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1ª fase Auto-

3.1. O PASSADO NO PRESENTE

3.1.1. Formação Inicial em Dança.

Ao refletir sobre o meu percurso na Dança, tanto a nível profissional como a nível pessoal, comecei por tentar perceber o que me teria motivado a escolher esta atividade. Desde muito nova que danço e invento coreografias, mas não me lembro de nenhum momento marcante, de nenhum ídolo inspirador, de nenhum espetáculo de Dança que tenha ido ver em criança e que me tenha marcado e inspirado a sonhar ser bailarina. São memórias longínquas. Lembro-me que gostava muito de ouvir música clássica e que me sentia muito bem a dançar sozinha na sala de estar de casa dos meus pais. Era uma atividade que praticava de forma regular e com alegria e era a música que me fazia dançar. Não me lembro de sensações físicas nem dos movimentos que fazia, apenas que por vezes conseguia ver a minha imagem refletida nos vidros da porta da sala, como se fosse um espelho onde me podia ver a dançar.

Lembro-me das festas que se organizavam na escola secundária onde a minha mãe dava aulas, em Aveiro, e de comentarem que eu estava sempre a dançar. E de brincar na rua com a minha coleguinha da escola e fazer coreografias, inspirada na novela brasileira “Baila Comigo” que estreou na RTP em outubro de 1982, tinha eu 9 anos.

Figura 8 – Foto: A dançar no Magusto com 5 anos (1978). Copyright [2017] by Raquel Oliveira.

Todas estas recordações indicam que danço pelo menos desde os cinco anos, mas não explicam as razões. A razão mais óbvia é simplesmente porque gostava de dançar, mas de onde veio este gosto pela dança? Sinto que era o corpo que me fazia dançar, era o corpo que precisava de dançar. E eu confiava no corpo, sentia-me inteira, sem dúvidas. Na praia gostava muito de fazer rodas, pontes, velas e pinos e de sentir que o meu corpo me acompanhava sempre, que não havia movimento que eu não conseguisse fazer. Sentia

orgulho nele, e tinha a sensação de poder fazer tudo o que quisesse. Era a liberdade de ser.

Neste processo de pesquisa autoetnográfica onde procurei reavivar memórias através da recordação mental, da recolha de imagens e de artefactos, e através de conversas com a minha família, consegui ter acesso a uma gravação que nunca tinha visto antes. Terá sido em agosto de 1979 ou de 1980, dançando ao som da música “Man gave names to all the animals” de Bob Dylan. Foi uma alegria imensa descobrir esta gravação, observar o meu movimento e a forma como dançava nesta altura, e perceber que a ligação com o ritmo da música já me era muito natural.

Vídeo 1 - Dança Infância. Improvisação de Raquel Oliveira (1979-80). Copyright [2017] by Raquel Oliveira. (Clicar na imagem ou aceder em https://goo.gl/2IvhiU)

Figura 9 - Mapa Mental: Infância

Aos 10 anos pedi à minha mãe para começar a fazer Ballet. Apesar das poucas recordações dos 7 anos que frequentei esta escola, em Aveiro, estas aulas marcaram o meu percurso na Dança.

Recordo que durante a aula havia um período de improvisação onde podíamos dançar livremente e, por qualquer motivo que não me consigo lembrar, comecei a sentir-me pouco à vontade e inibida sem conseguir improvisar. Onde estava a menina que dançava livremente em casa dos pais? Recordo com clareza o olhar da professora numa dessas ocasiões que, apesar de ser acompanhado de um sorriso – ou talvez por isso mesmo – me transmitiu uma sensação de estar a ser ridícula. Talvez o seu sorriso fosse de satisfação, mas tal não me ocorreu na altura. Gradualmente, inibi o meu lado criativo e comecei a fazer sempre apenas o que me era ensinado. Formou-se um bloqueio que durante muitos anos me impediu de me sentir bem a improvisar.

Passei do sentimento para o pensamento, não me permitia libertar e improvisar, tendo começado aqui a minha luta consciente com os sentimentos e as emoções na Dança. Escondi-me na técnica, mas a partir de uma certa idade cresci muito rapidamente e, para além de me sentir alta demais em relação às minhas colegas, comecei a ter dores musculares. Sentia falta de força nas pernas para fazer os exercícios na aula de Ballet, não conseguia levantar as pernas nos grand battements e nos developés e até mesmo os pliés eram difíceis de executar.

Figura 10 – Foto: A importância da técnica. Copyright [2017] by Raquel Oliveira.

Apesar das dificuldades com as emoções e com o corpo, tenho boas recordações destas aulas e da professora, que era muito elegante e gentil. Eu gostava da organização e da disciplina das aulas. Gostava de fazer voltas e saltos e dos workshops de Dança Moderna. Havia uma certa estranheza nestes movimentos diferentes que me agradava, assim como o facto de poder utilizar outro tipo de música.

Figura 11 – Foto: Coreografia de Dança Moderna. Copyright [2017] by Raquel Oliveira.

Com 14 ou 15 anos tive anemia, e a medicação levou a que engordasse muito, e rapidamente. Em criança a minha alimentação era padronizada pelos hábitos do meu esteio familiar. Comia de tudo em grande quantidade, sem me preocupar com o excesso porque felizmente o meu corpo manteve-se magro até aos meus 13, 14 anos. A partir daí, fosse do tratamento para a anemia, ou do processo de desenvolvimento natural do corpo, comecei a engordar para além do que era para mim aceitável. O meu conflito com as compulsões alimentares exacerbou a minha baixa autoestima e dificultou a minha capacidade para controlar o apetite. Comecei a sentir-me pesada e enorme. Deixei de confiar no meu corpo, comecei a senti-lo como um inimigo, algo que me fazia sofrer, que já não correspondia aos meus desejos e expectativas.

Com 15 anos fiz a minha primeira coreografia de ballet (um solo de 2 minutos com a música Clair de Lune) que a professora achou por bem que eu apresentasse na festa de Natal da escola. Não me lembro porque é que decidi fazer esta coreografia, nem sei onde arranjei coragem para a mostrar à professora, mas lembro-me de a compor e de ensaiar em casa e de preparar a cassete com a música.

Figura 12 – Foto: A primeira coreografia (1988). Copyright [2017] by Raquel Oliveira.

Nessa altura, como agora, já sentia necessidade de editar a música, personalizando-a ao meu gosto, e utilizava os meios que tinha à disposição - o gira-discos e um gravador de cassetes. Tinha decidido que não ia coreografar a música toda e iria cortar uma parte no meio da música. Coloquei o disco de vinil a tocar no gira-discos e a cassete a gravar no gravador, e quando chegou à parte da música que não queria coreografar fiz pausa na gravação, e quando começaram os últimos compassos do final da música voltei a colocar a cassete a gravar até ao final.

Com 16 anos a professora colocou-me a dar aulas às meninas mais pequeninas e lembro- me de gostar muito. Mas penso que a razão principal que me manteve no Ballet foi o facto de ter alguém que me ensinava o que fazer, que dizia o que estava certo e errado, que orientava e dava estrutura, o que me permitiu esconder, adiar a descoberta de mim própria. Muitas vezes se fala do Ballet como uma disciplina que inibe e condiciona o bailarino, como se fosse contra a sua vontade, mas eu sinto que me sujeitei voluntariamente à disciplina do ballet e à imitação do modelo porque me davam estrutura e segurança. Sentir que conseguia fazer os movimentos dava-me uma sensação de confiança. Era uma confiança que vinha de fora, mas que compensava a minha insegurança interior. Permitia-me fugir da dificuldade e da responsabilidade de me conhecer e de me expressar, de me aceitar como um ser único e merecedor.

Pelo caminho ficou a alegria de dançar sem preocupações e sem autojulgamento da infância, dando lugar a alguém sem confiança em si mesmo e no mundo, incapaz de se autorreconhecer e validar ancorando-se no seu corpo e nas suas características próprias. A necessidade de corresponder às expectativas sobrepôs-se ao prazer de dançar.

Figura 13 – Mapa Mental: Adolescência e Ballet

Na adolescência, o grande desconforto em relação ao corpo e as inseguranças que se foram instalando em relação à minha capacidade para dançar, afetaram todos os aspetos da minha vida. Apesar da extrema emotividade, era como se não conseguisse sentir. Comecei a ter uma grande necessidade de me observar de fora, numa vontade inconsciente de me reconhecer e autovalidar. Perguntava-me muitas vezes como teria sido em criança. Quando dançava sozinha na sala de estar, quais eram os movimentos que fazia? Procurava as fotografias de família para me observar e tentar reconhecer algo em mim que pudesse valorizar, mas havia poucos registos dos momentos em que eu dançava ou em que expressava o meu corpo através do movimento. Esta obsessão pela imagem como forma de recuperar um passado que não ficou registado, transformou-se na vontade de registar o presente, principalmente em vídeo, porque a imagem fotográfica não me dava informação sobre o movimento e sobre a música.

O único vídeo que tenho da fase do Ballet é da coreografia que compus e interpretei quando tinha 15 anos. Apesar da má qualidade da imagem, consegue ver-se os movimentos e a ligação com a música.

Vídeo 2 – Primeira Coreografia de Raquel Oliveira (1988). Copyright [2017] by Raquel Oliveira. (Clicar na imagem ou aceder em https://goo.gl/7wWYMP)

A auto-observação compulsiva mantinha-me num estado de alienação com o meu corpo, comigo, e com o que me rodeava, mesmo quando não estava a dançar. Sempre que estava numa qualquer situação, não conseguia vivenciar o momento, e só quando a revivia mentalmente é que me permitia sentir as emoções que devia ter sentido. Era como se me

estivesse a ver de fora, a sentir que não estava a sentir o que devia sentir, e a saber que só depois é que me iria permitir senti-lo, quando estivesse sozinha em segurança. A criança confiante e expressiva tornara-se numa adolescente insegura e inibida. A dificuldade de comunicação com o mundo adulto que muitas vezes caracteriza esse período da vida incutiu em mim uma sensação de solidão, incompreensão e carência afetiva que me marcou muito. A ausência do reconhecimento pelo qual ansiava, veio mais tarde a refletir- se na minha relação com o público, enquanto bailarina.

Figura 14 – Mapa Mental: Imagem e Dissociação