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PARTE II – DISCUTINDO UMA HISTÓRIA DE VIDA: ARTICULANDO TEORIA E

2.7. Emancipação: um salto qualitativo

Partimos agora para a última parte de nossa conversa com S. fazendo uma análise da história de vida aplicando os conceitos teóricos que sustentam a teoria de Ciampa, de que Identidade é Metamorfose em busca de Emancipação.

Esclarecemos que essa parte da história de vida de S. deu-se há cerca de um ano depois de nossos primeiros encontros. Essa é uma informação importante porque permite analisar e compreender como a comunidade de relacionamento virtual atuou no processo de identidade de S.

Ao retomar nossa conversa fomos surpreendidos com a seguinte fala:

Rael, está acontecendo um processo novo agora... lembra que te falei das diferenças entre a S. e a P., (ver II parte, item 1) e que era a P. que tomava as rédeas da vida, que era assertiva, que sabia se posicionar, etc? Bem... No meu facebook eu não adotei mais um nick. Esta lá, meu nome e sobrenome. E antes havia várias travas, como S, eu não poderia ter "opiniões polêmicas" ou lutar por alguma causa que eu acreditasse, porque ou havia alguém a me lembrar "Você é uma psicóloga, não pode pensar assim..." ou eu mesma me cobrava um posicionamento mais neutro, afinal, eu era uma psicóloga... (risos).

Bem, não mais. Pela primeira vez eu estou me permitindo ser eu mesma, sem nenhum recurso, nenhuma máscara para me proteger disso.

O texto é auto-explicativo, vale lembrar que na primeira parte da pesquisa tratamos de conceituar emancipação e a primeira definição, do dicionário Aurélio, diz que é a ação ou efeito de emancipar-se: alforriar; libertação. Na perspectiva marxista falamos em emancipação humana que pode ser entendida como autodeterminação, desenvolvimento pessoal, algo voltado mais para si mesmo.

Vimos, ao falar sobre algumas características das comunidades de relacionamento virtual, como S. encontrou na comunidade virtual formas para romper limitações, superar dificuldades, encontrar caminhos e sentir-se mais livre para se mostrar como gostaria de se representar. Neste novo momento de sua vida S., inicia falando em “um novo processo”, exatamente como um dos pressupostos teóricos adotado para compreender identidade. Essa informação é vital para nosso objetivo de compreender como as comunidades de relacionamento virtual atua no processo identitário, sob o prisma do sintagma Identidade- Metamorfose-Emanciapção, de Ciampa (1987, 1995).

E o que vem a seguir é ainda mais surpreendente porque descreve o conceito de emancipação que adotamos. S. consegue assumir as “rédeas” de sua vida, diz que não precisa mais de P. seu nick, agora usa, em uma nova comunidade de relacionamento virtual (facebook) o seu nome e sobrenome oficial. Deixando evidente um salto emancipatório em sua vida. Diz ainda que hoje não está mais presa ao que os outros pensam ou podem falar dela, (...) Pela primeira vez eu estou me permitindo ser eu mesma, sem nenhum recurso, nenhuma máscara para me proteger disso.

Vemos na história de S., o mesmo processo encontrado na história de Severina quando começa a “reconhecer-se humano... a transformação das determinações exteriores em autodeterminação” (CIAMPA, 1995, p.144). E S. completa “antes havia várias travas”, seu pensamento era outro, conforme Ciampa, um “não-pensar”, porque quem pensava era P.

Diante de sua fala é possível observar, ainda, outros princípios que se aproximam do conceito Marxista de emancipação humana: autodeterminação, desenvolvimento pessoal e intelectual. S. sente-se livre da coerção dos outros; não está mais “presa” a determinações sociais. É possível perceber o processo de superação da ordem social de um sistema

consolidado no mundo presencial. O homem individual real recuperou em si o cidadão (MARX, 1975).

Porque eu sou mulher, bruxa, feminista, ativista pelas causas que acredito e também... psicóloga. E veja, eu só tenho a obrigação de ser "imparcial" no exercício da minha profissão, o que não é o caso em um perfil pessoal de uma rede social...

Então absolutamente tudo que eu penso e acredito, todas as causas que me movem, estão estampadas agora em meu perfil, para quem tem olhos ver... isso me deu uma liberdade incrível, Rael.

É importante lembrar, também, que, no primeiro momento de nossos encontros, S. inicia seu relato de história de vida dizendo-se “ser só mais uma...”, o que representa o sistema e o mundo da vida, enquanto reprodução material, regida pela lógica instrumental (HABERMAS, 1987), que não permitia ser ela mesma. A comunidade virtual permitiu criar um novo espaço de interação diferente, um espaço desterritorializado que lhe ofereceu um novo caminho em sua luta por emancipação.

Foi um momento de despertar pra mim. Como disse anteriormente, nos meus outros relatos, foi como se o mundo fizesse sentido pela primeira vez, como olhar por uma janela que estava desde sempre trancada... e era apenas aquela realidade "sem horizontes" que eu conhecia. Onde as coisas "são assim, porque tem que ser", porque sempre foram. No caso, eu era uma menina que sequer sabia que podia existir algo além do Deus Pai Todo Poderoso, que ficava te vigiando para te punir a qualquer sinal de desobediência às suas ordens.

Em sua luta para deixar de ser “só mais uma” – para ser alguém – reconhecer sua identidade, S. encontra na comunidade virtual uma janela, uma possibilidade para romper com a mesmice, “se sentia trancada” e encontra “outra realidade, sem horizontes”. Agora percebe que as coisas não têm que ser assim “... porque sempre foram assim”. S. se liberta de uma

poder maior - do Deus Pai Todo Poderoso, que sempre a vigiava; em termos marxistas podemos pensar que ela se liberta da coerção do Estado e da Religião.

Para Ciampa (1995), é a possibilidade de romper com a mesmice que pode ser um impedimento à emancipação. É a possibilidade da alterização das personagens pressupostas. O termo alterização, trazido por Ciampa expressa a idéia de uma mudança significativa – um salto qualitativo – que resulta de um acúmulo de mudanças quantitativas, às vezes insignificantes, invisíveis, mas graduais e não radicais, que podem indicar uma possibilidade e uma tendência, da conversão das mudanças quantitativas em mudanças qualitativas, mudanças condicionadas às questões históricas e materiais determinadas(LIMA, A., 2007).

A partir desse livro (BRIDA) e de todo o processo que ele desencadeou, eu descobri não somente meu caminho espiritual, nascia ali também um modo de vida e de consciência política: a feminista.

Ao romper com a mesmice S. supera uma personagem pressuposta, é a expressão do outro “outro”, que também sou Eu, o que Ciampa (1995) chama de mesmidade “(...) pela aprendizagem de novos valores, novas normas, produzidas no próprio processo em que a identidade está sendo produzida, como mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir)” (CIAMPA, 2002: 241). Segundo Lima, A. (2007), isso não é fácil, a criação de novas normas, novos valores e projetos universais encontram barreiras sociais. Por isso a importância da dialética nessa categoria para a Psicologia Social, seja na possibilidade de releituras da realidade, no comprometimento com a emancipação social ou a promoção de identidades pós-convencionais.

S. demonstra estar feliz, o que nos remete a outro princípio importante quando conceituamos emancipação. Agora é possível fazer um paralelo com a crítica à razão feita por Horkheimer. A razão diz que devemos buscar realização e libertação na realidade do sistema regido pela lógica instrumental, adequando-se ao poder político e econômico. Contudo, S. contraria essa lógica e busca na realidade virtual um sentido para sua vida e hoje se diz “mulher-bruxa-feminista-ativista e psicóloga”, sente-se livre “isso me deu uma liberdade incrível”; aparece o sujeito revitalizado de Horkheimer. S. rompe com o modelo de sociabilidade a que estava associada e que não permitia ser ela mesma.

Eu fui uma menina que cresci na chamada família "católica não praticante", mas que diz coisas pra crianças como "não faz isso porque papai do céu esta olhando". Eu não me identificava com isso. Não fazia o menor sentido pra mim um "Papai no céu" que era só amor, mas também castrador e punitivo. Um papai que via as mulheres como a origem de todo o mal na face da terra.

Em sua crítica da razão Horkheimer critica a razão sem negá-la. Na verdade é uma crítica aos moldes iluministas; o que na vida de S. pode ser compreendido como a realidade do mundo presencial como única realidade (razão). Ela subordina essa razão (realidade concreta, presencial), “... que não fazia o menor sentido”, a seus interesses encontrados na realidade virtual. Ela se apropria de um princípio fundamental para a crítica da razão de Horkheimer, o princípio da orientação para a emancipação. “A teoria crítica que visa a felicidade de todos os indivíduos, ao contrário dos servidores dos Estados autoritários, não aceita a continuação da miséria” (HORKHEIMER, 1991, p.72). S. liberta-se da escravização humana pelos mitos e medos como forma de pressão social na própria construção de si mesmos (Horkheimer, 1991). Para o autor, a razão só faz sentido quando está comprometida com a realidade e contribui para a emancipação do indivíduo.

Ao concluir essa parte é importante ressaltar que não estamos falando em emancipação como algo a ser concretizado em sua plenitude, a socialização é uma forma de emancipação e essa emancipação vai adquirindo novas exigências emancipatórias. Por isso falamos inicialmente em saltos qualitativos ou na linguagem Habermasiana, fragmentos de emancipação.

S. demonstra de forma inequívoca a possibilidade de fragmentos emancipatórios por meio das comunidades de relacionamento virtual quando diz: “Eu sou eu, independente do ambiente em que transito agora”. As metamorfoses sempre acontecem, seja em que realidade for, e é assim que podemos entender Identidade; nosso destaque é para as novas possibilidades de Identidade e Metamorfose.