• Nenhum resultado encontrado

PARTE II – DISCUTINDO UMA HISTÓRIA DE VIDA: ARTICULANDO TEORIA E

2.5. Questões de Estigmas

organizado por uma das listas de discussão de que participávamos. Depois desse encontro, formamos um círculo de estudos sobre magia chamado Água da Lua, meu pai teve que assinar uma autorização e autenticar em cartório para que eu pudesse participar (risos).

Tomando por base o exposto podemos pensar que as pessoas enfrentam uma luta por “sobrevivência”, um desejo de emancipação. Se o mundo presencial, por suas características pluralistas e hedonistas, dificulta a luta por emancipação, o mundo virtual com suas potencialidades aumentadas, surge como uma nova realidade. As comunidades virtuais não são tão carregadas de estigmas como as comunidades presenciais; esta é outra característica importante que vamos destacar.

2.5. Questões de Estigmas

(...) o que mais me atraía quando buscava conhecer as pessoas nas comunidades virtuais, é que na internet eu conhecia primeiramente o interior delas. Quem elas são, o que pensam de diversos assuntos, quais são seus gostos, hobbys, valores. Tinha tempo pra conhecer a fundo quem a pessoa realmente é, antes de conhecer a “Casca”...isso realmente me fascinava. (grifos do autor).

Na Grécia antiga foi criado o termo estigma, este conceito estava relacionado a algum sinal corporal que representava um status, fosse ele bom ou ruim. Um sinal que o identificava como diferente – de um ideal imaginário – e, portanto, deveria ser evitado especialmente em lugares públicos. Esse é o recorte do estigma que vamos usar. A opção pelos estigmas corporais, mais uma vez, deu-se em virtude do relato de história de vida de S. que nos leva a pensar que, neste ponto, há um motivo importante para que S. optasse pelas comunidades de relacionamento virtual.

Assim como na Grécia antiga o estigma continua a ser usado, as sociedades modernas, de forma implícita ou explicita, continuam categorizando as pessoas, usando padrões estéticos aos quais são atribuídos significados estigmatizantes. Atualmente, o estigma é mais usado

afim de “preservar” um ideal imaginário. Aqueles que estiverem fora do padrão, ou com diz Goffman (2004), diferente da identidade virtual, são estigmatizados.

Quando a sociedade faz afirmações e/ou atribuições em relação ao que o outro deveria ser, está imputando um estereótipo que não corresponde a sua identidade real, essa caracterização é sua “identidade social virtual” (GOFFMAN, 2004). O estigma atualizado. Essa “identidade social virtual”, geralmente, é algo indesejado porque se for algo positivo irá esbarrar na falta de veracidade e se for algo negativo, pelo óbvio. Por isso todo estigma dificulta relações sinceras e duradouras. As pessoas mantêm relações distantes com receio de ser marginalizadas em função do estigma que lhe foi predicado. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas.

A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias: Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento com "outras pessoas" previstas sem atenção ou reflexão particular. Então, quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e os seus atributos, a sua "identidade social" (GOFFMAN, 2004 p. 5).

O autor amplia as possibilidades de estigmas e faz referência a três tipos de estigmas: aqueles relacionados ao corpo, assim como os gregos (sinais ou deformações físicas, por exemplo); estigmas relacionados às culpas de caráter individual (viciados, doente mental, homossexualidade) e os estigmas tribais de raça, nação, religião (negros, macumbeiros). Visto assim, de forma mais ampla, não podemos afirmar que as comunidades virtuais estão livres de estigmas, contudo, é possível falar que suas características diminuem as possibilidades de se estigmatizar alguém.

Ao preencher seu perfil a pessoa escolhe as características que irão identificá-la. O perfil pessoal geralmente inclui traços raciais, altura, aparência, gênero sexual, preferências, etc. A construção de um perfil é algo pensado, de forma a dar opção a respeito de como quer ser visto. Busca-se eliminar o que não condiz com o que se quer representar, o que favorece a representação de sua pretensão identitária. Sobre isso S. diz:

Costumo colocar na minha profile5. alguma citação que tenha relação

à fase em que estou vivendo no momento. Pequenos trechos de

músicas, poesias ou livros. Também deixo claro tudo que é importante pra mim, quais as minhas principais relações sociais, meus autores favoritos, músicos, filmes, enfim, tudo que faz parte de quem eu sou. (...) Quem conseguir descobrir “quem eu sou” através delas, é alguém que conhece os mesmos códigos que eu. Uma delas é uma frase de uma música do John Lennon, chamada Beautiful Boy, a frase é “Life is what happens to you while you're busy making other plans” “Vida é o que acontece a você, enquanto você esta ocupado fazendo outros planos”. Acho a música inteira linda, é um pai cantando para seu filho pequeno dormir, e enquanto isso, falando sobre alguns valores, algumas expectativas. Coloquei no meu perfil porque estou passando por um período intenso de viver. Mas principalmente, é o melhor conselho que já li. Atualmente me sinto vivendo e aprendendo intensamente, e não fazendo planos. Uma outra frase que esta no perfil é o trecho de uma música da Loreena McKennitt, “O vento é preenchido por milhares de vozes, elas passam pela ponte e por mim”. Essa música, que se chama All souls night, chega a me levar às lágrimas todas as vezes que ouço. É uma oração pra mim. Fala sobre um dos mais importantes rituais da minha religião6, o Samhain, o ano

novo celta. E fala sobre reencontrar-se. Fala sobre imagens que sempre me perseguiram... aqui tem a tradução dela http://letras.terra.com.br/loreena-mckennitt/25249/traducao.html A frase em específico que eu escolhi “O vento é preenchido por milhares de vozes, elas passam pela ponte e por mim” é porque me

6 Wicca é uma religião neopagã baseada em crenças pré-cristãs da Europa Ocidental. Seus seguidores são conhecidos como Wiccanos ou simplesmente bruxos. É uma religião matriarcal de culto à Deusa Tríplice e ao Deus Cornífero. Celebram os ciclos da natureza através de rituais solares e lunares. Esses rituais solares são conhecidos como Sabbaths, e tem origem no ano novo celta. Os celtas tinham uma concepção de tempo cíclica e não linear, dividiam o tempo em duas grandes rodas, marcando o início das estações através da observação de solstícios e equinócios, e os festivais do fogo, marcando importantes períodos para a colheita. O mais importante desses festivais é o Samhain, que marca o início do ano novo celta, e a entrada na parte escura da Roda do ano, um período de introspecção e recolhimento, prenuncio da chegada do Inverno. Esse festival ainda hoje é comemorado e sobreviveu à cristianização como Halloween ou Dia das Bruxas.

sinto fazendo parte do mundo, como se eu tivesse encontrado meu lugar.

Sendo a identidade um processo contínuo não podemos falar em um Eu real, verdadeiro ou fixo, simplesmente porque ser um pessoa implica sempre tornar-se uma pessoa, estar num processo. Ao se identificar na comunidade virtual S. fala, em sua profile, que se identifica com base em um momento de sua vida; acredita que esta é a melhor forma de responder ao objetivo da página – responder a pergunta: Quem sou? “Em minha profile faço citação que tenha relação à fase em que estou vivendo no momento”. S. descreve o que Ciampa (1995) diz: identidade são momentos da história de vida.

Diante da dificuldade que todos temos para responder: “Quem sou?”; S. usa códigos e desafia que a identifiquem “...Quem conseguir descobrir quem eu sou através delas, é alguém que conhece os mesmos códigos que eu”. E em seguida fala de seus sentimentos, naquele momento, segundo a música escolhida para a representar, S. “é” uma filha que precisa carinho e acolhimento, a música fala sobre “...um pai cantando para seu filho pequeno dormir...”. Fala de seu presente (valores) e seu futuro (expectativas), aspectos importantes que a identifica como pessoa. Assim ela descreve quem é naquele momento, se sente como se tivesse encontrado seu lugar. S. assinala para o encontro de S. com P., em que deixaria de ser só mais uma (S.) e seria alguém (P.).

É em uma página na internet, onde acredita poder falar do “interior” e onde não se valoriza a “casca”, que S. sente-se livre para dizer quem é. Acredita que essa é uma forma de evitar estigmas em uma sociedade estigmatizadora. A sociedade apresenta características sociológicas em que os indivíduos possuem um traço que dificulta fazer-se conhecido para além do estigma e que acaba por antecipar sua apresentação. Uma vez que em nossa sociedade o indivíduo estigmatizado adquire modelos de identidade que aplica a si mesmo é inevitável que sinta alguma ambivalência em relação a seu próprio eu (Goffman, 2004).

Essa ambivalência pode ser compreendida como a necessidade de ser conhecido e o desejo de esconder-se temendo as repressões da comunidade presencial. Esse movimento dialético tem impulsionado a busca pelas comunidades virtuais, por suas características aestigmatizadas. “Uma vez que as comunidades virtuais são normalmente baseadas em textos e acorpóreas, não há lugar para o estigma” (SMITH, 1995, apud SILVA, A., 2002, p. 38). Ainda segundo a autora as comunidades virtuais são comunidades “incorporporeas”

poderosas e construídas livre da geografia ou de fronteiras territoriais (BUGLIARELLO, 1997, apud: SILVA, A. 2002, p.37). Vejamos.

S. busca nas comunidades virtuais pessoas iguais, no caso que se interessam por bruxaria, ou seja, que compartilham coisas em comum, sendo assim o estigma não é conhecido, ou não existe, já que um estigma está ligado ao “diferente” que lhe é atribuído, ela está entre os iguais, ou seja, aqueles que se interessam por bruxaria.

Além de um lugar livre de alguns estigmas, as comunidades virtuais têm sido local para encontros entre os iguais. Segundo Goffman (2004), quando o indivíduo se depara com outro igual, que compartilha os mesmos interesses poderá encontrar nesse apoio moral, a potência para se livrar do peso de carregar um estigma que lhe foi imputado pela comunidade presencial. A comunidade virtual pode propiciar à vida do indivíduo estigmatizado, refugio e amparo. Quando S. diz: “o que mais me atraía quando buscava conhecer pessoas nas comunidades virtuais, é que na internet eu conhecia primeiramente o interior delas... antes de conhecer a casca.”, podemos pensar que sentia-se estigmatizada no mundo concreto- presencial e por isso recorre à realidade virtual.

As comunidades de relacionamentos virtuais oportunizam e permitem que as pessoas se sintam aceitas independente de sua aparência, livre de estigmas tão comuns nas comunidades presenciais.

As amizades não são mais necessariamente locais. As pessoas não são mais abordadas por serem bonitas, se vestirem bem ou exibirem sinais de riqueza. As aparências e o dinheiro tornaram-se pouco importantes, pelo menos para um contato inicial. Os primeiros estágios da comunicação tornaram-se anônimos e “afísicos”. As pessoas se aproximam umas das outras por conta do que seus nicknames ou por conta de que conseguem expressar de si mesmas por escrito (mesmo quando criam um personagem imaginário) (NICOLLACI DA COSTA, citado por CAMPOS, 2000, online).

A dimensão emancipadora das comunidades virtuais permite às pessoas ligar-se a uma representação de si mesmo sem estigmas; permite vivenciar papéis diferentes, qualidades mais satisfatórias e aproximar os sonhos da realidade. S. reconhece seu papel de jovem universitária, mas quer, também, assumir o estado do ego que lhe permita ser a criança de escuta canção de “ninar”. A criança que está dentro dela é ativada por causa do momento difícil que está passando. Na comunidade virtual encontra quem a “adote” como é.

Com a possibilidade do anonimato a pessoa participa de comunidades sem os receios dos julgamentos prévios, dos conhecimentos já acumulados sobre a vida. O sujeito virtual pode ser diferente do sujeito estigmatizado no mundo presencial. Ele pode multiplicar-se em

outras subjetividades, de acordo com os objetivos no mundo virtual, assumindo uma atitude mais assertiva no mundo da vida, por ser menos podada pelos estigmas e pelas visões arraigadas das relações face a face; S diz que:.

Nos relacionamentos virtuais sou verdadeira não faço o que não tenho vontade, não converso com quem não tenho vontade, me permito ser eu mesma e mostrar exatamente quem eu sou, sem me preocupar com “o que vão pensar disso”. Se eu fizesse isso nas relações cotidianas, nenhuma sobreviveria (risos).

Um relato como esse corrobora a hipótese de que as comunidades de relacionamentos virtuais, livres de alguns estigmas, podem atuar como agente potencializador de emancipação por sua facilidade em eliminar e/ou manipular estigmas. O fato é que, se no cotidiano as pessoas são constrangidas por discursos rígidos em que não permitem revelar emoções sinceras, nas comunidades virtuais, atrás de um ecrã, usando um nickname, podem contrariar discursos estigmatizantes, satisfazer a necessidade de pertencimento, romper barreiras de preconceito e experimentar novos momentos de identidade; enfim permite experimentar novas metamorfoses na sua luta por emancipação. Pode ser a ruptura de certos limites da realidade presencial.

S. não apenas escolhe uma nova “identidade” – um nickname – mas trata de encarnar sua nova realidade. Ainda referindo-se a seu perfil nas comunidades virtuais diz:

Em um perfil, cada pessoa é um pequeno universo infinito de possibilidades. Apenas de olhar um perfil no Orkut você já consegue saber o que essa pessoa mais gosta de fazer, de ler, de comer, de ouvir, o que ela faz nas horas vagas, o que ela é profissionalmente, ...como são suas relações e como elas foram construídas, quais são seus sonhos, medos, o que ela odeia, quais movimentos participa e um mundo de outras coisas. Pra quem tem curiosidade sobre o ser humano, é um prato cheio. Não há lugar melhor pra colher informações sobre alguém.

Nas comunidades virtuais as pessoas manifestam discursivamente uma valorização de se apresentar como “verdadeirqs”, buscam expor características que façam sentido não só online, mas que representem seus interesses pessoais. Quando S. diz que apenas olhando o perfil é possível conhecer a pessoa, não percebe que está manipulando estigmas visto que é ela mesma quem escolhe o que apresenta como seu perfil (veremos isso mais à frente). Ao escolher músicas, filmes, poemas e livros, S. está dizendo quem é, sem dizer, deixe que o outro a “leia”. Mas é assim que se sente melhor representada e não por traços sociais que estigmatizam como: cor, raça, gênero, opção sexual, biótipo, religião, nacionalidade, etc.

Identidade social virtual e identidade social real (GOFFMAN, 2004), são realidades de uma sociedade estigmatizante. Quando aqui defendemos a importância da identidade virtual (nickname), não estamos nos referindo ao que Goffman chama de identidade social virtual, uma forma dicotomizada entre o real e o virtual, defendemos sim, uma forma de integração da pessoa. Quando uma pessoa está se relacionando em comunidades virtuais ela está sendo única – não são duas pessoas – o que ela sente e vive é real. O diferencial nos relacionamentos virtuais e a ausência das restrições e de estruturas sociais externas. Com isso a pessoa tem mais facilidade para se reinventar, para experimentar novos personagens de si mesmo, cultivar a diferença do que é, do que gostaria de ser.

...eu passava os dias ansiosa para chegar a madrugada e poder entrar na internet e dividir tudo com eles.

A animação, interação, sentimentos e confrontos nas comunidades virtuais acontecem de fato; a ansiedade de S. era real. Esse é um argumento importante contra os críticos que tratam o virtual como alienante. Não é isso o que a pesquisa está mostrando, ao contrário, no caso de S. as interações online potencializam as relações sociais existentes.

(...) a realidade virtual não é alienação; abre consciência; se aprofunda; se expande. (...) Desse grupo inicial, saíram muitos namoros entre os membros, formação de grupos de magia (os chamados covens7

.), muitas descobertas e a amizade que dura até

hoje, pois graças ao Orkut, em 2004, os poucos contatos que eu havia perdido, foram retomados.

A sociedade é construída de forma tal que é difícil não considerar que, de um jeito ou de outro, convivemos com estigmas. As discrepâncias entre identidade social virtual e identidade social real descrita por Goffman (2004), sempre existirão. Não serão as relações virtuais que irão libertar completamente a humanidade dessa realidade, contudo, vemos nas comunidades virtuais formas importantes de, senão eliminar, ao menos manipular estigmas que dificultam aos humanos se humanizar. Alguém estigmatizado não é completamente humano.

2.6. Questões Assincrônicas: Temporalidade, Espacialidade e Sociabilidade sem