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Para Rebeca Gontijo, no estudo da correspondência de intelectuais, haveria um dos usos possíveis desse escrito direcionado para crença na possibilidade de acesso aos bastidores da construção de uma obra ou livro e da formação de um autor ou escritor. Este tipo de documentação poderia colaborar na compreensão da personalidade do intelectual, bem como no incentivo a fabricação de uma memória que alimentasse o imaginário sobre o seu mundo:

O uso da documentação privada pode favorecer a afirmação de uma imagem pública do intelectual, dotando-a de aparência, ao ressaltar determinados aspectos físicos e gestos específicos, mencionados pelos missivistas sobre si mesmos ou sobre outros; falas particulares e sentimentos que fazem parte da sua sociabilidade, como afetos, ódios, ressentimentos, saudades etc.33

Antes de adentrar as tramas das missivas de Varnhagen, cabe conhecer como se deu o processo de busca, seleção e publicação de sua correspondência ativa e também o lugar atribuído a ela na sua vida e obra.

31 Segundo Roger Chartier, as representações seriam social, institucional e culturalmente determinadas, produzindo maneiras diferenciadas de interpretação. Roger Chartier, A História Cultural: entre práticas e representações, Lisboa, DIFEL, 1990, p. 26-28.

32 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit., p. 33.

33 Rebeca Gontijo, “Paulo Amigo”: amizade, mecenato e ofício do historiador nas cartas de Capistrano de Abreu, in: Angela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 14.

A correspondência ativa do visconde de Porto Seguro foi coligida e anotada pelo seu mais conhecido biógrafo, o consócio Clado Ribeiro de Lessa (1906-1960), sendo publicada em 1961 pelo Instituto Nacional do Livro do Ministério da Educação e Cultura. Após um tempo considerável de busca copiosa em arquivos e bibliotecas, o biógrafo trouxe ao conhecimento do público 242 cartas, dispostas em ordem cronológica numa série única, desde as mais antigas em data até as mais recentes.34

Ao pensar a ordem das cartas, além da disposição cronológica, Clado Ribeiro de Lessa havia aventado outras duas possibilidades: 1º. separação das cartas pelos destinatários e, dentro de cada grupo, fazer sua seriação cronológica; 2º. adoção de um critério eclético ou misto: consistente em formar grupos especiais para as cartas endereçadas a cada destinatário, quando fôssem muito numerosas; e enfeixar as restantes (...) numa série única de avulsas.35

A opção por uma série única, em ordem cronológica, seria justificada com base em três aspectos observados nas cartas coligidas: a) a dificuldade de definição de um tema recorrente; b) um mesmo assunto era, em algumas situações, confidenciado com mais de um interlocutor; c) a disposição cronológica numa única coleção atenderia os propósitos de uma espécie de autobiografia.36 As cartas

foram distribuídas em quatro fases: Formação – até 1842; Expansão – 1842 a 1858; Na América – 1859 a 1868; Últimos tempos – 1868 a 1877.

Em relação a este último aspecto, cabe notar a preocupação de criar uma autobiografia a partir do estabelecimento de uma ordem cronológica nas cartas. Não poderia ser uma autobiografia, pois a disposição das missivas atendia aos gostos do lugar social, do tempo presente e da subjetividade do biógrafo. O enredo traçado para aqueles fragmentos escritos de Varnhagen, coletados em diferentes lugares, não era uma escolha do historiador sorocabano. Aquela autobiografia, inventada por Clado Ribeiro de Lessa, teria a finalidade de atender a um discurso biográfico fixado na sua Vida e obra de Varnhagen, publicada em 1854 nas páginas da Revista do IHGB. Ela, supunha o autor, anunciaria um Varnhagen autêntico e verdadeiro, desvendado pela costura das cartas na cronologia da sua vida:

Dispostas numa única coleção as cartas de Varnhagen passam a constituir vívida e palpitante autobiografia, escrita quase à maneira de diário, sob a influência das sensações e emoções diuturnamente experimentadas ao longo de uma vida a que não faltaram grandes episódios e fortes abalos decorridos em todos os cenários em que teve de atuar, tanto do Velho como do Novo

34 Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., 1961, introdução, p. 15. 35 Ibidem, ibidem.

Continente. As múltiplas facêtas do seu temperamento de erudito, patriota e homem de sociedade mostrar-se-nos-ão assim com tôda a pureza e espontaneidade das reações imediatas aos excitantes de cada dia. Achamos também razoável separá-las pelas datas em quatro séries, correspondentes sucessivamente às fases em que dividimos a existência do autor, o que fazemos antepondo a cada uma o seu resumo biográfico durante o período em que foram escritas.37

Este tipo de documentação de arquivos privados, segundo Giselle Martins Venâncio, teria alimentado as pretensões de uma história-verdade entre historiadores e biógrafos como Clado Ribeiro de Lessa. Ao adentrar o mundo dos arquivos, eles seriam tomados pela possibilidade de tornar o passado tangível, tocar o que de real restou de um tempo pretérito, vivendo a sensação de atingir de forma definitiva e próxima os testemunhos do passado.38

Para Roger Chartier, os usos de documentos como as cartas como fonte de pesquisa pelos historiadores muito mais do que um testemunho de uma dada realidade pretérita, trariam elementos sobre o mundo intelectual que as apropriou e atribuiu uma ordem de significados:

os usos da escrita, em todas as suas variações, são cruciais para se compreender como as comunidades e os indivíduos constroem representações de seu mundo e investem de significações plurais, contrastadas, suas percepções e experiências. Em uma história cultural redefinida como o lugar em que se estrutura práticas e representações, o gesto epistolar é um gesto privilegiado.39

No caso de Clado Ribeiro de Lessa, os seus propósitos ao coligir as cartas ou escrever uma biografia de Varnhagen, já observados no capítulo anterior, eram preservar e celebrar a imagem dele como o patrono da história do Brasil e símbolo de herói intelectual da nação e do IHGB.

37 Ibidem, ibidem.

38 Giselle Martins Venâncio, Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 112.

39 Roger Chartier, Avant-propos, in: Roger Chartier (dir.), La correspondence: les usages de la lettre au XIXe siècle, s. l., Fayard, 1991, p. 09 (tradução livre).

Enfim, as cartas de Varnhagen constituíam-se mais como vestígios de histórias do que uma totalidade, partes fragmentárias de uma existência, transformadas em objeto da escrita histórica ou biográfica após serem seriadas e ordenadas. Neste sentido,

como um lugar de memória, a correspondência mantém traços de histórias em migalhas. Convém, em primeiro lugar, analisar o processo de conservação e construção desse objeto, registrado no tempo e no espaço social, desde o nascimento, de uma a uma das cartas singulares, até sua comunicação aos historiadores pela família, como um todo indissociável.40

As epistolas coligidas por Clado Ribeiro de Lessa, em especial as inéditas, foram garimpadas em arquivos públicos e particulares. Algumas cartas, segundo o biógrafo, haviam sido impressas de forma fragmentária em jornais e revistas, principalmente nas páginas da Revista do IHGB:

Segundo a nossa contagem e verificação – a que não temos a pretensão de atribuir valor de certeza, das 245 peças desta coletânea, 171 (mais de dois terços do total) são inéditas (na íntegra), e 72 apenas já foram impressas, e dentre elas algumas com supressões, que aqui restituímos ao respectivo texto.41

As cartas publicadas nesta coletânea eram provenientes do IHGB, geralmente publicadas nas páginas da sua Revista, da pasta de Varnhagen no Ministério das Relações Exteriores, de acervos particulares existentes na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, do arquivo do Museu Imperial, de periódicos nacionais e estrangeiros, de jornais e de outras coletâneas. Clado Ribeiro de Lessa identificou ainda cartas do historiador-diplomata que se encontravam nos acervos da Biblioteca de Évora, do Arquivo Militar de Lisboa, da Biblioteca da Universidade de Coimbra, entre outros. Essa obstinada busca por suas cartas era assim justificada na introdução da coletânea:

Oriundas da pena de um dos maiores historiógrafos e homens de pensamento dêste país, quer versem matéria de erudição, quer assuntos políticos ou diplomáticos do dia, que ainda, objetos de interêsse familiar ou privado, estamos

40 Cécile Dauphin, Pierrette Lebrun-Pezerat e Danièle Poublan, Une correspondece familiale au XIXe siècle, in: Mireille Bossis (dir.), La lettre à la croisée de l’individuel et du social, Paris, Kimé, 1994, p. 126 (tradução livre).

41 Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., 1961, introdução, nota 02, p. 07. Há inconsistências nos números apresentados pelo biógrafo nesta citação.

certos de que sua leitura não será destituída de interêsse para o púbico do Brasil, cujo empenho em conhecer particularidades do passado nacional, e da vida de seus homens ilustres, cresce promissoramente de dia para dia. Eis porque tomamos a resolução de brindá-lo com a presente coletânea.42

Embora muito rica e variada, a coletânea está longe de ser tida por completa, o próprio biógrafo registrou as lacunas e as exclusões existentes nas cartas coligidas de Varnhagen, uma vez que a correspondência particular não encerraria nem metade das originais ainda existentes por ai, esquecidos em gavetões de velhas cômodas dos tempos da Monarquia. Além disso, por motivos de sigilo em relação aos assuntos de Estado, foram retirados todos os ofícios diplomáticos de caráter mais ou menos confidencial, que se conservam no arquivo do Ministério das Relações Exteriores.43

Ao analisar os meandros da publicação da correspondência ativa de Varnhagen, tem-se a preocupação de abandonar a idéia do arquivo e da sua constituição como um lugar neutro, imparcial. Procura-se também desmistificar algumas ilusões ou fantasias em torno do universo do privado de intelectuais e políticos, deixando de lado representações anedóticas que apresentariam o historiador como aquele detetive ou bisbilhoteiro da vida alheia. Segundo Rebeca Gontijo,

as correspondências, como outros documentos pessoais, sugerem uma mensagem de verdade, pois constituem um meio de expressão do indivíduo na sua intimidade, espaço do espontâneo, de certa liberdade, onde, supostamente, deve reinar a sinceridade. Ler escritos pessoais assemelha-se a invadir locais escondidos, revelados a poucos, entre os quais o leitor invasor acaba se incluindo, podendo sentir-se, por vezes, como um cúmplice, que compartilha os sentimentos e idéias do invadido; um esperto detetive, pronto a capturar o missivista em flagrante; um juiz parcial, apto a julgar as condutas privadas; ou ainda, como uma espécie de deus que tudo vê, capaz de avaliar pensamentos, atos e palavras. Esse leitor pode ter a impressão de estar surpreendendo o autor da carta, pegando-o desprevenido nas suas liberdades, violando seus segredos, tirando sua máscara para, finalmente, revelar ao público suas idiossincrasias.44

42 Ibidem, p. 08.

43 Ibidem, p. 13.

44 Rebeca Gontijo, O velho vaqueano: Capistrano de Abreu, da historiografia ao historiador, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006, p. 173.

Adentrar as tramas das cartas de Varnhagen implicaria em traçar, por exemplo, as suas redes de sociabilidade no contexto do Segundo Reinado, a intensidade e importância de suas relações com figuras como o imperador D. Pedro II, os debates e reflexões historiográficas e políticas presentes nas cartas com interlocutores dentro e fora do IHGB, os conflitos e as questões pessoais que permeavam suas relações sociais e a relevância de sua correspondência para se compreender o pensamento historiográfico do oitocentos. Ao lado de outros escritos, as cartas do autor da Historia geral do Brazil ajudariam a vislumbrar outros cenários para o entendimento das suas imagens de si e da escrita da história da nação no período.

A seguir a correspondência ativa de Varnhagen será observada a partir das suas contribuições para se fazer uma leitura da história política e das redes de sociabilidade no Segundo Reinado, assim como da sua importância para se pensar a escrita da história no século XIX brasileiro.