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4.2. O decálogo editorial da imprensa católica açoriana

4.2.4. Editoriais locais e regionais

A liberdade de expressão nos Açores poderá não estar totalmente condicionada pelo poder político e económico, mas certamente está pelo cerco da geografia. A vida insular necessariamente confronta-se com a consciência de que o outro está ali mesmo ao nosso lado, e a sua cosmovisão poderá ou não coincidir com a nossa. Segundo Freitas (2001: 70), nada nos Açores é abstrato, tudo toma uma forma concreta e intensamente vivida. O elogio e a ofensa nunca são meramente intelectuais, são sempre intensamente pessoais e interiorizados. Nos Açores, o jornalismo nunca poderá ter a pretensão de que as audiências e os públicos ficam longe, de que tudo se passa a um vasto nível, ora de indiferença, ora de debate aberto e pacífico. A proximidade das populações e o conhecimento intrínseco havido dos acontecimentos e aflições que grassavam na vida das ilhas repercutia-se com enorme sentimentalismo nas páginas dos jornais, como acontecia, por exemplo, com as epidemias que assolavam no arquipélago:

“No sul da ilha do Pico desenrola-se uma perspectiva aterradora. A peste bubónica está a manifestar-se quase diariamente; os casos de aparente contágio de homem parece que se multiplicam; a cifra da mortalidade dos atacados apresenta tendências progressivas. Que cuidados têm aqueles acontecimentos merecido das autoridades sanitárias? Que providências se têm adoptado? Que estudos etiológicos se têm feito? Não sabemos. Ninguém o sabe. E o pânico começa a generalizar-se.” (Sinos d’Aldeia, “Providências”, 15 de Agosto de 1921, p. 3).

A imprensa açoriana católica tinha de se resguardar, por isso mesmo, da constante tentativa de os poderes insulares influenciarem e moldarem a voz da sua opinião. Todavia, a ideia separatista e os ecos nem sempre audíveis no espaço público do independentismo açoriano também se fizeram notar nas páginas insulares, de imediato contrabalançadas pela reafirmação do sentimento de amor à pátria, como podemos verificar da passagem que abaixo reproduzimos da revista cultural Phenix:

132 “De tempos a tempos propala-se a notícia de negociações secretas entre o gabinete de Lisboa e o de Washington acerca da venda de uma das ilhas dos Açores, que se diz ser o Faial. Esta ilha efectivamente, pela sua excelente posição geográfica, serviria muito bem ao governo americano; mas não parece que este tenha pensado em obtê-la, porque os boatos a tal respeito são para logo desmentidos. O que porém é certo é que a ideia separatista não pode ser perfilhada pelos açorianos em cujas veias girou sempre o sangue português e em cujo coração reinou e reina o amor e fidelidade à pátria. Não se pode tirar uma pérola à coroa portuguesa para acrescentar uma estrela ao pavilhão americano, sem primeiro rasgar algumas folhas da brilhante história dos lusos.” (Ernesto Ferreira, “A ideia separatista”, Phenix, n. 3, 15 de Agosto de 1902, p. 1).

Os editoriais locais e regionais entroncam na essência da própria imprensa regional. São gritos, muitas vezes de desespero, que só os locais percebem. A osmose entre público e periódico conecta-se na perfeição nesta linha editorialista. Desde as queixas inerentes à carestia que grassava nas ilhas até aos sucessos provindos das conquistas junto da metrópole, a linha editorialista em apreço funciona como um espelho de grande nitidez capaz de retratar a realidade dos povos insulares, mostrando também que a geografia e a sociabilidade constituem vértebras que vazadas nos jornais revelam uma coluna identitária estruturadora do açoriano. O mal-estar com o Governo de Afonso Costa foi deixado bem expresso no diário A Verdade que abaixo transcrevemos. O sentimento magoado do povo açoriano por ser remetido a um degredo de esquecimento foi uma tónica permanente nos editoriais deste teor, como podemos observar da passagem infra.

“O chefe do governo julga o arquipélago dos Açores uma terra nebulosa, vaga, fantasista. O Sr. Costa de um traço rápido e firme de pena suprimiu a Relação de Ponta Delgada. Agora, que preside à finança com tanta galhardia e seguro brilho, acabou com a escola normal da ilha de São Miguel e proibiu a entrada de cereais açorianos no Continente, com grave prejuízo dos cultivadores ilhéus. Além disso, o Sr. Costa deixou o distrito de Ponta Delgada três meses sem governador civil, três meses! Ora os senhores sabem que o distrito de Ponta Delgada enviou no último ano, ao tesouro continental, um saldo positivo de oitocentos contos de reis? Sabem que há muita gente no arquipélago açoriano que a sua ligação ao governo de Lisboa só lhes traz desvantagens e dissabores? Sabem ainda os senhores que a América do Norte fica mais perto de algumas ilhas açorianas que Portugal, acha que aquele inexistente arquipélago se compõe de nove ilhas muito ricas, inexploradas e abandonadas?” (A Verdade, “O Sr. Costa e os Açores”, 21 de Junho de 1913, n. 79, p. 1).

Dos relatos das catástrofes tão frequentes na realidade insular, ora marítimas ora telúricas, deixamos, à guisa de exemplo, um belíssimo e tocante trecho, de grande beleza literária, do padre Nunes da Rosa, sobre o trágico naufrágio da lancha que efetuava a ligação entre a vila da Madalena, na ilha do Pico, e a cidade da Horta, na ilha do Faial:

133 “Pouco mais de meia hora passada sobre o naufrágio do barco “Amigo do Povo”, na vila da Madalena, era de choro a impressão que se sentia em todas as direcções e cruzavam grupos gritando alto: não havia uma fronte desenrugada, não havia uns olhos enxutos. Só se ouviam palavras de dor, referências esmagadoras…

- Se visse, Sr., como eu vi, acolá fora, um rapazinho, de nove anos, erguer os braços, pôr as mãozinhas e em seguida desaparecer!...

- Veja, meu amigo, uma noiva, tão bonita e como sorri ainda!...Morta! E morreu-lhe a mãe e morreu-lhe o noivo! Iam buscar o seu enxoval…a morte engrinaldou-lhe, a ela, os cabelos loiros de algas e sargaços, e ele lá está, no fundo do mar, beijado, talvez, por um fio de luz de derradeira lágrima de amor que ela chorou no seio das águas… e a mãe essa grande e inigualável amiga, ali está junto dela, como sempre!...” (A Ordem, “Horrorosa catástrofe”, 19 de Março de 1910, n. 145, p. 1).

Subscrevemos as palavras de Dominique Wolton (1996: 281), quando afirma que “para que haja comunicação é preciso que haja identidades constituídas, uma vontade de intercâmbio, uma linguagem de valores comuns”. Em conformidade com Wolton, reiteramos o papel crucial deste género de editoriais na consecução de muitas reivindicações do povo açoriano. Será forçoso, nesta ordem de ideias, assumir que a imprensa confere à identidade das regiões uma visibilidade deveras importante. O assumir da necessidade de descentralização nos três antigos distritos do arquipélago foi uma das reivindicações assumida pelos periódicos católicos como na citação infra podemos verificar:

“Eu sou pela autonomia do distrito da Horta – uma autonomia condicional em que se atenda, em rigoroso princípio; à especial situação do distrito. O desenvolvimento e a riqueza consequente, que se assiste nos países mais livres e progressivos, deriva, principalmente, dum poderoso e estudado sistema descentralizador de administração – que se aperfeiçoa consoante as necessidades locais, a natureza e produção das terras, a índole das raças, o maior ou menor movimento de litorais, desenvolvimento da indústria, do comércio, etc. e etc.” (A Ordem, “Notas à margem”, 27 de Junho de 1908, n. 67, p. 1).

Cada um dos periódicos estudados, na presente dissertação, se caracteriza por ser mais local do que regional. Isto nota-se se atentarmos na história de alguns títulos. Apesar das tentativas de alguns jornais, como o caso de o diário A União, se estender a todo o arquipélago, ou a uma outra ilha em particular que não a sua, esta resultou infrutífera. A verdade é que todas estas tentativas de implantação de um jornal num território descontínuo de nove ilhas não foram bem-sucedidas até à atualidade, talvez por razões de limitação territorial, talvez até por razões históricas de divisionismos de toda a ordem e, ainda, pelos interesses culturalmente específicos de cada ilha, como poderemos ver no excerto de A

134 “A ilha do Pico não pode aspirar a ter uma actividade comercial, regular e firme, correspondente às exigências da sua área, importância económica e população, enquanto não for dotada de um porto seguro, que lhe garanta uma certa regularidade de comunicações. Estudos convenientes parece que consignam ser o porto das Lages o que melhor se adaptaria a esse fim. Coisa alguma deve obstar a que se trabalhe pela sua construção, sabendo-se que esta a bem pouco mais obriga do que à soma dos concertos parciais que estes últimos trinta anos lhe tem sido feitos, e provavelmente continuarão a fazer-se, sem resultado apreciável para a vida comercial da ilha.” (A Ordem, “Pela nossa ilha”, 04 de Julho de 1908, n. 68, p. 1).

A longa tradição da imprensa escrita nos Açores (com a tardia introdução de outros meios de comunicação nas ilhas) dá-lhe, naturalmente, um estatuto privilegiado no palco da vida pública e cívica do arquipélago (Freitas, 2001: 78).

A imprensa regional é, na sua essência, na perspetiva de Silva (2011: 26), a voz das periferias, dos anseios e das reivindicações locais, numa palavra, o baluarte de defesa dos interesses e das causas das regiões, lutando por elas afincadamente.

“Em nome dos habitantes da freguesia de Fajã de Cima e a bem da higiene pública vem o signatário destas linhas reclamar de quem competir contra o local escolhido para depósito de estrumes, lixos e imundices, produzidos na cidade de Ponta Delgada, e contra o modo por que os mesmos ali se acham acondicionados. Dizem-nos que a área onde colocam essas imundices tem a área de um alqueire de terra, todo ele ocupado por montões de estrume em fermentação, sem cobertura alguma, expostos ao sol, à chuva, ao vento, onde os cães de dia e de noite se vão refocilar e procurar restos pútridos com que se alimentar. Quem passa pela estrada pública a certas horas do dia e da noite percebe bem as exalações daquela enorme montureira e também sentem e sofrem os moradores das primeiras casas de Fajã de Cima. É nessas casas que desde meados do verão se tem desenvolvido uma epidemia de febres tifoides, que já tem vitimado algumas pessoas, achando-se ainda umas poucas de cama e algumas em perigo de vida. Previdências pois contra o depósito das imundices da cidade, contra o acondicionamento dessas imundices, e para que sejam tratados com médico e botica por conta do município todos os doentes de febres tifoides da freguesia de Fajã de Cima, é o que pede o pároco da freguesia.” (José Rebelo Cordeiro, San Miguel. Semanário Católico. “Reclamação sanitária”, 06 de Novembro de 1909, n. 227, p.2).

Os editoriais regionais e locais fizeram repercussão dos desejos contidos nas populações insulares. Desde o fenómeno da emigração até aos assomos de independentismo, o teor dos seus conteúdos traduz o interior e os desejos mais íntimos das populações do arquipélago.

Na ótica de Simões (2016: 184), existem quatro funções fundamentais que a imprensa de cariz regional desempenha. Todas elas, no nosso modo de ver, entroncam, diretamente ou

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indiretamente, na construção de um processo identitário bem patente na linha editorialista em apreço. A primeira será a função “informativa e utilitária”, veiculando informações e assim criando vínculos nos envolvidos. A segunda será a função de produção de acontecimentos comunitários, contribuindo os periódicos, desta forma, para o sentimento de pertença. Em terceiro lugar, os jornais regionais e locais são difusores das necessidades e da representação da comunidade perante terceiros, transformando-se muitas vezes num jornalismo de causas. Em quarto lugar, funcionam como um espaço simbólico onde se desenvolvem competições, principalmente entre os detentores do poder político local ou ainda pode contribuir para solidificar consensos. Os media regionais e locais são, por isso mesmo, espaços de reforço da identidade das comunidades em que estão implantados (ibid.: 187).

Reitera-se, por conseguinte, o contributo da imprensa regional no reforço da cidadania, porque cultiva a proximidade, conserva laços identitários, culturais e históricos da maior importância (ERC, 2010: 18), sendo este tipo de editoriais uma espécie de reverberação das aspirações contidas numa comunidade.