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PARTE II – DISCUTINDO UMA HISTÓRIA DE VIDA: ARTICULANDO TEORIA E

2.4. Questões de Solidariedade

Pertencimento e solidariedade caminham junto, essa é mais uma característica das comunidades virtuais encontrada no discurso de S.

Eu havia não só encontrado meu caminho, como também meu clã, meu grupo. (...) Foi o momento em que eu deixava de ser apenas mais uma, mais uma aluna aleatória, mais uma amiga, mais uma adolescente e ia aos poucos, formando minha identidade. Descobrindo o que eu acreditava, o que eu buscava, o que me despertava paixão. A internet desde então sempre foi um dos meios para encontrar e estar “entre os meus”.

Tendo sua capacidade de encontrar afinidade ampliada, graças às características ímpares das comunidades de relacionamento virtual, fica mais fácil encontrar o outro e com isso encontrar-se consigo mesmo. É na realidade da comunidade virtual que S. “... ia aos poucos, formando minha identidade. Descobrindo o que eu acreditava, o que eu buscava, o que me despertava paixão”. Tudo o que S. não encontrara começa a surgir diante de si: amizade, confiança, pertencimento, solidariedade, etc. É o mesmo processo encontrado na comunidade de José quando nasce seu primeiro filho; é “como que há uma mágica transformação da realidade” (CIAMPA, 1995, p.33). O cenário é outro, tudo adquire novo significado. Parafraseando Ciampa (idem), a solidariedade e a amizade não são impedidas pela realidade concreta, presencial. É na ação da comunidade que S. encontra vida. “É o sentido da atividade social que metamorfoseia o real e cada uma das pessoas” (p.34).

Nem toda comunidade é solidária, aliás, nas comunidades presenciais, onde nem sempre escolhemos estar ali, isso é cada vez mais difícil. Muitas vezes, as pessoas fazem parte de uma comunidade, simplesmente porque vivem naquele bairro ou trabalham na mesma empresa. No caso das comunidades virtuais as pessoas escolhem estar ali, elas se aproximam

por iniciativa e escolha própria. Têm um lugar seguro de encontro que permite os seus membros experimentar e explorar novas identidades e/ou personagens, conduzindo a uma interação muito mais desinibida que nas relações presenciais. Embora possivelmente nunca se venham a conhecer pessoalmente, é possível desenvolver uma relação de verdadeira amizade, encontrar solidariedade.

Nas relações presenciais há, inclusive, uma tensão entre pertencer a uma comunidade e ter segurança ou viver fora da comunidade e ter liberdade. A comunidade tradicional presencial geralmente não é aquela sonhada, mas garante certa proteção, entretanto, tira e/ou limita a liberdade porque ali o outro, que não depende de você para estar ali, precisa ser respeitado. A busca por comunidades virtuais, com iniciativa própria, tem sido uma tentativa para lidar com essa tensão entre pertencer e ser livre. S. encontra pertencimento na comunidade que escolheu, encontrou algo importante em seu processo de construção da identidade.

As redes me ajudaram a fazer amizades e construir relacionamentos que foram importantes no processo de construção da minha identidade. Ajudaram a definir quem eu sou, quais são meus gostos, meus objetivos, o que eu espero do mundo, o que eu quero me tornar.

(...) Antigamente as pessoas se aproximavam mais por força das

circunstâncias (ex. mora perto, estuda junto, etc), hoje se aproxima por interesse; por identificação; por afinidade.

A qualidade de membro numa comunidade virtual é normalmente intencional, uma vez que as pessoas escolhem a comunidade da qual querem fazer parte. Os membros solidarizam-se, há um sentido de pertença e de apoio social. Basicamente, as pessoas desempenham as mesmas atividades no mundo virtual e no mundo físico – discutem, protestam, lutam, reconciliam-se, fazem amigos, divertem-se (RHEINGOLD, 1993). As comunidades virtuais oferecem maior flexibilidade de escolhas e com isso facilitam suas pretensões identitárias.

Ao falar de sua identidade S. traz abertamente alguns dos princípios fundamentais para, segundo Ciampa, entender identidade. O autor conceitua identidade a partir de perguntas como: “Quem sou eu?” e “o que pretendo ser?”. S. diz que suas relações ajudaram a “definir” quem é e o que quer se “tornar”. Assim como defende Ciampa, S. fala de seu processo de

identidade como sendo relacional e histórico; um processo de interação e transformação humana.

A sociedade contemporânea tem se mostrado contraditória; ao mesmo tempo em que há movimentos favorecendo a reprodução de valores egoístas e de isolamento pessoal, estes também acabam por gerar seu contraditório.

Os relacionamentos virtuais oferecem uma alternativa ao contraditório. Se a sociedade parece estar mergulhada no individualismo, por um empobrecimento das relações sociais, o uso da internet e suas comunidades virtuais permitem, sem a necessidade de um encontro presencial, criar vínculos sociais e afetivos. Essa possibilidade favorece movimentos que funcionam como fragmentos emancipatórios.

Nos relacionamentos face a face sou mais tímida e mais “inassertiva”, estou mudando isso aos poucos. Na rede eu sei me posicionar muito bem, colocar minhas ideias e opiniões de forma clara, mesmo que vá contra a maioria. Nos relacionamentos cotidianos, costumo “ficar na minha” mais vezes, exceto no trabalho (risos).

A superação de algumas dificuldades impostas pelo mundo presencial é destacada quando S. diz que nas relações face a face tem mais dificuldade de dizer o que pensa – inassertiva – (sic) e reconhece que uma realidade virtual está ajudando a romper essa dificuldade, aos poucos está adquirindo autocontrole sobre sua vida.

Castells (2000), fala que as pessoas resistem ao processo de individuação e atomização, tendendo a agrupar-se em comunidades que geram um sentimento de pertença. Segundo o autor existem diversos tipos de movimentos sociais que desenvolvem uma práxis comunitária, dentre os quais estão os relacionamentos em comunidades virtuais voltadas para a solidariedade, em que as pessoas encontram seus “iguais”; onde identificam-se garantindo melhores condições de existência e participação na sociedade. É o que vemos acontecer com S., depois de ser acolhida, depois de experimentar a solidariedade da comunidade virtual, alguns meses depois, ela pode fortalecer seu nível de relacionamentos e dar continuidade em seu “caminho”.

Nos conhecemos pessoalmente alguns meses depois, em um pic-nic organizado por uma das listas de discussão de que participávamos. Depois desse encontro, formamos um círculo de estudos sobre magia chamado Água da Lua, meu pai teve que assinar uma autorização e autenticar em cartório para que eu pudesse participar (risos).

Tomando por base o exposto podemos pensar que as pessoas enfrentam uma luta por “sobrevivência”, um desejo de emancipação. Se o mundo presencial, por suas características pluralistas e hedonistas, dificulta a luta por emancipação, o mundo virtual com suas potencialidades aumentadas, surge como uma nova realidade. As comunidades virtuais não são tão carregadas de estigmas como as comunidades presenciais; esta é outra característica importante que vamos destacar.

2.5. Questões de Estigmas

(...) o que mais me atraía quando buscava conhecer as pessoas nas comunidades virtuais, é que na internet eu conhecia primeiramente o interior delas. Quem elas são, o que pensam de diversos assuntos, quais são seus gostos, hobbys, valores. Tinha tempo pra conhecer a fundo quem a pessoa realmente é, antes de conhecer a “Casca”...isso realmente me fascinava. (grifos do autor).

Na Grécia antiga foi criado o termo estigma, este conceito estava relacionado a algum sinal corporal que representava um status, fosse ele bom ou ruim. Um sinal que o identificava como diferente – de um ideal imaginário – e, portanto, deveria ser evitado especialmente em lugares públicos. Esse é o recorte do estigma que vamos usar. A opção pelos estigmas corporais, mais uma vez, deu-se em virtude do relato de história de vida de S. que nos leva a pensar que, neste ponto, há um motivo importante para que S. optasse pelas comunidades de relacionamento virtual.

Assim como na Grécia antiga o estigma continua a ser usado, as sociedades modernas, de forma implícita ou explicita, continuam categorizando as pessoas, usando padrões estéticos aos quais são atribuídos significados estigmatizantes. Atualmente, o estigma é mais usado