádio: Record, São Pau- lo, Panamericana, Tupi, Difusora, Cultura, Nacional, Excelsior, Gazeta, América, Piratininga e Bandeirantes.

Durante a pesquisa João Baptista valeu-se de diferentes métodos e técnicas, rea- lizou observações de campo e entrevistou profissionais e ouvintes. “As informações mais substanciais foram conseguidas através de entrevistas formais e informais, his- tórias de vida e, em certa medida, através da observação-participante: participação em programas de auditório, contato nos bastidores com artistas, convivência íntima com profissionais e frequentadores de estações de rádio” (PEREIRA, 2001, p.36).

Participaram da pesquisa 121 profissionais negros, sendo 93 homens e 28 mu- lheres, e 100 profissionais brancos. Entre os ouvintes, em especial os calouros, a amostra abrangeu 87 indivíduos, 20 brancos e 67 negros, entre os quais 28 eram mulheres. Colaboraram profissionais de outras áreas, mas que por sua vivência e fa- miliaridade com o meio artístico puderam fornecer informações relevantes, como “publicitários, compositores, professores de música, jornalistas, críticos, musicólo- gos, membros de escola de samba, artistas de teatro e de televisão” ( PEREIRA,

2001, p.35). Ainda, foram realizadas sondagens para verificação da possível influên- cia socializadora do profissional negro e dos programas com esta temática.

O legado

De acordo com Marques de Melo “do ponto de vista da Pesquisa em

Comunicação o trabalho de João Baptista Borges Pereira representa o pri-

meiro estudo, em bases científicas no país sôbre o Comunicador, no caso uma

entidade codificadora e transmissora de mensagens para o grande público, o Rádio” (MARQUES DE MELO, 1972, p.18, grifo do autor). A

publicação em formato livro data de 1967.

A obra apresenta o percurso metodológico e divide o corpus de análise em duas partes: I. Estrutura e Dinâmica e II. Cor, Estrutura e Dinâmica. A segunda edição, disponibilizada pela editora da Universidade de São Paulo em 2001, conta com textos iniciais de Egon Schaden e Roger Bastide.

“Estrutura e Dinâmica” é composta por quatro capítulos que contextualizam o surgimento do rádio no cenário de mudanças desencadeadas nos crescentes processos de industrialização e urbanização no período que seguinte à Primeira Guerra Mundial, neles, o autor examina as transformações que acompanharam a ampliação da penetração e a passagem do modelo educativo para o modelo econômico-publicitário, recuperando as contribuições de Roquette-Pinto, Ma- rio de Andrade e Luciano Gallet. Conclui que “o rádio constituiu-se ao mesmo tempo em produto e em instrumento de expansão e consolidação do processo civilizatório urbano-industrial no país, através da difusão por toda a realidade brasileira de valores vinculados ao estilo de vida que aos poucos se esboçava entre nós” (PEREIRA, 2001, p.50).

Ao analisar a mobilidade dentro da estrutura do contexto radiofônico João Baptista identifica as categorias que estabelecem uma complexa rede de rela- ções, classificando-as como: 1. estrutura particular da empresa radiofônica, que agrupa os setores administrativo, técnico e programático e 2. a macroestrutura ou estrutura radiofônica extraempresarial que incluem os grupos de anuncian- tes, publicitários e ouvintes (os últimos, categorizados em grande público, mi- noria agressiva, calouros, corte e fã-clube).

A mobilidade, objeto de investigação do autor, representa uma alteração no status social e profissional do indivíduo e os shows de calouros demonstram

com clareza esta dinâmica, o ouvinte que almeja integrar o cast radiofônico. Este desejo está relacionado ao status atribuído ao artista, especialmente aos cantores de rádio, basta lembrar a popularidade que acompanhava os concursos de Rainha do Rádio.

As análises descritas na segunda parte do trabalho fundamentam-se em va- riados dados estatísticos apresentados pelo autor, entre os quais estão aqueles re- ferentes ao cenário social, disponibilizados pelos recenseamentos e pesquisas do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, bem como levantamentos aqueles realizados diretamente no desenvolvimento do projeto. Para os estudos de rádio, este material constitui-se em um valioso registro histórico, tão impor- tante quanto a descrição dos grupos, funções e atividades que compunham e movimentavam a produção e o consumo dos produtos radiofônicos.

Os depoimentos legitimam e complementam os dados, atribuindo-lhes uma significação única. Nota-se que a ideia de que o negro só servia como can- tor, sendo não recomendado para outras funções era, naquele período, discurso corriqueiro e arraigado. Hoje, tal discurso encheu-se de vergonha e foi relega- do ao cochicho doméstico, quando não ao sigilo do pensamento. No entanto, embora seja raro escutar que “onde o negro entra tudo fica estragado” ou que para determinado tipo de serviço é preciso gente séria, que trabalhe “sem ficar pensando em cachaça, em tudo o que, como se sabe, o negro pensa”8, como jus-

tificativas aceitáveis para a não contratação do profissional negro, é possível veri- ficar que estes estereótipos ainda estão embutidos no discurso social e midiático.

No Brasil, a caracterização do negro como raça com dotes artísticos, espe- cialmente no âmbito da indústria musical, é inerente à popularização e acei- tação do samba, embora seja também influenciada pelo sucesso de ícones da música negra norte-americana, como o jazz e o soul. A concepção da carreira musical como forma de aceitação, reconhecimento e prestígio social, resultantes da melhoria da condição socioeconômica, colocava-se como possibilidade real, atingível.

João Baptista explica que parte desta ilusão fundamenta-se na deformada interpretação, por parte dos negros, de seu perfil de mobilidade, “decorrência

8. Trechos retirados de depoimentos contidos no livro, entre as páginas 173 e 176. São falas de produtores, diretores e chefes que concederam entrevistas para João Baptista durante a pesquisa.

de ingênua e simplificadora redução do mundo dos brancos a simples questão de poder aquisitivo” (PEREIRA, 2001, p.252). O autor complementa afirman- do que “ao libertá-los de injunções econômicas, a profissão transporta-os para novas situações de convívio, em que o papel até então representado pela defi- ciência pecuniária, passa a ser interpretado pela cor e por tudo o que este traço racial simboliza em termos sociais e culturais” (PEREIRA, 2001, p.253).

A pesquisa registra as nuances das relações de classe e de raça em um perí- odo determinante na formação da identidade da capital paulista à frente de um movimento desenvolvimentista e urbanizatório. O rigor metodológico, a densi- dade teórica e a amplitude da análise a colocam como referência imprescindível para uma compreensão sociológica e antropológica da sociedade moderna e da influência da radiodifusão neste período. Ao mesmo tempo,

[...] trata-se de um livro de interêsse para todos os estudiosos das ciências sociais, especialmente das ciências da comunica- ção. Não obstante a linguagem técnica, marcada pelo jargão específico da sociologia, antropologia e psicologia, o livro de João Baptista Borges Pereira interessa também ao leitor me- diano, preocupado com os problemas de relações interétnicas e de ajustamento social (MARQUES DE MELO, 1972, p.19)

Elencada entre os desbravadores do campo a obra ainda indica caminhos relevantes para sua continuidade. Na área da Antropologia as contribuições de João Baptista Borges Pereira são constantemente lembradas, mas aparecem de forma sazonal nos estudos de Comunicação, de modo que não poderíamos deixar de congratular a acertada inclusão da obra no Ciclo de Palestras que celebraram os 50 anos das Ciências da Comunicação no país, iniciativa da Fun- dação de Amparo à Pesquisa – Fapesp e da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - Intercom.

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