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A contrarreforma da educação superior impacta diretamente no trabalho e formação docente, como por exemplo: a avaliação quantitativa de seu trabalho, me- dida através de produtividade; a redução de investimentos estatais nas IES públicas, principalmente as constituídas como universidade, diminui a possibilidade de o professor realizar pesquisas e projetos de extensão e faz com que ele se dedique à busca por investimentos e concorra a editais; como também, o novo contexto em que está inserido o seu trabalho acarreta uma nova função, a de gestor nos diversos setores dentro da IES. Esse conjunto de fatores acarreta a precarização do trabalho docente, além de dificultar o entendimento sobre qual o papel do docente e como construir essa identidade de forma coletiva, uma vez que a atuação no ambiente educacional se encontra cada vez mais isolada e segmentada.

Isaia (2005) parte da concepção de que o professor é um ser unitário, o qual é constituído pelos percursos pessoal, profissional e institucional, os quais são demar- cados pelos diversos contextos em que o docente atua e atuou. Dessa forma, obser- va-se que é essencial compreender o processo de expansão da educação superior no início do século XXI, pois ele interfere diretamente no processo formativo docente.

Como se pode visualizar no tópico anterior, a expansão da educação superior no Brasil é marcada pela ampliação das IES privadas e pela privatização interna das universidades públicas. Com a proposta do BM (1992) de diversificação das IES, observa-se que há ampliação de instituições privadas não universitárias32, as

quais não são obrigadas por lei33 a implementar a indissociabilidade entre ensino,

pesquisa e extensão.

Nesse contexto, Lima (2012) identifica que essas instituições são caracteriza- das, em sua maioria, como instituições de ensino e que a lógica que rege o trabalho docente nesses locais é a dos professores de ensino de graduação em instituições de en-

32 De acordo com o Censo de Educação Superior de 2012 (BRASIL, 2012), do total de 2.416 de IES, 193 eram universidades, 139 centros universitários, 2.044 faculdades e 40 Institutos Federais (IFs) e Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs).

sino. Logo, isso impacta a formação docente, uma vez que a pesquisa é essencial na

formação do professor de ensino superior.

Essa lógica do professor de ensino também afeta os docentes das instituições públicas, principalmente a partir da implantação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI)34, cuja centra-

lidade está no ensino de graduação. O docente contratado por meio de concurso público, cujas vagas estão inscritas no Banco de Professor Equivalente35 , é pressio-

nado a assumir várias turmas de graduação com números excessivos de alunos, o que intensifica e precariza o trabalho docente (LIMA, 2012).

Logo, o professor do ensino superior foca sua atuação prioritariamente na sala de aula, e mesmo aqueles que se inserem em outros espaços acadêmicos, como em grupos de pesquisas, projetos de extensão e atividades de gestão, têm seu ritmo de trabalho intensificado.

Outro fator que também intensifica o processo de trabalho docente, com a privatização interna das IES públicas, é a busca por recursos públicos e privados no “mercado educacional”. De acordo com Lima (2012), o Decreto Presidencial 5.205/2004, que regulamenta a ação das fundações de direito privado nas univer- sidades públicas, e a Lei de Inovação Tecnológica (10.973/2004) são arcabouços jurídicos criados pelo Governo Federal que configuram uma nova condição ao tra- balhador docente: empresário de si mesmo (LIMA, 2012, p. 16).

Além das suas funções como professores de ensino de graduação, os docentes, para conseguirem desenvolver projetos de pesquisas, devem buscar captar recursos por meios próprios. Observa-se, então, a desresponsabilização do Estado em finan- ciar pesquisas e o comprometimento das funções docentes, pois, ao invés de se de-

34 “A expansão da educação superior conta com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), que tem como principal objetivo ampliar o acesso e a permanência na educação superior [...]. As ações do programa contemplam o aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos, a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, entre outras metas que têm o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país. O Reuni foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, e é uma das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE)”. Disponível em: <http://reuni.mec.gov. br/o-que-e-o-reuni>. Acesso em: 04 dez. 2016.

35 De acordo com a Portaria Normativa Interministerial nº 22, de 30 de abril de 2007, o banco de professores-equivalentes é um instrumento de gestão administrativa de pessoal, em cada universi- dade federal, e corresponde “à soma de professores de 3º Grau efetivos e substitutos em exercício na universidade, expressa na unidade professor-equivalente”. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/ arquivos/pdf/professor_equivalente.pdf>. Acesso em 22 jul 2017.

dicar a atividades de pesquisa e extensão e a outros projetos acadêmicos, o professor passa a dedicar tempo para concorrer a editais e, assim, conseguir recursos.

Pode-se notar também, que o desenvolvimento das pesquisas, nesse contexto, obedece a uma nova lógica: a da produtividade. Tal lógica vai de encontro a auto- nomia dos professores, uma vez que seus trabalhos, tanto nas políticas de pesquisa como nas de pós-graduação, são avaliados a partir de orientações dos órgãos de fo- mento à produção científica, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi- co e Tecnológico (CNPq) (LIMA, 2012).

Essa lógica produtivista afeta tanto o trabalho como a formação docente, visto que os professores não poderão desenvolver suas pesquisas com maior qualidade, pois terão que obedecer a prazos impostos pelos órgãos de fomento à produção científica. A avaliação, nesse novo contexto, prioriza a quantidade de trabalhos pro- duzidos, em detrimento da qualidade.

Dessa forma, Vale (2012) observa que se constitui uma nova cultura organi- zacional, a qual se baseia num ritmo mais intensificado de produção. Nessa nova lógica, “o parâmetro político-pedagógico é subsumido aos princípios da raciona- lização (via burocratização, cumprimento de metas e prazos) e fundamentado na competitividade entre os docentes” (VALE, 2012, p. 18). A preocupação em produ- zir torna-se o fator principal para o desenvolvimento das atividades docentes, visto que seu desempenho é medido a partir da produtividade. Ainda conforme a autora, A pressão por atualização constante do Currículo Lattes é um dos instrumentos que evidencia a dinâmica de intensificação do trabalho docen- te. A sociabilidade produtiva é expressa no cotidiano acadêmico e o Lattes torna-se o termômetro do nível de competitividade e de hierarquização entre os professores, ao tempo em que também mensura o valor do docente para captar recursos (VALE, 2012, p.19).

Essa competitividade, além de alterar o clima institucional, compromete tam- bém a identidade coletiva, uma vez que “a intensificação do trabalho docente, o maior academicismo e uma relativa descrença da reversão dos processos de exi- gências produtivas e precarização do trabalho docente, parecem esvaziar [...] a luta

coletiva mais geral” (VALE, 2012, p. 206). A formação docente também é compro- metida, pois, conforme salienta Isaia,

Um clima institucional pautado pela solidão e pela angústia pedagógica difi- culta o compartilhar saberes e experiências que poderia estar voltado para o aprimoramento docente, dificultando, assim, a formação de uma identidade tanto individual quanto coletiva de ser professor e não apenas a de ser espe- cialista em sua área de conhecimento. (ISAIA, 2005, p. 68)

É necessário, portanto, que se ultrapasse esse clima institucional e que haja coletividade para que se possa questionar o modo como a educação superior está se desenvolvendo, questionando, consequentemente, o papel docente dentro dessa lógica. É essencial, no entanto, que hajam espaços de sociabilização entre docentes, bem como espaços de formação, em que seja construída uma identidade docente.

A construção identitária é fundamental, pois, como afirma Burnier (2007), subsidiará a maneira como o homem se coloca frente ao mundo e às relações de trabalho. Dessa forma, “é imprescindível que as formações [docentes] sejam reali- zadas junto aos professores, levando-se em consideração suas vivências, dúvidas e o contexto de seu trabalho” (FRANZOI e SILVA, 2014, p. 53).

A formação docente nas universidades, bem como em outras IES, deve le- vantar, além de questões relacionadas aos saberes pedagógicos e específicos de cada área, questões relacionadas às condições de trabalho docente (precarização salarial e a dificuldade de acesso a recursos), de saúde (afastamentos, doenças), de rela- ções interpessoais (competitividade, individualismo), da finalidade das atividades (respostas às demandas das agências avaliadoras) e do perfil político-pedagógico dos sujeitos e das atividades que integram a atividade docente, pois, segundo Vale (2012), essas áreas compõem o ethos acadêmico, sobre o qual incidem as implicações da contrarreforma universitária.

Para além do ambiente universitário público, observa-se também a precari- zação docente nas IES privadas na modalidade presencial. De acordo com Lima e Pereira (2008), algumas das características do cotidiano dos docentes destas ins- tituições são as salas de aula lotadas e o não pagamento pela preparação da aula, em que os professores somente recebem pela hora-aula ministrada, as quais afetam

também a qualidade da relação pedagógica, pois o aprendizado qualificado requer tempo e dedicação docente a cada aluno. Isso se fragiliza devido à grande quanti- dade de alunos em relação à quantidade de docentes.

A realidade nas IES privadas, portanto, afeta também a formação docente, pois, além de estarem muitas vezes desvinculados de atividades de pesquisa e ex- tensão, muitos atuam em diversas instituições para complementarem a renda, o que acaba comprometendo pensar o papel docente para além da sala de aula.

Dessa forma, o que se percebe é que para se falar de formação e trabalho docente na educação superior, deve-se partir primeiramente do contexto político, social e econômico em que a política educacional está pautada. A partir da análise feita até aqui, observa-se que o modo de produção/reprodução da lógica capitalista implica em reconfigurações do direito social à educação, a qual é transformada em mercadoria, bem como tem impactos no trabalho e na formação do docente, com- prometendo a luta coletiva dessa categoria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com o exposto neste artigo, verifica-se que apesar de a educação superior ser considerada um direito social a ser garantido pelo Estado, passa a ser alvo de uma lógica capitalista que a constitui como mercadoria. O próprio pro- cesso de expansão da educação superior iniciado na década de 1990 é regido pela lógica capitalista e o Estado dá suporte à sua privatização, a partir das isenções e dos recursos repassados a essas instituições. Há, portanto, a perda da dimensão da educação superior como direito social.

A contrarreforma da educação superior traz impactos também para o perfil e a atuação do docente do ensino superior, que tem seu trabalho avaliado dentro de uma lógica produtivista. Essa lógica acirra a competitividade entre os docentes, comprometendo, assim, a construção da sua identidade coletiva, uma vez que a preocupação docente passa a ser a busca por recursos para a realização de pesquisas, bem como produzir trabalhos excessivamente para que se possa preencher o currí- culo Lattes, além de exercer funções de gestão.

Observa-se, portanto, a importância de espaços de encontros e de formação para que se possa construir coletivamente a identidade docente e compreender qual o seu papel, partindo, para isso, da discussão sobre as mudanças pelas quais passa a educação superior e como essas afetam o trabalho docente e a formação profissional dos estudantes. Dessa forma, pode-se partir para um debate mais ampla sobre o papel da educação superior para a sociedade brasileira, bem como fortalecer a luta por uma educação pública, gratuita, de qualidade e universal.

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A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO