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3.5.4 – O ENSEJO À INJUSTIÇA NA TESE DE KARL OTTO APEL

Karl-Otto Apel propõe uma ética discursiva, com suporte de fundo na pragmática da linguagem, na tentativa de estabelecer o consenso entre o verdadeiro e o correto.

Uma de suas preocupações centrais é com o procedimentalismo, que diz respeito às relações entre a ética discursiva e a práxis. Seu ponto de apoio é a diferenciação estabelecida por Kant entre entendimento e razão. Com esse parâmetro, Apel faz a distinção dentre os vários tipos de racionalidade e propõe uma fundamentação última da ética.

Apel viveu o tempo da transformação social. Passou pela 2ª Guerra tendo sido voluntário no exército nazista, inclusive. Um de seus primeiros estudos foi exatamente sobre Heidegger, cuja polêmica envolvendo sua relação com o nazismo ainda aquece muitos debates. Seu contato com a filosofia da linguagem deu-se um pouco mais tarde, nos 50 e 60, e desde então encontrou um posicionamento filosófico praticamente definitivo.

Nesse trabalho são destacados os aspectos principais considerados necessários para compreensão da crítica de Dussel a Apel, centrando a atenção para os fatores que impedem Apel de pensar uma ética material fundamental e o coloca no quadro dos formalistas e, portanto, torna seu pensamento incompatível com a Filosofia da Libertação.

O primeiro aspecto a ser destacado é a compreensão reducionista de Apel sobre a ética de conteúdo, isto é, material.

Apel interpreta redutivamente o âmbito material (de conteúdo) da ética exclusivamente como sendo apenas um horizonte cultural, particular ou meramente ontológico – como condição de possibilidade. Não percebe que todas as culturas, também a moderna pós-convencional, são modos concretos de organizar historicamente (sem porém nunca esgota) a ‘reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito humano em comunidade. (EL 184).

90 Desse modo, Apel não percebe que há várias culturas, e portanto vários modos ético-práticos. O princípio material universal da ética diz respeito a todas as culturas naquilo que elas têm de universal. No entanto, em face da redução operada, Apel detém-se na dimensão formal da Ética, pensando ser essa a única forma de obter um princípio universal.

O princípio material ou de conteúdo universal da ética, assim como o definimos, constitui todas as culturas por dentro a partir de sua universalidade [...] Diante de uma interpretação redutiva do princípio material não resta outra possibilidade à universalidade prática senão a sua dimensão deôntica, formal e vazia – caso se pretenda partir de ‘único princípio. (EL184-5).

Assim Apel se vê diante da questão de como tornar aplicável a ética formal ao plano conreto da vida humana. Notadamente percebe a necessidade de uma mediação, isto é, de algo que indique a aplicabilidade da norma abstrata ao caso conreto. Para ele, a “auto-reflexão” é o único caminho, ou seja, estabelece uma ética de responsabilidade como âncora de sua filosofia.

Descartado o âmbito material da vida real, resta apenas um caminho a Apel para fundamenta a sua ética (a partir da “norma básica” “para dentro”): a “auto-reflexão” diante do cético. (EL 185).

Aclara-se deste modo o fundamento da ética de Apel em um único princípio universal formal que confere validade às demais normas. Faz um caminho tanscendental desde o concreto até o formal. Mas não lhe é possível traçar o caminho de volta desde essa norma fundamental até a situação concreta sem uma mediação. Nesse plano estabelece a “norma básica de responsabilidade”.

Ao pensar a aplicação das normas, se convence de que em razão da assimetria existente entre os argumentantes, as pessoas de uma sociedade, não se pode aplicá-las indistintamente a todos os integrantes da comunidade. É preciso um instrumento que tornem simétricos os sujeitos.

Assim a ética do discurso revela-se reconhecidamente por Apel sem condições de estabelecer a simetria desejada, posto que não possuir meios de conectar o real e o formal. Fica, portanto, adstrita à ética da responsabilidade, a qual por sua vez atua no campo das estratégias e instrumentos, tornando-se

91 muitas vezes a arma da totalidade para justificar a exclusão dos menos favorecidos.

Para isso [estabelecer a simetria entre os argumentantes], Apel propõe o princípio de complementação ou de extensividade [...] Essa ética da responsabilidade não dispõe de normas que se possam deduzir ou fundar-se na ética do discurso, mas só dispõe de normas estratégicas ou instrumentais. Assim se cai em uma contradição, já que a ética do discurso terá que esperar e confiar, pois não conta com recursos próprios para efetuar concretamente a simetria entre os argumentantes reais, em uma ética estratégica e instrumental, e, muitas vezes, cínica. (EL 187- 188).

Ao contrário, se Apel admitisse a ética material, teria condições de estabelecer os fundamentos da norma básica e daí os pressupostos necessários para se fundar o modo de sua aplicação prática. Em último recurso, concebe então os procedimentos estratégico-instrumentais vinculados a um “princípio de conservação”, isto é, à sobrevivência, à vida humana.

Ocorre, entretanto, um deslocamento do princípio da vida humana, fundamento da Ética da Libertação, e “aquilo que para nós é um princípio ético material universal, fundamental (a reprodução eo desenvolvimento da vida de cada sujeito humano em comunidade), para Apel é só ‘condição deduzida’”. (EL 189).

Desta forma, fica evidente a fissura em seu pensamento, possibilitando a manutenção da exploração e vitimação, porquanto as estratégias é que vão delimitar a aplicação da Ética e, evidentemente, os instrumentos estão, via de regra, nas mãos do poder estabelecido.

Importa ressaltar, finalmente, que se por um lado a ética de Apel se preocupa com a simetria dos argumentantes e com um estado de justiça, por outro não apresenta um critério que seja capaz de garantir tal situação e, por isso, abre espaço para a continuidade da injustiça legalizada impingida à periferia pelo eixo central europeu-norte-americano.

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