• Nenhum resultado encontrado

Editoriais de âmbito literário, científico e cultural

4.2. O decálogo editorial da imprensa católica açoriana

4.2.9. Editoriais de âmbito literário, científico e cultural

O suplementarismo cultural nos periódicos, baseados nos estudos de Freitas (2001: 44), tem a sua raiz na força da tradição literária açoriana. Tradição esta que, por seu turno, leva a que os mais variadíssimos jornais do arquipélago ao longo do século XX tenham feito questão de honra, mesmo perdendo dinheiro nos seus quase sempre magros orçamentos, em disseminar informação cultural vinda de toda a parte e em acompanhar o debate artístico e teórico em volta de questões culturais e literárias internas.

148

Ora é preciso ver que, nos Açores, as distâncias e o clima isolaram populações, e esse isolamento condicionou os principais centros produtores de cultura. Segundo Pires (2013: 49), paradoxalmente, o isolamento impulsiona uma vida própria mais ou menos intensa em cada um desses centros, tendo estimulado a produção de jornais e o eco mais ou menos desenvolvido de modas artísticas e literárias (ainda que com atraso cronológico). Os jornais

A Ordem e Sinos d’Aldeia, fundados na pequena freguesia de Bandeiras, na costa sul da ilha

do Pico, são disso um exemplo. O semanário O Dever, fundado na freguesia mais isolada da ilha de São Jorge – o Topo –, testemunha o engenho que foi empregue para a superação do isolamento insular. O isolamento também foi gerador de cultura e de iniciativas que se transformavam em catarses que tentavam remir a solidão do ermo em que se vivia.

A imprensa católica, nos editoriais de âmbito literário, científico e cultural, também quis marcar uma presença junto do público mais erudito, sobretudo através de duas publicações – A Phénix e a revista Prelúdios –, fundadas precisamente com o intuito de dar voz ao espírito intelectual e criativo existente no Seminário de Angra (Prelúdios) e na ilha de São Miguel (Phénix). Aliás, a revista Prelúdios deixa claro os seus propósitos:

“Procuramos aqui simplesmente fomentar as letras, e este é o nosso principal intento. É grande ainda assim a missão a que nos abalançamos; e mui maior é por certo aquela que por meio desta nos propomos promover: ensaiarmo-nos na poesia e na eloquência, que são as fontes donde mais puro emana o belo, para por meio dele nos remontarmos à Verdade, que nos garante a consecução do Bem.”( Prelúdios, “Iniciando”, Janeiro de 1924, n.º 1, p. 1-2).

Também o semanário A Actualidade demarcou-se do estilo da imprensa da época pela colaboração literária de distintos vultos da intelectualidade açoriana, como se comprova da transcrição do seu primeiro número, destacando-se a colaboração do poeta Côrtes Rodrigues, membro do conhecido Grupo Orpheu a que pertenceu Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa, grupo este que contribuiu para uma indelével mudança cultural na sociedade portuguesa da década de vinte, do século passado.

“Cumpre-nos receber e saudar os que nos visitam, trazendo-nos o auxílio precioso da sua colaboração. Comecemos pelo Dr. Humberto de Bettencourt, que ali está, na sala das musas, e que de certo não precisa de apresentação. O seu nome refulge de há muito na plêiade dos intelectuais açorianos, quer como poeta, quer como prosador. Rebelo de Bettencourt é um literato cheio de profundidade e de fé no futuro.

Côrtes-Rodrigues é também prosador e poeta. Alma nobre, talento culto, temo-lo acompanhado com íntimo prazer na sua carreira literária. O assunto do florido trecho

149 de prosa incerto, sob a epígrafe de “Horas antigas”, neste primeiro número de A Actualidade, foi haurido no rico filão das tradições micaelenses.

Mário Baptista é um pseudónimo que modestamente se disfarça um dos padres mais inteligentes e mais ilustrados dos Açores e que, em bem entretecidas crónicas, irá pondo os leitores de A Actualidade a par dos principais acontecimentos, que se forem desenrolando mundo em fora. Ainda outros colaboradores virão abrilhantar as colunas deste semanário.” (Ernesto Ferreira, “Credenciais”, A Actualidade, 5 de Fevereiro de 1920, n. 1, p. 1).

Os assuntos trazidos para alguns editoriais de fundo cultural vão ao encontro do que Schudson (1995: 3) afirma no respeitante às notícias: dever-se-á reconhecer que elas são uma forma de cultura. A este respeito Sousa (2000: 39-40) sustenta que a ação cultural sinaliza as notícias como um produto da cultura e dos limites do que é culturalmente concebível no seio dessa cultura. Isto significa que os editoriais da imprensa açorina de âmbito cultural conseguiram produzir conteúdos culturais adequados à sociedade e ao pensamento eclesial de então. É que grande parte dos conteúdos das notícias resulta da recriação de temas e imagens procedentes do passado cultural, não se distanciando do património das tradições inerentes a uma determinada região.

Subscreve-se o que Lopes (1990: 39), para as três publicações supracitadas – Phénix,

Prelúdios e A Actualidade –, afirma no respeitante a este tipo de publicações: “mais efémeras

do que o jornal, têm no entanto melhor apresentação, tanto em razão da qualidade gráfica como do papel, e são, por vezes, ilustradas”. O seu formato é mais reduzido e a periodicidade menor, com a exceção, já mencionada, do semanário A Actualidade, sem dúvida o periódico de maiores dimensões editado pela imprensa açoriana católica. Os conteúdos de natureza literária, científica, cultural, etnográfica, política, ao proliferarem neste tipo de publicações, nos primeiros anos do século XX, geraram um certo de tipo de periódico híbrido, que procurou aliar uma função informativa e uma finalidade recreativa. Acresce a estas características o facto de também este género de editoriais ser portador de um sentido condenatório de obras não consentâneas com a doutrina da Igreja, como podemos verificar na edição da revista cultural Prelúdios: “foi condenada pela Sagrada Congregação do Santo Ofício, a obra intitulada Manuel Biblique, mas somente a edição refundida por A. Brassac e J. Ducher” (Prelúdios, “Condenação”, Abril de 1924, n.º 4, p. 48).

O insistente convite que a imprensa católica fazia aos literatos da sociedade açoriana fica bem patente no desafio que abaixo mencionamos de A Actualidade pela pena do seu diretor, padre Ernesto Ferreira: “aproveitamos a oportunidade para pedirmos aos nossos

150

ilustres colaboradores Drs. César Rodrigues e Côrtes- Rodrigues, que frequentem mais assiduamente a sala dos poetas de A Actualidade” (Ernesto Ferreira, “Pela nossa casa”, A

Actualidade, 4 de Março de 1920, n. 5, p. 3).

Ora a Igreja, no arquipélago dos Açores, sendo detentora da única escola superior de educação, sempre foi uma criadora de saber, uma mediadora na transmissão de cultura. Os editoriais em apreço primam, por vezes, por uma “cosmoteologia” reafirmando que a raiz de todo o saber, de todo o conhecimento foi primeiramente descoberto e compilado nos mosteiros, mostrando que os diversos tipos de saber – matemática, lógica, ética, latim, geografia, botânica, física – e defendendo que a Sagrada Escritura era a base legítima que fundamenta estes diversos setores científicos.

Este tipo de editoriais continha transcrições de romances de fundo cristão, à guisa de folhetins, normalmente com histórias edificantes sob o ponto de vista de formação cristã. Foram neste sentido descobertas promessas culturais, como o conhecido anterionista açoriano Ruy Galvão de Carvalho –, distinto poeta, que mais tarde veio a ser um destacado professor do Liceu de Ponta Delgada que marcou múltiplas gerações, designado com o epíteto de “novo cruzado da boa causa da imprensa”, na transcrição de A Actualidade que abaixo citámos:

“Apareceu hoje na sala dos poetas de A Actualidade o sr. Ruy Galvão de Carvalho que há pouco completou o curso complementar de Letras no Liceu de Ponta Delgada. É com muito prazer que vemos nestas colunas a colaboração de mais um espírito moço a engrossar as fileiras dos que andam pugnando pela causa do catolicismo, que irresistivelmente vem prendendo a geração nova de Portugal. Em tão santa campanha andam empenhados os filósofos, os artistas, os prosadores e os poetas. Não podia ficar de parte a poesia nessa generosa cruzada, bela afirmação de fé e de amor pátrio, sendo, como é, uma das mais interessantes manifestações do espírito humano, à qual intimamente sempre andou ligada, em todos os tempos, a alma da raça, na expressão do sentimento, a força dominante de todos os ideais.” (A Actualidade, “Por nossa casa”, 20 de Junho de 1922, n. 117, p. 3).

Ora o jornalismo contador de histórias, olhado nos tempos que correm, morreu por “falta de espaço e função”. Este tipo de construção editorialista, na ótica de Chaparro (2001: 38), transformava-se em emissário de humanização que o temperava. Era um jornalismo diletante que pouco ou nada contribuía para alterar o rumo das coisas. Tinha vínculos com a vida, os vínculos da narração, mas não produzia efeitos na atualidade. Nem de verdade a refletia. Passou o tempo dos jornalistas contadores de histórias.

151

O folhetim e o realismo literário nascem, assim, de mãos dadas. Antes de serem reconhecidos pelos críticos como obras do espírito, os grandes romances oitocentistas eram inicialmente textos produzidos para a imprensa – folhetins, portanto (Sodré, 2012: 237). Por conseguinte, a componente literária sempre caracterizou a imprensa açoriana, não sendo uma exceção os jornais confessionais. Esta tendência constituiu mesmo um traço identitário nos periódicos, respondendo também à procura do público açoriano por estas temáticas.

“Termina hoje A Verdade a publicação do folhetim – “Os terrores duma noiva” – que tanto interesse despertou nos seus leitores. Na verdade, não abunda na nossa literatura, e muito menos ao alcance de todos, leitura leve, instrutiva e interessante que possa andar pelas mãos de qualquer e entrar numa casa de família. E para que os nossos leitores não fiquem privados de tão inocente e fácil distracção, vamos dar-lhes um novo folhetim, que lhes não despertará menos interesse, pois é uma obra profundamente instrutiva e cujo aparecimento fez sensação entre os seus numerosos leitores. O seu título é o Culto da Raça, que sintetiza com felicidade o escopo doutrinário do seu ilustre e benemérito autor.” (A Verdade, “O nosso folhetim”, 4 de Novembro de 1922, n. 1442, p.1).

Segundo Tengarrinha (2013: 803), o carácter literário encontrava-se quase sempre ligado a uma preocupação instrutiva. Devido à influência cultural dos periódicos, o protagonismo das elites intelectuais não prescindiu do palco da imprensa segundo (Silva, 2011: 74). Todavia, este desiderato cultural tentou superar e combater um público onde na sua maioria a iliteracia campeava, como podemos denotar do excerto de uma das revistas culturais nascidas em Vila Franca do Campo, A Phenix:

“O aparecimento de A Phenix marca mais um passo que dão os vila-franquenses na sua ascensão civilizadora. Esta revista – a única que em São Miguel existe – representa nada mais, nada menos, do que um tour de force dos seus directores. Sabida a absoluta aversão pelas letras do povo açoriano, estamos cônscios de que a Phenix há-de lutar com grandes dificuldades para viver. A tentativa não é a primeira em São Miguel, mas nem por isso deixa de ser louvável o intento. Pois não chegará um dia em que todos se compenetrem plenamente da ideia de que ao homem alguma coisa mais lhe é necessário do que a vida material de cada dia? Sim, chegará; e há-de ser depois de muito lutar de vontades sucumbidas, que um tempo virá em que nenhum esforço santo deixe de medrar, em que nenhum ideal de justiça morra ao nascer! Quando? - Não sabemos. É bem simpático o programa da Phenix: pugnar pelos interesses da instrução da sua terra.” (A Phenix, “Agradecimento”, 30 de Julho de 1902, p. 22-23).

Como forma de atrair leitores, os jornais pequenos e baratos, reuniram as velhas tradições novelescas das vidas de santos e de romances religiosos. As impressionantes histórias de santificação e de martírios tornaram-se habituais, bem como as novelas com

152

enredo de âmbito religioso que eram publicadas em formato chamado de folhetim (diariamente, na última página, a quarta, publicava-se um capítulo de uma novela seriada). Do ponto de vista da receção, o folhetim é um produto destinado ao consumo imediato, isto é, à fruição isenta de “retardamentos da leitura inerente às obras reconhecidas como cultas” (Sodré, 2012: 238), tratando-se de uma realidade literária que atravessou praticamente todos os periódicos católicos açorianos.