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2.3 O ESTÁGIO III: ASIÁTICO-AFRO MEDITERRÂNEO

O estágio III do sistema inter-regional desenvolveu-se desde o séc. IV d.C., com a queda do império romano, e durou até o séc. XV. Deve ser ressaltado, contudo, que suas raízes remontam há tempos bem mais distantes, como, aliás, destaca Dussel:

Num terceiro momento, terceiro não de um ponto de vista meramente temporal, mas pela natureza da estrutura destes povos, aparecem os povos semitas. /.../ Os acádios são os primeiros semitas que a história conhece (aparecem invadindo as zonas da cultura suméria no século XXV a.C.). Virão depois os cananeus (séc. XXIV a.C.), os fenícios que já no ano 3000 a.C haviam fundado Biblos. Os babilônicos reinarão sob Hamurabi (1792-1750 a.C.). Semitas são todos os árabes especialmente com o Islão, desde a morte de Maomé (632 d.C.). Necessário é não esquecer que o cristianismo tem laços de parentesco cultural com estes povos. (MFL 227).

No extremo oriente destaca-se a China tentando dominar a rota da seda para o Ocidente; mais ao sul, a África bantu; no ocidente, o mundo bizantino- russo; no oeste a Europa ocidental e a Índia como grande centro produtivo.

Foi um momento histórico com características bem distintas das do primeiro estágio, embora a concepção de mundo daquele tivesse voltado a vicejar, posto que o expansionismo deveu-se aos desejos hegemônicos religiosos, tanto do cristianismo como do islamismo, bem como, ainda, provavelmente, em razão da opressão estabelecida pelos grandes impérios do estágio II.

54 O retorno da concepção ético-mítica do primeiro estágio do sistema inter-regional foi a grande mudança estrutural que demarcou esse terceiro estágio, embora tenha sido amplamente tomada pela idéia expansionista e dominadora norteadora do segundo estágio. Dussel aponta duas prováveis razões para essa retomada:

A visão do mundo do primeiro estágio do sistema inter-regional, o egípcio-mesopotâmico-semita, voltará a se fazer presente, embora realizando, por seu lado, um desenvolvimento universalizador expansivo (tanto pelo fenômeno do cristianismo como pelo do islamismo) e, talvez, como vimos acima, pela insuportável situação dos oprimidos dos impérios. (EL 37).

Na periferia do império romano, do lado oriental, os povos quase esquecidos, mas sempre explorados e excluídos dos privilégios do império, formaram o “mundo” bizantino, enquanto do outro lado o norte da África e a região persa transformaram-se em muçulmanos, criando-se barreiras religiosas e culturais existentes até hoje.

A grande questão daquele momento era o domínio da região central, Turan-Tarim, posto que era o ponto de comunicação entre a Índia, Antioquia, Irã e Mesopotâmia, estabelecendo um ponto de distribuição da chamada “rota da seda”, que vinha da China.

Aquela região foi controlada principalmente pelos bizantinos que paulatinamente ocuparam toda a Mesopotâmia (Séc. VII).

A divergência no tocante aos princípios éticos que desprezavam a vida terrena ficou marcada em vários momentos, dentre os quais com Taciano e Justino. Evidentemente esse resgate não foi feito a partir do pensamento grego, e nem poderia, mas desde suas origens afro-asiáticas. Constantinopla (desde 425) transformou-se então no grande centro cultural, lembrando que as escolas de Atenas foram fechadas desde o séc. VI, assim como a de Alexandria no séc. VII. Constantinopla, mesmo com a derrocada do império bizâncio, resistiu até 1453, tomada por Maomé II.

Do outro lado, aproveitando a pacificação entre o império bizâncio e o persa ou mesmo os respectivos enfraquecimentos enquanto perdurou a guerra entre eles, os muçulmanos, sobretudo árabes, começaram a expandir seu

55 domínio e direção àquele território, liderados por Maomé inicialmente e depois por seus sucessores, Abu Beker, Omar e Otman, os quais estabeleceram amplo domínio na Síria, Palestina, Pérsia e Egito. Avançaram também sobre outras regiões, principalmente a da Espanha, onde floresceram mais tarde grandes centros de cultura muçulmana, mantendo-se até o séc. XII.

No campo da filosofia, são célebres os filósofos árabes, principalmente no tocante à relação entre filosofia e religião, pois foram eles que tornaram a filosofia liberta da teologia, embora sejam confundidos usualmente com defensores da revelação positiva.

Foram os pensadores muçulmanos que tiveram contato com as filosofias anteriores, isto é, dos gregos, dos judeus e dos helenistas cristãos. E, sobretudo, diante do pensamento de Aristóteles, preciso e rigoroso formalmente, conseguiram estabelecer um pensamento filosófico distinto do teológico.

Assim nasce o Kalam propriamente dito, ou o uso da filosofia como método hermenêutico no desenvolvimento de um discurso racional construído a partir do texto ‘revelado’ e, ao mesmo tempo, como cultivo autônomo de uma filosofia secularizada enquanto tal. (EL 42).

Os conhecimentos no centro do sistema, o mundo muçulmano, estavam muito mais avançados do que na Europa ocidental. Para Dussel, se fossem ser considerados os fatos defendidos por Max Weber como indicadores da Modernidade, independentes da região em que aconteceram, certamente a Modernidade seria indicada desde alguns séculos antes do que se costuma indicar. É que os muçulmanos já conheciam, por exemplo, todos os instrumentos de crédito e formas de associação comercial. O comércio era amplamente desenvolvido, assim como os centros culturais. Deve-se notar, ainda, apenas para ilustrar, o tratado de álgebra de Mohamed Ibn-Musa, de 820, que foi traduzido na Europa no século XVI e considerado como um progresso na matemática.

Durante todos esses séculos, a Europa ocidental ficou afastada do sistema inter-regional e, portanto, continuou numa situação periférica.

De início, era apenas parte do Império Romano ocidental. Depois, desde o sec. VII, a Europa continental latino-germana foi isolada do

56 mediterrâneo oriental e, pois, ficou à parte do sistema. Começou então a se estabelecer o feudalismo, um regime fechado de fora para dentro e não por opção própria. Assim, isolada do “mundo”, a Europa tentou num terceiro momento, se integrar ao sistema inter-regional mediante as cruzadas, parcialmente bem-sucedidas, dando apenas início, pois, ao fim desse sistema e não o determinando.

A Europa latino-germânica não deixou, por isso, de ser uma cultura secundária, regional e periférica do mundo muçulmano, já que ainda em 1532 os turcos estão junto à muralha de Viena. Nada, desde dentro dela mesma, faz pressagiar uma nova idade nem nenhum esplendor futuro. Em nada é superior ao mundo muçulmano; muito pelo contrário, guardava posição complexada de inferioridade, isolada, verdadeiro ‘finis terrae’ (no extremo ocidental do continente asiático-afro-europeu), com total desvantagem comercial com respeito às áreas ‘centrais’ muçulmanas do estágio III do sistema inter-regional. (EL 44).

A Europa Ocidental, desde o séc. XIII esteve buscando um caminho para chegar ao centro produtivo, a Índia. Por isso, dentre outros fatores, desenvolveram-se as cruzadas, numa tentativa de religar aquela parte da Europa ao centro, fato que, por sinal, somado à emigração dos gregos de Constantinopla para a península, resultou no renascimento intelectual helenista italiano. Contudo, uma vez fracassadas as cruzadas, não restou alternativa senão tentar chegar ao centro pelo ocidente, isto é, pelo Atlântico. Assim acabam chegando ao novo continente, fato que revolucionou completamente as concepções de mundo e provocou o fim do centro do terceiro estágio.

Curiosamente, contudo, a chamada Idade Média é assim denominada, dentro de uma visão eurocêntrica e provinciana, a partir dos fatos ocorridos nessa região. Mas esse estágio do sistema inter-regional só encontrou definitivamente sua derrocada com as novas terras descobertas no novo continente, em razão da riqueza ali encontrada. E assim também acabou o próprio sistema inter-regional, dando ensejo ao sistema-mundo.

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