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O cenário da segunda metade da década de 2000, período de surgimento de muitos dos grupos abordados nesta pesquisa, é composto por dois grandes tipos de ativismos: de um lado, os mais antigos, experientes na ação institucional e conhecedores de todos os seus melindres; por outro, os recém-surgidos, que retomam as ações diretas.

Pouco antes no início dos anos 2000, a juventude começa a emergir no cenário da con- testação social, protagonizando protestos e ações antiglobalização e anticapitalistas em diversas partes do mundo: os Zapatistas em 1994, a rede de Ação Global dos Povos em 1998, os Fóruns Sociais Mundiais ao longo dos anos 2000, etc. Esses jovens atores, muitas vezes ligados ao ideário anarquista ou libertário, mas com referenciais teóricos para além dos autores clássicos dos séculos XIX e XX, formam grupos caracterizados por pautas de contestação mais amplas.

Igor de Oliveira, em sua dissertação a respeito da Praia da Estação, enumera outras carac- terísticas desses grupos, sintetizando-os nos seguintes elementos: ações diretas dotadas de elementos lúdicos (que ele denomina protestos-festa); boicote a grandes corporações; e superação das fronteiras identitárias de gênero, classe, raça, território e idade dos mo- vimentos anteriores (Oliveira, 2012, p.39). Para o autor, a superação dessas fronteiras e o conseguinte entrecruzamento de demandas específicas fazem surgir um questionamento da sociedade em sua totalidade. Por outro lado, esse ativismo jovem não é generalizado, mas restrito a um pequeno grupo.

Outro elemento novo nas formas de ação coletiva desses jovens atores são as tecnologias de informação. A internet tem um papel fundamental como ferramenta de comunica- ção, integração, intercâmbio e organização desses grupos. Mais ainda, ela torna-se uma dimensão de disputa. As lutas passam a se desenvolver não somente no cotidiano e no âmbito institucional, mas também no espaço digital.

Para Oliveira (2012), a data que marca a entrada de Belo Horizonte no movimento con- testatório global é 8 de dezembro de 20001, quando a cidades acompanha outras mais

de 100 cidades de todas as partes do mundo na realização do Dia de Ação Global, um protesto contra a reunião do FMI e do Banco Mundial em Praga. Mas também os carna- vais revolução2, realizados entre 2002 e 2007, podem ser considerados marcos dos novos

ativismos em Belo Horizonte. Além de trazerem a modalidade do protesto-festa, que já

1 L.T. 1999-2002 2 L.T. 1999-2002

vimos ser um modo de ação central para esses grupos anarquistas e libertários, eles inse- rem a disputa pelos espaços públicos, contra a tendência generalizada de sua privatização.

No fim da década de 2000, há uma diminuição dos protestos de rua em torno das lutas globais e um redirecionamento para as questões locais e cotidianas. Igor de Oliveira chama esses ativismos reorientados de “segunda geração libertária”, entendendo a nova prevalência da escala municipal como uma reação ao início das obras urbanas relaciona- das à Copa do Mundo de Futebol de 2014, que acentuam o processo de mercantilização e privatização das cidades (Oliveira, 2012, p.56). Os ativismos que surgiriam na década de 2010 – grande parte deles objetos deste estudo – são, para Igor de Oliveira, herdei- ros desses ativismos juvenis, calcados no ideário anarquista e libertário e inseridos no contexto das lutas anticapitalistas. Tal herança irá refletir nas estratégias de ação (ações diretas, uso de elementos lúdicos, ocupações de espaços ociosos), nas pautas (o reclame ao espaço público, produção de espaços autônomos) e nos atores (jovens, em sua maioria de classe média e escolarizados) dessas novas formas de ação coletiva.

Outros desvios em relação à institucionalização dos ativismos são percebidos aqui e ali, como na Ocupação Corumbiara, em 1996, durante o último ano do mandato da Frente BH Popular. Ela é tida pelas ocupações urbanas mais recentes da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) como seu mito fundador. A retomada definitiva de tais ações, entretanto só irá ocorrer mais tarde. Em novembro de 2006, 15 famílias sob a coordenação das Brigadas Populares ocuparam um edifício abandonado no bairro Serra. A Ocupação Caracol durou apenas cinco meses, mas marca o início da intensificação das ocupações urbanas para fins de moradia. Essas ações tornar-se-ão bastante repre- sentativas no contexto dos ativismos urbanos de Belo Horizonte, capazes de em alguns momentos mobilizar diferentes grupos da cidade (Lourenço, 2013).

A disputa pelo espaço público é uma novidade dos novos ativismos urbanos, reflexo das ações dos grupos anti-sistêmicos internacionais. Ela resulta ainda da intensificação de medidas para o disciplinamento e a higienização desse espaço, isto é, de interdição siste- mática de sua livre apropriação pelos cidadãos.

No imaginário dos ativistas de Belo Horizonte, os precursores da apropriação do espaço público são o Duelo de MCs3 e o D9e1/2 (lê-se Domingo, Nove e Meia)4, ambos surgi-

dos em 2007 no baixio do Viaduto Santa Tereza5 (local que viria a se tornar emblemático 3 L.T. 2003-2007

4 L.T. 2008-2009

5 Os primeiros duelos ocorriam na Praça da Estação próximo ao antigo Espaço Miguilim (hoje Cen- tro de Referência de Juventude), entretanto com a chegada do período chuvoso os encontros passam a

para os novos ativismos urbanos em Belo Horizonte) e ambos “de maneira difundida e sistemática” (P.R., 2015). Mas há uma diferença fundamental entre as duas ações quanto à dimensão espacial. Para o grupo que promoveu o D9e1/2, com afinidades anarquistas e autonomistas, a dimensão espacial foi uma preocupação desde o início: “O Domingo Nove e Meia (D9e1/2) é uma atividade para re-significação do espaço urbano e das rela- ções entre os seus participantes”6. Já no Duelo de MCs a dimensão espacial e seu impacto

não estavam claros de antemão, mas afloraram no processo, circunstancialmente:

A gente foi se entendendo nesse lugar de ocupar o espaço, o que isso sig- nifica, o que essa presença nossa ali numa noite de sexta-feira entre sete e meia-noite significa, o que a presença de jovens de periferia em frente à Serraria Souza Pinto numa noite de sexta-feira, quando tem uma festa cheia de madame, significa. (P.V., 2016)

No Duelo de MCs e ainda em muitos grupos aqui pesquisados, a ação se politizou e se espacializou em seu próprio decorrer. Elas iniciam-se sem perspectiva de embate e seu caráter contestatório surge à medida que revelam-se obstáculos, como a exigência de al- varás ou a falta de manutenção dos espaços públicos. Paulatinamente, os participantes se dão conta do caráter político de suas ações. Em muitos casos foram os entraves criados pelo poder público que levaram os grupos a expandirem suas pautas e a constituírem suas lutas, entendendo que, para a sobrevivência da ação – encontros no espaço público, uso de bicicleta na cidade etc. – seriam necessárias mudanças mais profundas, estruturais.

Inaugurada pelo D9e1/2 e pelo Duelo de MCs, tal dinâmica de ocupação do espaço como forma de atuação disseminou-se nos anos seguintes em ações como a Praia da Es- tação7, as ocupações urbanas para fins de moradia, o Ocupa BH8, os blocos de carnaval, as

manifestações puxadas pelo Tarifa Zero e pelo MPL-BH, as ocupações da Câmara Mu- nicipal9, a ocupação da Prefeitura e da Urbel10 e as atividades culturais autogestionadas

chamadas A Ocupação11. A dimensão espacial das lutas passou a ser tema de discussão

entre os novos ativismos urbanos e o uso do espaço como ferramenta, uma prática cada vez mais frequente e importante, sobretudo em comparação com o período imediata- mente anterior, em que os ativismos estavam recolhidos à atuação institucional.

ocorrer embaixo no Viaduto.

6Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Zx3CrgLVy6Q> acesso em 31 de maio de 2015 7 L.T. 2010[1]

8 L.T. 2011

9 L.T. 2013[4] 2015[3] 10 L.T.2014[3]

Por outro lado, a difusão dessas ações evidencia uma tendência à supervalorização da prática. Um exemplo é o Ocupa BH12, que ocorreu em 2011 no contexto do movimen-

to Occupy internacional. O grupo protestava contra o modo de organização social e econômico e contra a democracia representativa, e por isso escolheu a praça da Assem- bleia, local que reúne a Assembleia Legislativa de Minas Gerais e o Banco Central. O acampamento durou 104 dias, tornando-se um dos mais longos de todo o mundo dentre os Occupys. Mas qual foi a efetividade dessa ocupação para além do aspecto simbólico? Quantas pessoas souberam de sua existência? Quais foram seus reflexos? Sua duração, tão estimada pelos entrevistados que contribuíram, não se deveria ao fato de que o acam- pamento naquele espaço não incomodava ninguém?

A proibição de eventos na Praça da Estação, assinada pelo prefeito Márcio Lacerda em dezembro de 200913, foi um fato que marcou os novos ativismos em Belo Horizonte.

Um chamado anônimo via internet convocou um protesto de resistência à medida, o que daria origem à Praia da Estação. O evento, amplamente explorado por diversos au- tores (por exemplo, Oliveira 2012; Albuquerque, 2013), teve um papel importante como aglutinador de diferentes grupos em torno de uma reivindicação comum – a liberação de eventos na Praça – e como precursor de novas articulações na cidade.

Para além do contexto local e dos eventos pontuais, pode-se dizer que a atuação mais recente da sociedade civil organizada está relacionada à ascensão do neoliberalismo, às mudanças na organização do trabalho, à emergência de governos de esquerda e à onda participacionista. A socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (2014) considera que a ênfase culturalista dos movimentos sociais contemporâneos, o abandono da noção de classe e a conseguinte fragmentação de um suposto sujeito coletivo seriam reflexos dessas trans- formações sociais, econômicas e políticas mais amplas. O mesmo valeria para a adoção simultânea de diversas linhas de ação – institucionais e diretas –, assim como para a articulação em rede por meios digitais.

Junto a essas transformações, atores que anteriormente tinham um papel importante na articulação dos ativismos tais como os partidos políticos, a Igreja e os sindicatos passam a ter menos inserção junto aos grupos. Ainda que menos centrais, as relações com esses atores seguem estabelecendo-se, sobretudo em momentos críticos. Essas relações, entre- tanto, são sempre permeadas por desconfianças relativas às tentativas de cooptação.

Uma consequência dessa nova constelação são coletividades sem fronteiras identitárias,

12 L.T. 2011 13 L.T. 2008-2009

que pretendem respeitar e afirmar a individualidade de cada um de seus membros. Isso leva necessariamente a agendas muito amplas e diversificadas. Muito ilustrativa da so- breposição de objetivos entre os ativismos de Belo Horizonte é o fato de praticamente todos incluírem uma frente feminista, que insere a discussão de gênero em suas pautas centrais e também põe em questão a dominação e as hierarquias dentro dos grupos.

Se, por um lado, a ampliação das agendas fortalecem os grupos, porque conseguem atrair mais indivíduos; por outro, elas os enfraquecem, pois as energias se dissipam nessas inú- meras frentes. Pela falta de coesão e pela organização fluida, os rumos desses ativismos muitas vezes são determinados em função dos indivíduos que os integram num de- terminado momento. Com os membros constantemente renovados, os próprios grupos também estão em permanente reconfiguração.

Entretanto, a constante transformação dos grupos em função de seus membros somente é possível devido à ideia de horizontalidade que perpassa grande parte deles. Sem figuras centrais responsáveis por sua condução, os grupos tornam-se muito mais suscetíveis às aspirações individuais daqueles que o integram em determinado momento. O sociólogo Manuel Castells (2013) considera que essa descentralização dificulta a repressão aos gru- pos, tornando praticamente impossível identificar figuras chave cuja repressão resultaria na neutralização dos ativismos. É necessário, entretanto, relativizar tal percepção, pois, embora, de fato, o poder nesses grupos seja diluído, são inúmeros os casos recentes de vigilância e repressão de indivíduos indentificados pelos serviços de inteligência como “líderes”14.

Essa percepção, entretanto, deve ser matizada, pois em inúmeras ocasiões os serviços de inteligência conseguem identificar indivíduos mais ativos nesses grupos empreendendo sua viigilância e repressão

O imaginário de organização horizontal é em diversos momentos afirmado como no caso da Assembleia Popular Horizontal, que carrega em seu próprio nome o termo. Pude ainda constatar a presença desse imaginário nas entrevistas e nas fanpages de parte

14 Um exemplo de repressão a pretensos líderes foram as prisões de 19 ativistas no Rio de Janeiro, às vésperas da final da Copa do Mundo Fifa de Futebol em 2014, suspeitos de “planejar protestos violentos”, conforme reportagem do portal G1. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/07/ doze-ativistas-presos-por-suspeita-de-planejar-protestos-no-rio-sao-soltos.html. Acesso em 27 de janei- ro de 2017.

dos grupos como o MPL-BH15, a Rede Verde16, A Ocupação17 e o Cidade que Quere-

mos18. Entretanto, se a horizontalidade coloca-se como um paradigma para os grupos,

sua concretização é ainda distante. Certas relações de dominação internas seguem repro- duzindo-se tais como aquelas de gênero, de classe, de raça e do conhecimento acadêmico sobre os demais.

Tampouco pode-se afirmar que a adoção da organização horizontal é uma unanimidade entre os ativismos. Parte dos grupos seguem organizando-se via estruturas hierarquiza- das e centralizadas nas figuras das lideranças, o que se transforma em umas das principais fontes de embate em momentos de articulação.