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Preliminarmente, cumpre-nos esclarecer o significado do termo

Pedagógica. Segundo Dussel, não se pode confundir a Pedagógica com a

pedagogia. Esta última, aduz, é a ciência que estuda o ensinamento e a aprendizagem, estuda, pois, o método, o processo educacional, refere-se, por conseguinte, ao momento concreto da relação pedagógica. Por outro prisma, a

Pedagógica diz respeito à reflexão filosófica quanto às relações entre pais e

filhos, entre mestre e discípulo, político e cidadão etc, isto é, a Pedagógica trata do aspecto pedagógico presente nas relações em função dos princípios que tais relações devem seguir, bem como seus fundamentos, sempre em busca de uma relação ética que enseje a realização da Justiça entre todos, sem exclusão. A questão preliminar fica bem clara na seguinte passagem:

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A Pedagógica latino-americana continua o discurso

empreendido; o varão agora é o pai, a mulher a mãe, o novo ou o Outro é agora o filho. A Pedagógica não deve ser confundida com a pedagogia. Esta última é a ciência do ensinamento ou aprendizagem. A Pedagógica ao contrário, é a parte da filosofia que pensa a relação face-a-face do pai- filho, mestre-discípulo, médico-psicólogo-doente, filósofo-não-filósofo, político-cidadão etc. Ou seja, o pedagógico neste caso tem uma ampla significação de todo tipo de “disciplina” (o que se recebe de outro) em oposição à “invenção” (o que se descobre por si mesmo). A Pedagógica, além disso, tem a particularidade de ser o ponto de convergência e passagem mútua da erótica á política. (ELL III 153/4).

Dois aspectos ainda merecem ser destacados nessas palavras. O primeiro, porque entende o filósofo que há uma diferença entre “invenção” e “disciplina”, cabendo à Pedagógica o estudo dessa última, de forma a propiciar uma pedagogia possibilitadora da invenção. Fica nítido que o autor admite, portanto, a possibilidade de se aprender pela própria razão, independentemente de um mestre que perpetue seus ensinamentos. O outro aspecto é o papel de elo de ligação e trânsito entre a relação erótica e a política. Vislumbramos, aí, a fundamentalidade da Pedagógica no processo de formação do homem, posto servir como verdadeira “ponte” entre o núcleo familiar e o amadurecimento do homem, possibilitando-lhe o exercício de sua cidadania e estabelecimento de uma relação erótica adulta, autêntica e justa, sem exploração ou objetualização do Outro. É o que se depreende da obra de Enrique Dussel, bem ilustrada aqui:

Com efeito, a Pedagógica parte do filho do lar erótico para concluir sua tarefa no adulto na sociedade política; por outro lado, parte da criança na instituição pedagógica-política para terminar sua função no varão ou mulher formados para a vida erótica fecunda. (ELL III 154).

Encontram-se quatro pólos na relação pedagógica: o núcleo familiar (1) que deve conduzir o filho a uma postura adulta madura para a erótica homem- mulher(2) e também para sua atuação como cidadão(3); e o núcleo escolar(4), que deve propiciar à criança e ao jovem as condições também para o exercício de sua cidadania e uma relação erótica justa. Em suma, tanto o núcleo familiar

109 quanto o escolar devem conduzir o outro para vida adulta plena, no sentido político e erótico. Devem formar adequadamente o adulto-ético-erótico-político.

Estabelecidos tais pressupostos, a questão que se impõe é se a

Pedagógica vigente cumpre satisfatoriamente esse papel. Em caso negativo,

onde se encontra o problema-raiz?

Para Dussel, considerando a América Latina como um todo, a

Pedagógica vigente não cumpre essa missão, pois está contaminada desde a Erótica, categoria que se funda numa falocracia, consoante já anteriormente

exposto. É que o pai, dominador da mãe, expande seu “micro-império” sobre o filho também na categoria Pedagógica, domínio que se sedimenta pela formação escolar ditada pelas classes opressoras. Assim, o domínio interior ao núcleo familiar expande-se na Pedagógica e assassina o Outro na relação política:

O pai [...] prolonga sua falocracia como agressão e dominação do filho: o filicídio. A morte do filho, da criança, da juventude, das gerações recentes por parte das gerontocracias ou burocracias é física [...] simbólica ou ideológica, mas é sempre um tipo de alienação, dominação aniquilação de Alteridade. (ELL III 155).

Na simbólica, a mãe equivale à cultura popular, e o pai ao sistema político dominador. Adotando essa simbólica, o autor corrobora suas afirmações pela descrição do próprio processo de conquista e exploração da América, em que os colonizadores mataram os índios e aproveitaram-se sexualmente das índias impunemente, dando origem aos filhos órfãos e mestiços, os quais vieram, depois, a formar o povo latino-americano. Vale citar:

O homem conquistador se transformou em pai opressor, em mestre dominador, já “comumente não deixam na guerra a vida senão os jovens e mulheres – nos dizia Bartolomé de las Casas. A mulheres índias serão as mães violadas do filho: órfão ou mestiço latino-americano. (ELL III 159- 160).

Destarte, no âmbito familiar, a Pedagógica latino-americana está viciada desde a sua origem, em razão da Erótica e da Política, porquanto essas três categorias são intimamente conexas.

110 Mas o assassinato se fez também pela Pedagógica no âmbito escolar, vez que essa população foi arrancada de sua cultura milenar para ser inserida no mundo fundado pelos princípios totalizadores do homem europeu moderno.

Se o processo erótico latino-americano se origina pela dominação que o conquistador exerce sobre a índica, ou o processo político pelas matanças ou a dominação do espanhol sobre o índio, a dominação

Pedagógica propriamente dita começa pelo adoutrinamento que antecede

o segue a conquista [...] o mundo amerindiano deixa lugar, pela pregação dos últimos fundamentos da cultura da cristandade hispânico-européia, a novos conteúdos históricos. (ELL III 160-161).

Em vista disso, a possibilidade do exercício da cidadania e de uma relação erótica em condições de Justiça foi completamente tolhida.

No começo do séc XIX, houve até uma ruptura com o sistema colonialista, diante dos processos de independência. No entanto, as sociedades que se formaram a partir daí foram sempre voltadas para a cultura européia e economia norte-americana. Foi como se as nações novas tivessem um pé fincado no séc. XII, na Idade Média, com os ensinamentos religiosos e culturais trazidos da Europa principalmente pelas ordens religiosas, e outro pé apoiado no séc. XIX, na doutrinas ilustracionistas predominantes naquele momento. Dussel resgata brilhantemente as palavras de Sarmiento para corroborar esse entendimento:

Em nossa América Latina “vêem-se” ao mesmo tempo duas civilizações diferentes num mesmo solo: uma nascente, que sem conhecimento daquilo que tem sobre a cabeça está imitando os esforços ingênuos e populares da Idade Média; outra, que sem cuidar do que tem a seus pés tenta realizar os últimos resultados da civilização européia. O século XIX e o século XII vivem juntos; um dentro das cidades e o outro nos campos. (ELL III 163/4).

Tem-se, portanto, uma sociedade outrora arrancada de seu mundo e agora sem saber a qual mundo pertence e que sentido dar ao mundo novo.

Já no séc. XX, novos movimentos populares e libertacionistas eclodiram na América Latina, cada um a seu modo, mas sempre perpassando pelo resgate da cultura popular. Essas rebeliões equivalem, na simbólica

111 dusseliana, à luta do filho contra o pai, isto é, contra a sociedade dominadora capitalista, mas, novamente, o pai venceu a mãe, e a sociedade excludente e vitimária firmou-se ainda mais, com esse assassinato denominado por Dussel como filicídio, qual seja, a morte cultural da nossa juventude, que pode ser traduzida com o gamin de Bogotá, que o autor lembra nas palavras de Octávio Paz:

O gamin é o menino da rua. Que não tem pais ou quem responda por ele. Que anda esfarrapado, sujo, faminto e que às vezes pede ajuda para subsistir. Que rouba e comete todas as classes de atos ilícitos. Que vivem em bandos temidos pelas pessoas de bem [...] (ELL III 167).

Esse gamin é o centro temático da reflexão Pedagógica de Enrique Dussel, porquanto representa simbolicamente toda a América Latina.

4.3.2 – A DE-STRUIÇÃO DAS PEDAGÓGICAS