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1.4.3 – O MANDAMENTO ÉTICO COMO FONTE DA JUSTIÇA

Lévinas ressalta na relação metafísica a vigência do imperativo ético: A relação com Outrem ou o Discurso é uma relação não-alérgica, uma relação ética... Enfim, o infinito extravasando a idéia do infinito põe em causa a liberdade espontânea em nós. Dirige-se, julga-a e condu-la à sua verdade. A análise da idéia do Infinito, à qual só se tem acesso a partir de um Eu, culminará com a ultrapassagem do subjetivo. (Lévinas 1980 38).

36 Verifica-se, portanto, que toda relação com o Outro é uma relação ética, razão pela qual a Ética é a Filosofia Primeira, visto que, sendo a Ética o pressuposto da relação metafísica, também ela tem esse caráter.

Destaca-se, por conseguinte, a distinção fundamental operada por Lévinas em relação à grande maioria dos pensadores ocidentais, pois enquanto os pensadores ontológicos buscam sempre a unidade do discurso, a Totalidade e a compreensão do Outro pelo Eu, fundados na unidade da Razão, Lévinas pretende preservar a interioridade e a exterioridade, rompendo com a visão totalitária de unidade e, enfim, antes da ontologia supõe a metafísica como única forma de se pretender a Justiça.

O esforço deste livro vai no sentido de captar no discurso uma relação não alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo – onde o poder, por essência assassino do Outro, se torna, em face do Outro e ‘contra todo o bom senso’, impossibilidade do assassínio, consideração do Outro ou justiça. (Lévinas1980 34).

A preocupação com o não assassinato do Outro, com a preservação da alteridade é, de fato, a preocupação maior, tanto de Dussel quanto de Lévinas. Somente assim poder-se-á alcançar a tão desejada JUSTIÇA.

A Justiça, ante o expendido, caracteriza-se intrinsecamente ligada à Ética. Na relação ontológica, o Eu tem a liberdade absoluta para usar de sua inteligência com o fim de conhecer o objeto, seja ele qual for. Na Metafísica, por outro lado, a liberdade do Eu é questionada diante do Outro, a espontaneidade é chamada à responsabilidade e o Mesmo não se assenhora do Outro; ao contrário, diante da estranheza de Outrem, o Mesmo o acolhe, preservando sua alteridade e, numa atitude discipular, dispõe-se a aprender com o Mestre ao invés de impor a ele sua palavra. É a superação da ontologia pela metafísica.

A metafísica, a transcendência, o acolhimento do Outro pelo mesmo, de Outrem por Mim produz-se concretamente como a impugnação do mesmo pelo Outro, isto é, como a ética que cumpre a essência crítica do saber. E tal como a crítica precede o dogmatismo, a metafísica precede a ontologia. (Lévinas 1980 30).

37 Nesse sentido, a responsabilidade pelo Outro é anterior à liberdade do Eu. O processo de conhecimento deve, então, estar condicionado à responsabilidade pelo Outro, o que significa dizer que conhecer não é apenas constatar, mas sobretudo responder ao Outro enquanto acolhimento e não redução.

Assim, a verdade, embora não separada da inteligibilidade, tem como ponto fundamental o acolhimento do Outro:

A verdade não se separa, de fato, da inteligibilidade. Conhecer não é simplesmente constatar, mas sempre compreender. Diz-se também, conhecer é justificar, fazendo intervir, por análoga com a ordem moral, a noção de justiça. (Lévinas 1980 69)

A justificação do fato põe sob crivo a espontaneidade, questionando a liberdade de todos os atos. A liberdade deve se pautar pela crítica dos próprios atos. Somente assim a liberdade será justa, isto é, repugnando a indignidade que reveste a espontaneidade acrítica. A moral se funda, portanto, no instante que se instaura a vergonha da espontaneidade, isto é, quando a liberdade absoluta, arbitrária e violenta, deixa de se fundar em si mesma e passa a ter o Outro como referência da sua justificação.

A consciência moral acolhe Outrem. É a revelação de uma resistência aos meus poderes que, como força maior, não os põe em xeque, mas que põe em questão o direito singelo dos meus poderes, a minha gloriosa espontaneidade de ser vivo. A moral começa quando a liberdade, em vez de se justificar por si própria, se sente arbitrária e violenta. A procura do inteligível, mas também a manifestação da essência crítica do saber, a subida de um ser aquém da sua condição, começa ao mesmo tempo. (Lévinas 1980 71)

Lévinas pensa a realidade não como liberdade absoluta, mas investida de liberdade. A distinção é fundamental porque uma vez sujeita à crítica, a liberdade enseja não o saber originário de um processo de redução objetivante, tal como em Husserl, o que culminaria na redução do Outro, mas fundamentalmente o saber fundado no desejo do outro invisível, que não pode ser objetivado porque sobre ele o Eu não tem poderes. Do Outro é que se

38 origina o mandamento “não matarás” e, assim, supera toda idéia que dele se possa ter.

A relação com Outrem não se transmuda, como o conhecimento, fruição e posse, em liberdade. Outrem se impõe como exigência que domina essa liberdade e, portanto, como mais original do que tudo o que se passa em mim. Outrem, cuja presença excepcional se inscreve na impossibilidade ética em que estou de o matar, indica o fim dos poderes. Se já não posso ter poder sobre é porque ele ultrapassa absolutamente toda a idéia que dele posso ter. (Lévinas 1980 74)

Para Lévinas, a ontologia está para a injustiça assim como a metafísica está para a justiça. A ontologia não põe, definitivamente, em questão o Mesmo e permite o domínio do Outro, encetando-o numa totalidade, constituindo uma injustiça. Já a metafísica estabelece como princípio fundamental, anterior a qualquer manifestação do Eu, o respeito ao Outro e o questionamento do mesmo, buscando assim uma relação justa em que sejam preservadas as características essenciais tanto do Eu como do Outro.

Enfim, escreve Lévinas:

A essência da razão não consiste em assegurar ao homem um fundamento e poderes, mas em pô-lo em questão e em convidá-lo à justiça. (Lévinas 1980 75).

1.5 - DE-STRUIÇÃO DA HISTÓRIA DA ÉTICA: