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4.2. O decálogo editorial da imprensa católica açoriana

4.2.6. Editoriais sobre o ensino

O pensamento da Igreja portuguesa sobre a educação vê-se condicionado, nos finais do século XIX até aos inícios do século XX, por duas circunstâncias fundamentais. De um lado, a doutrina da hierarquia eclesiástica nacional, que se cingia a fazer eco da atitude pontifícia. De um outro lado, os acontecimentos claramente secularizadores presentes no terreno do ensino graças à aparição de uma escola cada vez menos sensível à formação religiosa do seu corpo discente. Esta dupla conjuntura estimula a imprensa a uma resoluta ofensiva ante o problema do laicismo nos colégios, nos institutos e nas universidades. A tentativa de ocupação de espaços antes preenchidos pela Igreja por parte do Estado propicia ao clero e aos bispos um novo campo de batalha na tentativa de poderem rechaçar a apropriação liberal do que outrora era terreno de grande influência confessional.

“Queremos Deus na escola, para que a candura e a inocência da infância não vão perder- se de encontro ao que falsamente chamam a neutralidade escolar. O povo cristianizado, a família santificada pela prática da fé, a juventude morigerada, preparando a sociedade do futuro de carácter, de aprumo, de desassombro e de elevada educação católica, vivida nos actos humanos e transmitindo-se todas as modalidades da vida social, eis muito de leve e resumidamente o que nós queremos.” (O Dever, “O que queremos, 1 de Setembro de 1917, n. 14, p. 1).

O processo de vertebração e de mentalização cristãs teve na escola um baluarte fundamental para a Igreja. Por isso mesmo, a Igreja não estava disposta a renunciar a essa alavanca evangelizadora em benefício do Estado ou de outras instituições laicas. Como adiante se demonstra, essa mentalização não incidia apenas na reafirmação da presença

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religiosa nas escolas, mas também no ensino da fé inerente à doutrinação efetuada nas paróquias pela Igreja, ocupando aí a organização catequética um papel incontornável:

“O povo micaelense atravessa uma crise de moralidade. Os pais não ensinam os seus filhos, uns por ignorância, outros por desleixo, os princípios da doutrina cristã, nos quais se encontra o único fundamento duma sã e proveitosa moral. Não os ensinam e, o que é pior, não os enviam à catequese que funciona regularmente em todas as igrejas da ilha. O nosso mal vem pois da falta de catequese. Conhecemos paróquias onde ela funciona com a maior perfeição com as poucas crianças que lá aparecem, mas onde de duzentas apenas se veem vinte! O mal está nos pais que não querem dar educação religiosa aos seus filhos. O mal está nos pais que acompanham os filhos à escola e não os levam à catequese; o mal está nos pais que levam os filhos às aulas de dança e que se esquecem, ou fingem esquecer, que a instrução religiosa é a base e o fundamento da verdadeira educação e que na catequese é que ela se aprende. O mal vem daí. A instrução pode fazer sábios mas não pode evitar os criminosos. Esses evitam-se pela catequese, pela formação espiritual na doutrina de Cristo sem a qual toda a moral é palavra vã ou falsa.” (A Actualidade, “Moralidade”, 27 de Junho de 1923, n. 187, p. 1).

O debate sobre a educação denuncia, nos editoriais sobre o ensino, a galopante secularização das sociedades. Os conteúdos editorialistas também cotejavam, de forma assaz crítica, o indiferentismo interno com que os católicos olhavam para o ensino catequético que se praticava nas paróquias. O reduzido acesso à educação por parte dos açorianos, a escassez de aulas e o analfabetismo eram também assuntos frequentes nos editoriais ligados ao ensino. A progressiva emancipação dos Governos no capítulo da educação é rotulada de forma crítica pela Igreja como o “Estado docente”, que se ingere de forma negativa em assuntos anteriormente cingidos à eclesialidade. Deste modo, a estatização do ensino, a partir da segunda metade do seculo XIX, não ficou imune às contundentes críticas na opinião editorialista publicada nos jornais ligados à imprensa confessional. Segundo grande parte dos artigos ligados à defesa da educação católica nas escolas, defendia-se que o Estado só deveria estar presente de forma supletória.

Só que nem sempre isto foi possível, porque uma coisa são os sonhos e outra a realidade. O choque entre a utopia progressista (um ensino universal e gratuito) e a realidade (a carência de meios) saldava-se na incapacidade governamental para levar a cabo tarefas docentes sem contar com o apoio da Igreja, pois era a instituição mais bem preparada, se a comparamos com outras organizações, para levar a cabo a lecionação de aulas. Para a consecução das tarefas letivas e didáticas, as ordens religiosas eram portadoras de uma experiencia de séculos no sector educativo (Yetano, 1987: 67-68): “as ordens religiosas praticavam a lecionação na gratuidade, porque os seus membros consagrados ofereciam

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continuidade, estabilidade além de proporcionarem baixos custos a quem neles estudava”. Apesar de o tripé liberalista assentar numa educação que deveria primar por ser laica, gratuita e obrigatória, tal desiderato nem sempre foi exequível pelas limitações do próprio Estado. Por essa mesma razão se comprova que o ensino laicista nem sempre se conseguiu desanexar, ao nível das matérias ensinadas, do campo axiológico cristão. Observa-se, nesta sequência, que as matérias ensinadas nos compêndios adotados eram portadores de conteúdos catequéticos como a Bíblia da infância e a História Resumida do Novo e Velho Testamento, do abade Martinho de Noirlieu, traduzida pelo padre António de Castro. Apesar das medidas punitivas decretadas pelos Governos, elas raramente foram aplicadas, até porque os manuais de tinham que ser adquiridos pelos pais dos discentes, na sua maior parte possuidores de formação cristã (João, 2008: 122-123). A não-aceitação, por parte da Igreja, do ensino laico derivava do facto de ela entender que a autoridade da escola pública poderia transformar-se num fator de futura perseguição ao cristianismo por parte dos alunos lá formados, algo, aliás, erróneo, como se pôde já verificar pelo ensino de matérias de fundo teologal nos manuais adotados.

Ora vários artigos surgem na imprensa católica a justificar historicamente o papel decisivo da Igreja na formação discente. No caso dos Açores, a única escola de ensino superior estava circunscrita ao Seminário de Angra do Heroísmo. A escola de formação sacerdotal açoriana foi, na perspetiva de João (2008: 126), uma das criações mais prementes da Igreja açoriana, evitando a deslocação de muitos candidatos à vida eclesiástica para o Continente. O bispo de Angra, D. Estêvão de Jesus Maria, criou o Seminário em 1862, definindo o curriculum, os livros a adotar, os meios pedagógicos e as finalidades do ensino teológico que devia ser ministrado no estabelecimento. Esta escola teve uma influência que foi para além da formação sacerdotal, desempenhando um importante papel na formação de muitos ilhéus. A influência do Seminário de Angra teve uma amplitude considerável ao nível do arquipélago. Esta amplitude formativa é constatada ao nível literário, na medida em que muitos dos textos produzidos na imprensa procediam da formação proporcionada na mais antiga escola de ensino superior dos Açores. A influência formativa do Seminário teve impacto também no ensino liceal de então, na medida em que muitos dos seus professores eram oriundos do Seminário, como aconteceu com o primeiro reitor do Liceu de Angra do Heroísmo – padre Jerónimo Emiliano de Andrade –, autor de uma história recheada de bons exemplos, que se destinava a ser livro de leitura dos alunos nas escolas.

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No processo de formação e divulgação dos fundamentos do catolicismo, a escola jogou um papel fundamental para a Igreja e, por isso, não estava disposta a renunciar ao seu lugar no ensino em benefício do Estado e de outras instituições laicas (Domínguez, 2009: 64). Daí que a Igreja considerasse o direito a instruir uma sua prerrogativa. A condenação do ensino sem religião aparece normalmente associada a outra importante campanha recorrente nos editoriais da imprensa católica açoriana de então: a condenação respeitante à imposição exercida pelo Ministério da Educação contra a liberdade dos pais escolherem a melhor educação para os seus filhos.

De sublinhar que a contraofensiva eclesial evidencia que para o poder religioso o ensino é uma matéria pastoral de suma importância. A Igreja ansiava no contexto hostil da I República por retomar o seu vigor público através da liberdade de ação nos seus colégios, institutos e universidades. O discurso contra a escola laica endureceu-se nos editoriais açorianos sobre o ensino, chegando ao ponto de se apontar que a secularização contribui para formar crianças ímpias, sendo, quiçá, os delinquentes de amanhã.

Entendia-se, nesta sequência, o Magistério da Igreja como o prolongamento da família cristã, como um auxiliar do apostolado doméstico, em auxílio ao exercício parental. Fermentou-se a convicção, no seio do periodismo católico açoriano, que a fórmula educativa ministrada por mestres católicos munidos de materiais católicos para discentes católicos, filhos de católicos, contribuía para o engrandecimento das nações católicas. Deste modo, é recorrente nos editoriais respeitantes ao ensino a apologia do argumento da tradição e da legalidade, com a acusação de que o galopante crescimento dos vícios tinha a sua causa na ausência de uma adequada pedagogia cristã nas aulas. A racionalização da polémica escolar quanto à existência de um ensino não confessional fica muitas vezes ancorado a um discurso editorialista apocalíptico. O preço da escola não católica, na visão dos editoriais ligados ao ensino, teria como resultado a decadência das instituições, o surgimento de uma sociedade volúvel nos seus fundamentos que iria desembocar inexoravelmente na corrupção, no vício, na amoralidade, na pornografia.