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Questões Assincrônicas: Temporalidade, Espacialidade e Sociabilidade, sem

PARTE II – DISCUTINDO UMA HISTÓRIA DE VIDA: ARTICULANDO TEORIA E

2.6. Questões Assincrônicas: Temporalidade, Espacialidade e Sociabilidade, sem

No ciberespaço criam-se novas comunidades – as comunidades virtuais - em que participam pessoas de todo mundo, mas que não necessitam necessariamente de ter um contacto físico (TURKLE, 1997, 287-288).

Sem as limitações físicas das comunidades virtuais presenciais, as comunidades virtuais não seguem os mesmos modelos de comunicação e interação, mas nem por isso deixam de ser reais, funcionam em outro plano da realidade. Segundo Wellman (1999, apud CASTELLS 2006), não são imitações de outras formas de vida, têm sua própria dinâmica. Transcendem a distância, o custo financeiro, costumam ter natureza assincrônica, combinam a rápida disseminação da comunicação de massa com penetração da comunicação pessoal e não existem no isolamento de outras formas de sociabilidade. As comunidades virtuais constituem-se novos lugares de sociabilidade.

Trata-se não mais de nossos vizinhos, de nossos amigos, de nossos colegas de trabalho ou outros afins, mas de "[...] pessoas de todos os cantos do mundo, pessoas com quem dialogamos diariamente, com quem podemos estabelecer relações bastante íntimas, mas que talvez nunca venhamos a encontrar fisicamente." (TURKLE, 1997, p. 12).

Está é a quarta característica das comunidades que estamos estudando – uma comunidade com características assincrônicas – sua capacidade de transcendência temporal e espacial, também é responsável pela emergência da realidade virtual no mundo da vida.

O lugar onde eu me reunia com os meus amigos diariamente era uma sala de bate papo do UOL chamada "Bruxaria", ainda existe. Era uma sala aberta, e naquela época, as pessoas eram sempre as mesmas. Você pode acessar a sala clicando aqui http://batepapo.uol.com.br/bytheme.html?nodeid=525041.

É interessante como S. fala naturalmente de sua comunidade virtual como “lugar onde se reunia”, parece não fazer distinção alguma entre um espaço virtual e o espaço presencial. Dando, inclusive, o endereço. Essa é uma forma importante para mostrar como a realidade virtual está incorporada socialmente, como esses novos espaços fazem parte da realidade das pessoas.

Muito do que era visto na ficção dos cinemas hoje faz parte da realidade; a realidade virtual é a supressão de fronteiras territoriais e temporais que certamente implicam na transcendência das subjugações físicas. As pessoas partilham experiências de formas variadas em um mundo diferente o que leva também a entrar em contato com novas representações sociais. Se uma comunidade presencial emprega códigos não-verbais para acompanhar as expressões verbais – numa mistura de gestos, vestuário, etiqueta, expressões ou sotaques, produzindo sentimentos, atitudes e comportamentos - os participantes de uma comunidade virtual também possuem seus códigos, recriam ambientes e aceitam regras não escrita, nem visualizada, facilitando o contato entre pessoas que normalmente não o fazem, por timidez, distância geográfica ou qualquer outra forma de inibição (SILVA, A. 2002).

Participar implica em ter acesso, quer seja a um lugar ou ao conhecimento. Foi o que aconteceu com S., ela não poderia obter os livros de Paulo Coelho, contudo, por meio das comunidades assincrônicas, rompeu barreiras espaciais, econômicas e de sociabilidade ao conhecer M., que mora no Japão. Assim obteve conhecimento e com isso pode dar um passo importante, participar das discussões religiosas na comunidade de bruxaria. A participação se opõe a opressão, pois permite que os indivíduos influenciem as decisões que de outra maneira seriam impostas e este é um dos imperativos para a emancipação. Foi participando da comunidade virtual que, em suas palavras, S. deixou “de ser só mais uma...”, atingindo assim, o que Habermas chama de fragmentos de emancipação (sobre isso falaremos a seguir).

O jovem da periferia que dificilmente tem acesso a bibliotecas, viagens ou contatos com pessoas com nível socioeducativo maior, encontra na realidade virtual um mecanismo potencializador onde temporalidade, espacialidade e sociabilidade se mostram mais acessíveis

e possíveis a ele, naquele momento. É a ruptura de certos limites da realidade presencial em tempo e espaços únicos. O indivíduo, em sua luta por emancipação, precisa transgredir os espaços e lugares estáticos que lhes são atribuídos.

A metamorfose representa, em sua forma emancipadora, uma violência criativa que se caracteriza como tal não só por seu impacto, mas, sobretudo, porque este procedimento está além dos limites do pensamento reificado que toma o estabelecimento como normal ou natural, além dos limites do socialmente conveniente e do razoável (ALMEIDA, J. 2005. p.116)

Essa “violência criativa” tem se levantado contra a estrutura social moderna de um Estado capitalista que é rígida e controladora. Castells (2006), citando Nico Poulantzas (1978), ao falar sobre sociabilidade diz que a novidade nas formas de socialização:

...é que absorve o tempo e o espaço sociais, estabelecem as matizes de tempo e espaço e monopoliza a sua organização que se transforma, por ação do Estado, em redes de dominação e poder. Hoje em dia não é assim. O controle do Estado sobre o tempo e espaço tem sido contornado pelos fluxos globais de capital, produtos, serviços, tecnologias, comunicação e informação. O poder histórico do Estado tem sido desafiado por identidades plurais, definidas por sujeitos autônomos. (CASTELLS, 2003, p.293)

É importante lembrar que estamos partindo de uma visão sócio-histórica de Homem; assim ao romper barreiras estruturais como o controle do Estado, estamos falando também, em transformações na identidade dos indivíduos; tendo em vista que indivíduo e sociedade se constroem em um movimento dialético. Ao partir ou preferir os relacionamentos virtuais o indivíduo busca um meio radical de libertação. É radical porque, em princípio, rompe com o mundo presencial e concreto.

Retomemos a história de S.:

Acredito que o universo virtual não tem fronteiras, não falo apenas sobre poder falar com uma pessoa de qualquer canto do mundo, mas poder falar sobre qualquer assunto, a qualquer hora, com a profundidade que eu quiser. Sempre vou encontrar alguém interessado nas mesmas coisas que eu. Na “vida real”, nós temos que falar de assuntos de trabalho no trabalho, de assuntos da faculdade na faculdade, e só nos momentos do tal “cafezinho” é permitido falar de qualquer outra coisa. Somos “formatados” no cotidiano a ser o que a sociedade espera naquele determinado período. Nas relações

virtuais sou 100% sincera; meus valores, pensamentos, interesses e ideias. Na rede eu me permito ser eu mesma, sem máscaras. Não acrescento nada, mas claro que procuro apresentar o meu melhor. Mais do que romper espaços físicos nas comunidades virtuais os participantes manifestam o sentimento comum de que as suas identidades virtuais são objetos evocativos para pensar acerca do Eu (Turkle, 1997). O espaço virtual permite repensar o que é chamado de natural e mascarado, levando à descobertas sobre si mesmos.

Deste modo, as identidades online têm algo em comum com o Eu que emerge num encontro psicanalítico. Também este é significativamente virtual, construído dentro do espaço da análise, onde as alterações que sofre, por mais ligeiras que sejam, podem ser objeto dum aturado exame (TURKLE, 1997 p.383).

Com as relações disseminadas, ou como diz S. “sem fronteiras”, existimos num estado de contínua construção e reconstrução. Cada realidade do Eu abre caminho a novas explorações, a outras realidades.

Algo importante que acontece nas comunidades virtuais e que ajuda a romper barreiras de dominação e poder do Estado é a força potencializadora do grupo. Ao fazer parte de um grupo, nas comunidades virtuais, o indivíduo adquire um sentimento de poder invencível que lhe permite romper barreiras internas que, se ele estivesse sozinho, o teriam mantido sob o domínio e o poder do Estado. O grupo formado por iniciativa e vontade do indivíduo, marcado por interesses comuns, livres de alguns estigmas, em que a solidariedade acontece exerce uma influencia positiva e libertadora sobre o indivíduo. Os grupos de relacionamento virtual permitem o desenvolvimento de maior criatividade e imaginação; não está limitado à realidade concreta. Freud, em seu artigo sobre Psicologia das Massas, referindo-se à obra de Lebon (1920), diz que o grupo dá preferência ao que é “irreal sobre o real”. Os indivíduos, em um grupo, possuem tendências a não distinguir entre as duas coisas. (FREUD, 1976 apud LEBON, 1920, p.33, 77). Penso que o “irreal” a que Freud se refere pode ser aplicado ao virtual, não como contrário ao real, mas como uma realidade diferente. O que Freud chama de irreal podemos chamar e virtual, mas não como contrário do real e sim com algo além do concreto ou presencial.

Essa questão da força do grupo é complexa, Freud e Lebon divergem em alguns pontos, contudo, o princípio que destacamos é que nas comunidades de relacionamentos virtuais o indivíduo se sente fortalecido. S. não distingue família (grupo sanguíneo) e família

(grupo virtual) e usa expressões como: “... eles me adotaram... me sinto em família, em casa... estar entre os meus... existem duas de mim... só faço que gosto...”. São falas que reforçam a ideia de uma força potencializadora do grupo sobre o indivíduo que pode ser libertador do “poder do Estado”.

Encerramos essa parte em que procuramos argumentar como as comunidades virtuais potencializam o processo emancipatório destacando algumas características – pertencimento, solidariedade, estimas e assincronias – que diferenciam as comunidades virtuais das comunidades presenciais. Vamos, em seguida, destacar como a questão da emancipação acontece na história de vida de S.