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PARTE II – DISCUTINDO UMA HISTÓRIA DE VIDA: ARTICULANDO TEORIA E

2.3. Questões de Pertencimento

Eles (a comunidade) se tornaram uma segunda família pra mim. Como eu era a mais nova do grupo, todos eles de certa forma me adotaram. (S.)

O que faz o humano é seu processo de humanização; as pessoas necessitam comer, beber, ser protegidas e pertencer a um grupo. Caso contrário sentem-se excluídas, sós, sem identidade, “inumanos”. Ser humano é ser semelhante. Pertencer significa simultaneamente ser incluído e estar separado, é ser parte de uma comunidade diferenciada e não de outra. Por outras palavras, o ser humano é inerentemente uma criatura social cujas necessidades de identidade só podem ser satisfeitas numa relação comparativa de inclusão/exclusão com outros grupos.

Para que uma “identidade nickname” (identificação no ciberespaço) seja a representação da pretensão identitária é necessário que o outro entre no jogo pretendido pelo usuário. Para que seja possível o exercício das características e das práticas comportamentais escolhidas faz-se necessário que o outro seja um sujeito ativo que também está exercitando e explorando novas possibilidades existenciais. Sem essa interação corre-se o risco de um delírio identitário.

Segundo Almeida, J. (2005), a “nova identidade” só se realiza no movimento de reconhecimento do outro. Para o autor,

Todo movimento de auto-realização contém pretensões que terão de ser reconhecidas intersubjetivamente pelos outros membros da comunidade real e se isto não acontecer, ou o sujeito terá que atropelar os outros para se realizar, ou será impedido por elas (FERREIRA, R., 2000, p.153, apud: ALMEIDA, 2005).

Portanto, a pretensão identitária construída virtualmente, também, necessita de reconhecimento do outro. O usuário precisa que alguém compartilhe de sua identidade online, que seja um cúmplice, a fim de que possa se tornar, ainda que por meio do nickname e dos papéis representados naquele momento. S. que se apresentava como P. encontrou um “outro” que permitiu dar continuidade às suas relações.

...nas comunidades virtuais; tenho o mesmo grupo de amigos há mais de uma década e acredito que uma amizade demanda tempo e atenção consideráveis. Prefiro manter muito bem os que eu tenho, a ter uma rede vasta de “colegas” com os quais não interajo efetivamente. Nem todo grupo é uma comunidade. O sentimento de pertencimento é um elemento fundamental para a definição de uma comunidade. A “novidade” ou um dos diferenciais das comunidades virtuais é que é possível pertencer a distancia; o pertencimento não depende de uma localização estática. Evidentemente, isso não implica a pura e simples substituição de um tipo de relação (presencial) por outra à distância, mas possibilita a co-existência de ambas as formas, com o sentimento de pertencimento sendo comum às duas. Em seu relato sobre a comunidade S. diz que costumava encontrar-se num parque, contudo, a única pessoa citada nominalmente, ‘M’, que mora no Japão, nunca encontrou pessoalmente.

O M. veio ao Brasil algumas vezes, mas eu nunca o encontrei. Outras pessoas do grupo chegaram a conhecê-lo. Meu ultimo contato com ele foi em 11 de setembro de 2011. Era o dia em que ele retornaria em definitivo para o Japão.

Quando se constitui uma identidade online, o indivíduo está projetando desejos e fantasias que satisfazem suas carências e necessidades mais íntimas e por meio de contatos, efêmeros ou duradouros, a pessoa encontra reconhecimento protegida pelo anonimato da internet. Em outras palavras, nas páginas da internet o usuário convive com multiplas pretensões identitárias, podendo transitar livremente de acordo com as contingências e com sua própria vontade, vivenciando novas e distintas situações por meio de uma sucessão rápida e cambiante de aspectos e características de si mesmo.

Desejos e crenças, necessidades e memórias, fantasias e normas me dizem, de diferentes maneiras, quem sou, e me sugerem uma forma móvel de composição daquela diversidade. Naturalmente, também a natureza fluida da identidade dos internautas não escapa à ambivalência. De fato, se de um lado indica multiplicidade e abertura no possível, de outro evoca incoerência e impossibilidade de decidir, com risco de resvalar na irresponsabilidade (MININNI, 2008, p.206).

O fato de que a pessoa mais importante para S. – seu mentor - ser a única pessoa que ela não conheceu pessoalmente é extremamente relevante porque é uma característica ímpar da comunidade virtual. É a possibilidade de encontrar-se e/ou projetar-se no outro. Sem as

limitações do encontro presencial as possibilidades e concretude da pretensão identitária são potencializadas.

O trânsito livre das comunidades virtuais permite o desenvolvimento da individualização no sentido de autonomia e rompe com barreiras isolacionistas. Castells (2000, p. 79), referindo-se a Michel Maffesoli, fala sobre “pulsão gregária”; isso para ressaltar que as pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a agrupar-se em organizações comunitárias que ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença. Esse movimento dialético – incluindo-se ao se excluir - encontra realização e satisfação nas comunidades de relacionamento virtual.

Rheingold (1993), foi um dos primeiros a afirmar, já na década dos anos 1990, quando nascia uma nova forma de comunidade, que reuniria as pessoas online em torno de valores e interesses compartilhados poderiam se estender também à interação presencial. A partir da comunidade e sua virtualidade S. encontrou o pertencimento e da extensão do virtual para o presencial iniciou seu primeiro namoro, um salto importante para uma adolescente que “vivia de casa para a escola”.

Por alguns anos essa rotina se manteve. Encontros diários na sala de bate papo e encontros em pic-nics e círculos de estudo, aos finais de semana. O Parque da Água Branca, em Perdizes, era nosso ponto de encontro. (...) uma das pessoas desse grupo se tornou meu primeiro namorado e é um dos meus melhores amigos até hoje.

O que podemos pensar é que a internet e as comunidades virtuais podem ser mais uma alternativa de comunidade com características diferentes e comuns às comunidades presenciais. Diferente em sua espacialidade e temporalidade e comum nos laços criados em toda comunidade. São comunidades importantes porque abrem novas oportunidades que contribuem para a expansão de vínculos sociais e afetivos.

S. encontra acolhimento na comunidade virtual, em uma noite difícil de uma fase

difícil, adolescência, com/em pessoas de diferentes partes do mundo presencial, ela encontra pessoas para compartilhar seus sentimentos, angustias e conflitos. Em seu relato diz que tinha insônia, passava noites solitárias e assim como o Severino da obra de Ciampa, encontra uma porta para buscar concretizar uma identidade humana, “sozinhos certamente não podemos ver reconhecida nossa humanidade, consequentemente não nos reconhecemos como humanos”

(CIAMPA, 1995, p.38). S. salta para fora daquela vida (realidade concreta) e encontra vida acordada (estado de vigília) no mundo virtual. No grupo cada indivíduo reconhece no outro um ser humano e é assim reconhecido por ele.