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3.5.3 – A IMPOSSIBILIDADE DO CONTRADISCURSO DA PERIFERIA NA TEORIA DE HABERMAS

Dentre os filósofos que defendem a realização do sistema vigente, encontra-se notadamente Habermas, encerando-se num discurso eurocentrista ao admitir que o contradiscurso à razão centrada no sujeito é uma manifestação “imanente à modernidade”. Assim como outros pensaram a modernidade como um fenômeno tipicamente europeu, Habermas vê o contradiscurso a essa modernidade a partir do próprio sistema. Talvez, se observasse com olhar mais liberto, visse que o contradiscurso ao sistema moderno iniciou-se desde 1500, quando os primeiros europeus chegaram à Ameríndia, tal como o de Antonio de Montesinos, como lembra Dussel, que atacou a injustiça que se fazia com o índio e dali chegou às aulas de Salamanca e não apenas com Kant.

Habermas situa no tempo o começo desse ‘contradiscurso’: trata- se de Kant. Ora, num-a história com perspectiva mundial, numa visão não eurocêntrica da modernidade, esse contradiscurso vai fazer cinco séculos: começou na ilha Hispaniola quando Antonio de Montesinos atacou a injustiça que se fazia com o índio e dali chegou às aulas de Salamanca ... nas lições unviersitárias de Francisco de Vitória sobre De indis. (EL 70).

Para pensar o contradiscurso como imanente à modernidade, Dussel considera que esta deveria ser admitida como manifestação mundial, incluindo a alteridade da periferia exterior ao centro europeu e não como objeto de

87 domínio e exploração. Mas não é o que ocorre no pensamento de Habermas, o qual entende a modernidade como tipicamente européia, fazendo com que a periferia não tenha qualquer caráter de autonomia pensante e não se reconheça qualquer manifestação teórica sem que seja referendada pelo centro. Assim o discurso da periferia esbarrará sempre nas teses européias ou norte-americanas e não terá como mostrar a contradição desse sistema, posto que deverá valer-se dos fundamentos preceituados pelos dominantes.

De fato, ao se definir a modernidade exclusivamente a partir do horizonte europeu, pretende-se que o dito ‘contradiscurso’ também seja um fruto exlusivo da Europa. Desta maneira, a própria periferia, para criticar a Europa, dever-se-ia europeizar, porque deveria usar um

contradiscurso europeu para mostrar à Europa a sua contradição, sem

poder, mais uma vez, trazer nada de novo, devendo negar-se a si mesma. (EL 71).

Torna-se, portanto, inviável qualquer contradiscurso livre, autêntico, porquanto a verdade estará sempre com o centro. Nenhum reclamo por justiça será ouvido se não estiver dentro dos preceitos estatuídos pela lei ditada pelo centro. O contradiscurso à modernidade só pode vir de fora. É da periferia tida como exterioridade que pode brotar esse movimento.

É bem possível que seja fora da Europa o lugar onde esse contradiscurso pode ser desenvolvido de maneira mais crítica, e não como continuação de um discurso estranho ou exclusivamente europeu, mas como continuação de uma atividade crítica que a periferia já deixou estampada no contradiscurso produzido na Europa e em seu próprio discurso periférico, que se constrói com o periférico ou dominado no sistema-mundo e desde a afirmação da exterioridade do excluído. (EL 72).

Não obstante, Habermas pretende estabelecer seu contradiscurso desde a Europa. Assim, naquela que Dussel denomina como primeira fase, Habermas funda sua crítica à razão instrumental, objeto próximo à Filosofia da Libertação e poderia também levá-lo a um contradiscurso livre. Porém, isso não acontece. E o maior problema, segundo Dussel, é sua interpretação da tese marxista acerca do “critério material universal de vida do sujeito humano”. Critério esse que Dussel adotará como um de seus fundamentos para a Ética da Libertação,

88 uma Ética da vida humana. Habermas compreende o aspecto material na tese de Marx apenas como trabalho, sobrevivência. Todavia, a idéia marxista vai muito além, pois refere-se precisamente ao princípio ético universal de surgimento, reprodução e manutenção da vida humana.

Aqui podemos considerar que, para Habermas, o aspecto material (com ‘a’) em Marx só consiste no trabalho, na sobrevivência físico-animal (com ‘e’), e não tem em vista o princípio ético universal de reprodução ou desenvolvimento da vida do sujeito humano, que Marx sempre tem como horizonte de sua economia política ... Penso que Habermas não suspeita da importância do texto que ele mesmo cita e que nesta Ética da

Libertação se transforma em uma tese fundamental. (EL 192).

Em conseqüência da negação do critério material, Habermas limita-se apenas ao aspecto formal, enquanto Dussel tem como foco central o aspecto material.

A partir da divergência de fundo, não há como a filosofia dusseliana caminhar com Habermas. Centrando-se no formal, Habermas reduz seu discurso ao interior da totalidade, posto que se limita a analisar as relações entre as regras vigentes e a legitimação do comportamento humano diante delas. Deste modo, fica impedido teoricamente de libertar-se das âncoras do sistema vigente e embora pense nas vítimas das injustiças praticadas contra os mais pobres, não consegue propor uma tese que solucione a questão.

Habermas colocou alguns dos temas que ocupam a Ética da Libertação. A única diferença é que, sendo a Ética do Discurso meramente formal, não tem como entrar em um debate racional-filosófico do conteúdo. Habermas, então tem consciência dos problemas e da impossibilidade de abordá-los, porque a função moral procedimental articulada a uma ética matéria é a de aplicar os conteúdos e, se previamente os eliminou, como no caso da Ética do Discurso, fica como uma lógica vazia. (EL 200).

Destarte, também a Ética de Habermas não atende aos princípios da Ética da Libertação e não enseja a realização de uma justiça tal como preconizada por Dussel, vez que admitindo o pensamento de Habermas a voz do Outro só seria ouvida se estivesse conforme à normas da totalidade, e

89 essas normas implicam em miséria e fome de muitos como condição necessária para o “desenvolvimento” de poucos.

3.5.4 – O ENSEJO À INJUSTIÇA NA TESE DE KARL-