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1ª fase Auto-

3.2. O PRESENTE SUSPENSO

3.2.1. O Encontro com o Yoga.

O meu reencontro comigo própria, e com a Dança, teve início em agosto de 2008 quando comecei a praticar Yoga. Tinha chegado a um ponto na minha vida em que me sentia cada vez mais insegura, perdida e destruturada, e ao fim de tantos anos a pedir ajuda nos sítios errados, encontrei no Yoga um porto seguro. Falar do meu encontro com o Yoga através desta professora, que é uma conhecedora do corpo e dos seus segredos, não é fácil, porque foi uma mudança tão grande e a tantos níveis que é difícil transmitir por palavras. Uma das primeiras coisas para a qual me chamou à atenção foi que como bailarina, em

vez de escutar o meu corpo e respeitar a sua linguagem natural, tentei adaptar os meus movimentos e gestos à linguagem de corpos com uma tipologia diferente da minha. Sem conhecer nada sobre a minha vida, ia-me dizendo coisas espantosas acerca das minhas vivências e dos meus comportamentos que me deixavam muito intrigada. Como é que ela sabia? Com a regularidade das aulas fui percebendo que fazia o mesmo com as outras alunas. E agora sei que esse conhecimento e sensibilidade vem com muitos anos de prática de Yoga e de observação dos corpos. Nessa altura eu não entendia e no início questionei-me: o que sei eu sobre esta professora e sobre o Yoga para poder ter a certeza que estou em boas mãos? Nada! Ao fim de tantos anos a ser professora, voltei a ser aluna e pensava se não estaria a ser mais uma de tantas pessoas que, por desconhecimento se mantém numa atividade, com um professor medíocre, só porque não sabe identificar a qualidade. Conversando com outras alunas percebi que algumas a acompanhavam há muitos anos, mantendo uma relação de confiança que eu nunca tinha visto antes. Fiquei impressionada com a quantidade de anos que algumas alunas já tinham de prática com esta professora. A verdade é que, mesmo sendo aulas de grupo, eu sentia que esta professora conseguia dar uma atenção especial a cada uma de nós, como se estivéssemos numa aula particular, e percebi que as outras alunas sentiam o mesmo.

Nas primeiras aulas, sem saber porquê, chorava ou ria quase sem controlar, ao fazer alguns dos exercícios, e embora me sentisse envergonhada com o facto, nunca me sentia julgada ou criticada por isso, nem pelas colegas, nem pela professora. Não entendia a coerência, nem a lógica ou a metodologia deste trabalho, só constatava que no final me sentia mais em harmonia comigo própria. Sentia uma espécie de desconcerto entre a minha razão e expectativa, em oposição ao bem-estar e harmonia do meu corpo.

Como estava em aulas coletivas e tinha sempre imensas questões, optei por fazer também aulas particulares, pois o meu objetivo era saber mais sobre o Yoga e usufruir do bem- estar que eu começava a considerar ser possível alcançar através da sua prática. Queria conhecer e perceber onde se encontravam as teclas para, segundo o meu entendimento, carregar nelas ao meu ritmo em perfeito autodomínio de mim mesma. Quando comecei a trabalhar sobre o grau de consciência e responsabilidade com que vivia e respeitava o meu corpo, escutava com espanto a professora a afirmar que “quem usa é usado, quem abusa é abusado, utilizar é agir, respeitando, protegendo e descobrindo o potencial”. Aprendi que o comportamento abusivo consigo próprio observa-se no desrespeito pelo seu próprio corpo e isso denota o patamar de imatura/idade do ser. Tantas e tantas vezes estive em conflito comigo própria e com o meu corpo, por ele não me obedecer nem seguir os desígnios de vontades alheias que eu julgava serem as minhas vontades. Nunca pensei que devia cuidar do seu bem-estar. Era como se ele fosse apenas um escravo, de uma

escrava de comportamentos que eu mesma lhe impunha, escravizada a um exterior com o qual também me sentia sempre em conflito e que só se atenuava quando dançava, mesmo que sofresse a sentir que ninguém me via ou entendia. O remoinho de sentimentos e pensamentos constantes e obsessores retirava-me mais energia e sentido de viver quando parava.

A prática do Yoga foi preenchendo a pouco e pouco vazios que, sem eu perceber como, me iam ajudando a tomar consciência da desorganização, destruturação e desorientação que tinha imposto ao meu ser, e ao meu corpo, numa grande falta de consideração por mim própria.

Figura 29 – Foto: A prática do Yoga. Copyright [2017] by Raquel Oliveira.

3.2.2. O Corpo.

Os pés, no Yoga, são muito respeitados, porque são das articulações que mais informam sobre o que se passa no nosso corpo. No decurso de algumas aulas particulares, a professora chamou a minha atenção para os meus pés e para a sua deformação congénita (joanetes) que tinha ficado ainda mais acentuada pelo uso de sapatos altos, os das danças espanholas, e os do dia-a-dia, que eu usava apesar de me sentir desconfortável com a minha altura.

A minha relação com os meus pés sempre tinha sido complicada desde criança. Tinha os pés chatos e sentia que eram feios porque eram grandes e largos e no ballet tinha muita dificuldade em fazer as pontas porque não tinham força. Até começar a fazer Yoga, os meus complexos com os pés eram imensos. Escondia literalmente os pés nos sapatos. Quando me foi sugerido que observasse os pés e visse a forma como as plantas tocavam na sua totalidade o chão e principalmente como os dedos se encontravam deformados, com os joanetes bem acentuados, e calos, tanto num pé como no outro, senti-me desconfortável, pois sempre tinha tido problemas nos pés, que se agravaram com o ballet, com as pontas, com os sapatos de Flamenco e com toda a dança que fiz ao longo da minha vida. Com as aulas de Yoga aprendi que os meus pés não são inimigos, pelo contrário, manifestam sinais de alerta para que se reajuste e implemente as mudanças necessárias ao seu bem-estar, e para benefício do corpo em geral. Os sinais de desequilíbrio nada mais são do que isso.

Durante vários meses fiz exercícios de realinhamento postural e pude observar as alterações das estruturas musculares e a forma como o corpo, à medida que foi encontrando o seu próprio eixo de equilíbrio, alterou a estrutura do pé e os pontos de apoio. Mais tarde, foi-me sugerido que observasse os meus sapatos de Flamenco e que trouxesse desde os mais antigos até aos mais recentes e os que usava nas aulas e os que usava nos espetáculos. Vendo como estavam deformados, propôs-me que comprasse novos sapatos e sugeriu-me que fizesse vários exercícios para ajudar os pés a encontrar a sua própria expressão e linguagem articular, até o meu corpo conquistar uma anatomia mais orgânica e saudável, impedindo desta forma a evolução das deformações, principalmente ao nível dos joanetes e se possível recuperando o pé saudável que deveria e podia ainda ter para continuar a dançar.

À medida que fui fazendo todo este trabalho, era como se os meus pés falassem de si, dos seus esforços e deformações e eu percebesse que estive tantos anos sem os escutar, mas usando-os e abusando deles sem qualquer gratidão ou reconhecimento pelo seu trabalho e capacidade de adaptação ao esforço.

Com alguma resistência em admiti-lo, estava encantada com os meus pés novos: os dedos deixaram de estar contraídos, os calos desapareceram e reconheci uns pés mais saudáveis, seguros, que me permitiam outra estabilidade e equilíbrio a dançar, apesar dos joanetes. Não tenho fotografias que comprovem a mudança, mas tenho o bem-estar e a alegria que testemunho todos os dias e que me dá outro tempo e qualidade de vida comigo própria e com os outros.

Nas aulas coletivas, quando fazia os exercícios e mantinha a posição de pé parada durante algum tempo, ficava com uma estranha sensação de cansaço e as dores na coluna eram às vezes insuportáveis. Sentia-me ridícula pois as minhas colegas, até as mais velhas, de nada se queixavam e faziam todos os exercícios sugeridos sem desistências. Quando as aulas terminavam não tinha dores, e a sensação de bem-estar e de harmonia não pareciam coerentes, tal a consciência das dores que tinha tido durante as aulas.

A professora dizia muitas vezes que a fronteira da dor pode ser uma excelente fonte de informação para escutarmos o corpo em diálogo connosco e o respeitarmos. O corpo em diálogo connosco? Escutar o corpo? Respeitar o corpo? Esta professora falava do corpo, e do respeito pelo mesmo, como se falasse de uma pessoa. Como se tudo aquilo que eu gostava que tivessem para comigo (atenção, reconhecimento, respeito, escuta, confiança, admiração) eu tivesse de ter para com o meu corpo. Essa era uma abordagem nova para mim, pois julgava que o corpo era meu, e que eu deveria ter domínio sobre mim própria e por essa razão sobre o meu corpo. Por causa da dança e em nome daquilo que achava ter

aprendido que era a dança, eu dançava, logo o meu corpo dançava (não me obedecia, nem me acompanhava, era apenas parte da minha necessidade de ser e fazer), ou seja, o meu corpo e eu eram uma coisa só, do qual eu abusava sem ter consciência, e que ao fazê-lo abusava também de mim. Ao não me respeitar a mim própria, não respeitava o corpo. Esta nova forma de ver o corpo como se fosse uma pessoa, separada de mim, foi uma maneira muito eficaz de me ajudar a pensar sobre as noções de respeito. Sempre tive tendência para agir com mais consideração e cerimónia com pessoas desconhecidas do que com pessoas mais próximas, e fiz o mesmo com o meu corpo, e passar a vê-lo como uma entidade separada, ajudou-me a tratá-lo com atenção e cuidado, e gradualmente a fazer o mesmo comigo. O meu corpo também era eu, mas numa relação saudável comigo própria.

De aula para aula a minha coluna vertebral alinhava-se e todos os movimentos do corpo se tornavam mais orgânicos e naturais. Uma outra consciência de energia vinda do próprio corpo ia ganhando espaço dentro de mim. A coordenação entre o movimento e a respiração, a consciência do alinhamento corporal, a forma como os pés iam dando sinais de mudança e o bem-estar e estabilidade que isso me fazia sentir, foram sensações que com alguma desconfiança fui tendo de admitir. Era inegável o equilíbrio interior que eu ia conquistando. Voltar a confiar no corpo, mas mais importante ainda, tornar-me digna da sua confiança, passou a ser o meu objetivo, saber escutar o corpo e tomar decisões que o ajudassem a manter-se saudável.

Quando a professora me perguntou sobre o meu historial clínico, evidenciei a minha profunda desilusão com a medicina, e enfatizei a minha falta de confiança nos médicos. Por alguma razão, fosse a questão da anemia, ou a dificuldade em respirar pelo nariz, ou as insónias e a ansiedade e tristeza, nenhum médico ou psicólogo alguma vez me conseguiu ajudar. A verdade é que esta professora foi a única pessoa que alguma vez me ajudou com os meus problemas de saúde, e inclusive me reencaminhou para a medicina alopática quando necessário.

Para além dos pés e do alinhamento corporal, também com as aulas de Yoga que fiz outra grande conquista, que fez toda a diferença para a minha vida: a minha relação com o sono. Há anos que sofria de insónias e tinha grande dificuldade em adormecer. Foi-me sugerido fazer alterações nos meus horários de sono, na disposição do quarto e nos meus comportamentos antes de deitar, e gradualmente, tal como com o resto, fui criando outras rotinas e passei a conseguir adormecer rapidamente sem recorrer a químicos.

Outra coisa que mudei radicalmente com o Yoga foi a alimentação. Comecei a alterar a qualidade dos alimentos e, sem esforço, retirei o leite e o iogurte da minha rotina alimentar

e comecei a estar mais atenta à alimentação vegetariana, diminuindo o consumo da carne. Com algumas resistências fui começando a integrar os legumes na minha dieta e a descobrir que afinal até gosto do seu sabor. Agora quando não os como até lhes sinto a falta. Hoje tenho as minhas refeições mais equilibradas e sem fanatismos ou opções radicais. E isto é o que mais admiro na prática do Yoga, é que tudo passou a ser mais tranquilo e possível de gerir, sem me mortificar por não me dominar ou controlar, ou passando a substituir um comportamento neurótico por outro. Faço as minhas opções alimentares tendo mais em consideração a qualidade do que a quantidade, optando pelo que é biológico e percebendo as diferenças de sabor, tendo atenção ao que é produto de proximidade como primeira opção. Sem esforço o meu corpo deixou de engordar e emagrecer como no passado, e as compulsões alimentares ficaram atenuadas.

As alterações eram evidentes e reais e acima de tudo o benefício que retirava das mesmas. A qualidade de vida que ia, de dia para dia, alcançando colocava cada vez mais em evidência o desequilíbrio a que me tinha imposto viver de maneira abusiva e sem sentido no passado.

Um dia a professora chamou a minha atenção para a importância do alinhamento dos dentes e para a forma como os arcados se deveriam ajustar, pois isso influenciava o alinhamento e o tónus das cadeias musculares da coluna vertebral. Sugeriu-me que consultasse uma especialista para colocar um aparelho de correção nos dentes. Entrei em conflito, pondo em causa aquilo que me estava a ser proposto. Como seria possível, na minha idade, estar a dar aulas e a fazer espetáculos e sorrir com o aparelho nos dentes? Isto de escutar o corpo e estar disponível para lhe seguir as necessidades já me estava a parecer exagerado e desmedido. “Tudo vos é proposto, nada vos é imposto” dizia, sempre que me sentia na obrigação de lhe dar alguma justificação. Marquei a consulta muito contrariada, mas no fim da mesma fiquei convencida. No dia em que coloquei o aparelho custou-me ver que a minha imagem tinha mudado, senti-me deformada, mas ultrapassei essa sensação e habituei-me rapidamente a esta nova realidade. Fui observando maravilhada a forma como de facto o corpo muda, com a ajuda correta, e a rapidez com que se desenvolvem todas essas mudanças e adaptações do corpo. Às vezes comentava esse facto com a professora que em resposta me chamava a atenção para essa capacidade de o corpo de se adaptar, e que ele tanto o fazia com coisas boas, como com as que lhe eram prejudiciais, e que nos cabia a nós termos o discernimento para gerir o que mantinha a nossa evolução estável e segura. Passado um ano e meio tirei o aparelho e foi mais um passo na direção certa.

Figura 30 – Mapa Mental. Corpo