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No exercício biográfico, marcado pela vontade de verdade, não raramente tem se identificado a preocupação obsessiva de coletar sistematicamente um conjunto de documentos que permitisse reconstituir a totalidade de uma vida. Cada fragmento descoberto da existência do individuo era tratado como se fosse uma preciosidade, uma peça do quebra-cabeça da sua identidade.

Após a busca das fontes documentais – as evidências materiais do individuo-verdade, haveria uma série de procedimentos internos de análise que funcionariam a título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição.1 Esses procedimentos auxiliariam na confecção de uma

narrativa que faria emergir dos documentos, assumidos como transparência do passado, o homem de carne e osso. O biografado, por esta lógica, seria ressuscitado do seu tempo pretérito para o presente do biógrafo: uma personagem vista como um todo, um conjunto coerente e orientado.2

Em larga medida, essa biografia de cunho essencialista e apologética procurava desenhar o individuo a partir da tríade origem, meio e contexto.3 A sua história de vida estava atrelada a estes

determinismos, definidores da sua identidade. Ele seria meramente, por este raciocínio, reflexo de seu tempo – um escravo de sua época, agindo mediante as vontades das grandes estruturas narrativas. Não seria possível a existência das descontinuidades ou dos acasos, propostas por Michel Foucault.4 E quando

estes apareciam nos escritos eram relegados ao silêncio ou tidos como anormalidades ou exceções, permitindo por vezes afirmações problemáticas de um sujeito fora ou à frente do seu tempo. O diferente do desejado pelo biógrafo ou historiador era condenado a sair do cenário da história, escondido entre as pilhas documentais.

Feitos os procedimentos necessários para o estabelecimento da ordem discursiva, previamente definida para o anúncio da essência de uma vida – a do morto,5 haveria a reverberação de

1 Michel Foucault, A ordem do discurso [Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970], 8 ed., São Paulo, Edições Loyola, 2002, p. 21.

2 Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, 8 ed. Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 2006, p. 184.

3 Para a crítica da noção da identidade fixa e essencializada, conferir: Paul Gilroy, Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça, São Paulo, Annablume, 2007.

4 Michel Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, p. 19.

5 Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, o nome do biografado é quase sempre um nome de morte, de alguém que já não pode contestar as imagens que dele se construíram; mas a morte é a única possibilidade de esta imagem se estabilizar, quando um sujeito absoluto é apresentado no lugar de um sujeito possível. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da

uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos.6 Era como se o autor do texto biográfico estivesse

ausente na construção da narrativa, amparada numa pretensa ilusão de neutralidade.7

No capítulo anterior, os meandros da positividade discursiva que forjaram as biografias de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) no primeiro centenário de sua morte foram analisados procurando perceber as maneiras como foram criadas as narrativas de enquadramento de sua memória como historiador símbolo da nação e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Os fragmentos de sua existência, colhidos como se fossem pepitas de ouro garimpadas nas minas dos arquivos e bibliotecas, foram sistematizados e organizados em nome de uma trama biográfica, articulando vida e obra, que justificaria a sua imagem como pai da história do Brasil.8 Ao apresentá-lo como o fundador da história

da história da nação, os consócios do grêmio também criavam os elementos para o discurso de legitimação da instituição como pioneira na pesquisa histórica no país.

Não seria possível, por essa interpretação, um Varnhagen e, conseqüentemente, uma historiografia brasileira sem a criação do IHGB. Na repetição da história da sua vida, geralmente em momentos de celebração de datas importantes da sua biografia e da história da instituição, mantinha-se ardente a força de um legado, de uma herança intelectual. Logo, Varnhagen-discurso era o instrumento de fabricação e propaganda da memória almejada para o IHGB. Na linha do tempo da história da História do Brasil, 1838 seria seu marco de origem. Varnhagen seria uma invenção discursiva dos outros – no caso os pares da agremiação que produziram sua memória. Sua biografia assumiria, nas palavras de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, papel fundamental na estratégia de memorização dos sujeitos, de sua constituição a serviço de interesses de um dado momento.9

Neste capítulo, os fragmentos escritos do visconde de Porto Seguro serão objeto de estudo para se compreender como o historiador sorocabano constituiu suas próprias representações sobre si mesmo, o IHGB e a escrita da história do Brasil, assim como narrou os bastidores da redação da 1ª edição da sua Historia geral do Brazil, publicada em dois tomos respectivamente em 1854 e 1857.

6 Michel Foucault, A ordem do discurso [Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 02 de dezembro de 1970], op. cit., p. 49. 7 Segundo Keith Jenkins, a história depende dos olhos e da voz de outrem; vemos por intermédio de um intérprete que se interpõe entre os acontecimentos passados e a leitura que deles fazemos. Keith Jenkins, A História repensada, São Paulo, Contexto, 2001, p. 32.

8 Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, com base nos escritos de Jacques Derrida, a biografia não seria um meio de fundir a vida e a obra, pois haveria sempre uma distância entre ela que é apenas dramatizada pelo texto biografado. A biografia, observou o autor, seria apenas

um gênero literário que instaura uma figura de leitura desta relação e que permanentemente reescreve seus dois pólos, produzindo vidas e obras diferenciadas. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit., p. 117. 9 Ibidem, p. 116.

Neste sentido, tomou-se como referência para a construção dos eixos analíticos deste capítulo sua correspondência ativa, coligida e organizada por Clado Ribeiro de Lessa,10 uma vez que ela

permite um contato com o mundo privado de Varnhagen, marcado por sentimentos, desejos e conflitos.11

Por intermédio das cartas, pode-se empreender uma leitura das suas redes de sociabilidade, suas viagens pelos arquivos e bibliotecas européias em busca de documentos sobre o passado colonial brasileiro e das estratégias pensadas para a escrita da sua obra-síntese.

Sem se amparar num biografismo essencialista, as cartas de Varnhagen auxiliarão no entendimento da constituição de uma memória de si – que aqui será denominada de escritas de si. A grande questão deste capítulo, em suma, seria Varnhagen e invenção de si por meio de suas cartas.

A partir das tramas traçadas pelas suas missivas, retornar-se-á às páginas da Revista do IHGB, não mais a procura de escritas sobre a vida e obra de Varnhagen, mas para empreender um diálogo de suas propostas de escrita da história com as memórias dos fundadores do grêmio, procurando identificar suas afinidades e diferenças quanto à empresa historiográfica no século XIX.12

A análise da sua correspondência ativa não tem a pretensão de restituir, num embate com as biografias, o verdadeiro ou autêntico Varnhagen, mostrando suas falhas ou lacunas. Não faz parte do universo das reflexões aqui pensadas a ilusão biográfica, traduzida pela busca da origem, pelo estabelecimento de linearidade e pela definição de uma coerência do indivíduo.13

Ao abordar as práticas de escrita de si e seus usos como objeto de estudo dos historiadores, Angela de Castro Gomes – procurando fugir desta pretensão biográfica, afirmou que

Os registro de memória dos indivíduos modernos são, de forma geral e por definição, subjetivos, fragmentados e ordinários como suas vidas. Seu valor, especialmente como documento histórico, é identificado justamente nessas características, e também em uma qualidade decorrente de uma nova concepção de verdade, próprias às sociedades individualistas. Sociedades que

10 Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência Ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1961.

11 Para Pierre Ansart, fazer uma história dos (res)sentimentos colocaria uma dificuldade permanente para os estudiosos da história: a de restituir e explicar o devir dos sentimentos individuais e coletivos. Mas esta dificuldade ganha, no caso dos ressentimentos, um relevo excepcional. Certamente é muito mais difícil traçar a história de ódios do que a história de fatos objetivos. Pierre Ansart, História e memória

dos ressentimentos, in: Maria Stella Martins Bresciani e Márcia Naxara (orgs.), Memória e (Res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível, Campinas, Ed. da UNICAMP, 2004, p. 29.

12 Adota-se a sugestão analítica feita por Manoel Luiz Salgado Guimarães, no artigo A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 93- 122.

13 Pierre Bourdieu, A ilusão biográfica, in: Marieta de Moraes Ferreira e Janaina Amado (orgs.), Usos e abusos da história oral, op. cit., p. 183- 184.

separaram o espaço público do privado, a vida laica da religiosa, mas que, em todos os casos, afirmaram o triunfo do indivíduo como um sujeito voltado para si, para sua razão e seus sentimentos. Uma sociedade em cuja cultura importa aos indivíduos sobreviver na memória dos outros, pois a vida individual tem valor e autonomia em relação ao todo. É dos indivíduos que nasce a organização social e não o inverso.14

Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, as categorias de individuo, identidade, sujeito e autor, tão celebradas pela modernidade, eram correlatas do processo de disciplinarização do corpo próprio, de que a biografização da vida e da própria escritura seriam um artifício determinante:

O procedimento biográfico faz parte do processo de internalização da própria idéia de “eu” no Ocidente, a idéia de que temos uma verdade interior, uma essência, um segredo que pode ser apanhado, flagrado aos poucos, em cada atitude nossa, em cada marca que deixamos no mundo.15

O visconde de Porto Seguro, como autor de biografias nas páginas da Revista do IHGB, sabia da importância de se produzir uma memória a mais verdadeira possível de uma existência. Ao elaborá-las, era recorrente a sua preocupação de coletar e sistematizar documentos que autorizassem o preenchimento de lacunas ou dados incompletos. Não poucas vezes retocou ou complementou as biografias que compusera. Para o historiador-diplomata, as biografias ofereceriam elementos para a construção de uma historia geral da nação. Ao comentar sobre a escrita do seu florilégio em sua missiva enviada ao imperador D. Pedro II (1825-1891), ele procuraria explicar a importância das pesquisas biográficas para a história e a literatura nacional pelo fato destas serem capazes de criar em todos nobres sentimentos de patriotismo de nação, único remédio contra as chagas do provincialismo.16

O autor da Historia geral do Brazil tinha plena consciência da importância de ocupar as páginas monumentais de um panteão de papel como eram os necrológios, elogios e biografias, produzidos pelos seus consócios.17 E por saber muito bem desse fato não deixou de zelar pela construção de uma

14 Angela de Castro Gomes, Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, Rio de Janeiro, Ed. da FGV, 2004, p. 13.

15 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit., p. 117.

16 Carta ao imperador D. Pedro II, de 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 247.

17 Conferir: Maria da Glória de Oliveira, Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista, tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

memória de si – trabalhando de forma árdua, como pode ser percebido na correspondência, no seu reconhecimento como intelectual e homem a serviço de Estado, constituindo uma espécie de arquivo da própria vida.18 Para Varnhagen, as palavras do primeiro secretário cônego Januário da Cunha Barboza,

proferidas no discurso de abertura das atividades do IHGB, em 1838, tinham um significado claro não apenas para os varões ilustres do passado, mas também para aqueles que se esmeravam na construção do Império brasileiro:

A nossa historia abunda de modelos de virtudes; mas um grande numero de feitos gloriosos morrem ou dormem na obscuridade, sem proveito das gerações subsequentes. O Brazil, senhores, posto que em circumstancias não semelhantes ás da França, póde comtudo apresentar pela historia, ao estudo e emulação de seus filhos, uma longa serie de varões distinctos por seu saber e brilhantes qualidades. Só tem faltado quem os apresentasse em bem ordenada galeria, collocando-os segundo os tempos e os logares, para que sejam melhor percebidos pelos que anhelam seguir os seus passos nos caminhos da honra e da gloria nacional.19

A leitura crítica da correspondência ativa permite a compreensão dos meios e estratégias adotados por Varnhagen na constituição de sua autoridade como historiador e diplomata e na busca do reconhecimento dos seus feitos intelectuais e profissionais. Autoridade e reconhecimento que passavam pela chancela dos pares do IHGB e, principalmente, do monarca. Na sociedade da corte, a consagração de um súdito era marcada por rituais e símbolos como a concessão de condecorações e títulos nobiliárquicos.20 O desejo de ser reconhecido como o grande historiador do IHGB e do Império tomava

conta das suas cartas endereçadas, em especial, ao imperador D. Pedro II. No seu caso ainda haveria as batalhas para o reconhecimento de sua nacionalidade como brasileiro.

Além da busca pelo lugar de autoridade reconhecida, pode-se identificar na sua correspondência a sua rede de sociabilidade: nomes que permitiriam acesso aos arquivos e bibliotecas, às

18 Para Philippe Artières, fazemos triagens nos nossos papéis: guardamos alguns, jogamos fora outros; damos arrumações quando nos mudamos, antes de sairmos de férias. E quando não o fazemos, outros se encarregam de limpar as gavetas por nós. Essas triagens são guiadas por intenções sucessivas e às vezes contraditórias. (...) Arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência. Philippe

Artières, Arquivar a própria vida, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 21, 1998, p. 10-11.

19 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretário Perpétuo do Instituto, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 01, 1839, p. 15-16. 20 Para compreender a sociedade da corte, conferir: Norbert Elias, O processo civilizador: uma história dos costumes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1994.

informações privilegiadas, à documentação particulares ou sob a guarda de determinados contatos nos espaços institucionais, a uma lista de contatos acadêmicos e intelectuais na Europa e na América.

Nas cartas também se pode vislumbrar o mundo dos (res)sentimentos e afetividades de Varnhagen como a admiração pelo pai, o cuidado com os amigos mais próximos, as angústias e as realizações na pesquisa documental e na escrita da sua Historia geral do Brazil, a revolta com os privilégios e títulos concedidos aos desafetos ou àqueles tidos como de pouco merecimento, as desilusões e as amarguras pela demora dos louros da glória, entre outros.

Não se postula com a eleição deste tipo de fonte documental fazer a defesa da possibilidade de se encontrar um Varnhagen diferente ou mais próximo do real, condenando os textos biográficos. Assim como os biógrafos produziram uma verdade sobre Varnhagen, ele mesmo, por meio de uma escrita de si, constituiu verdades sobre sua vida.21 Ele, ao seu tempo, também foi protagonista na

fabricação de uma imagem de si que desejava deixar para a posteridade. A preocupação com uma memória de seu legado estava presente direta e indiretamente nas suas cartas, prefácios, memórias e livros. E foi a partir destes escritos de Varnhagen que as biografias foram criadas, embora marcadas por interesses, escolhas e necessidades de diferentes contextos da história do país entre 1878 e 1978.

Por serem portadoras de memória, as cartas seriam povoadas de narrativas carregadas de uma temporalidade descontinua e fragmentada, definida por Maria do Socorro de Sousa Araújo como o tempo da experiência: a memória guarda lembranças que, ao ser recordada, traz de volta o que ficou nas experiências. Logo, escrever cartas seria um constante exercício de reinvenção da vida.22 No caso aqui

abordado, trariam as verdades reinventadas por Varnhagen.

A partir das considerações de Angela de Castro Gomes, pensar as verdades de visconde de Porto Seguro implica entendê-las como um forte vinculo com as idéias de foro íntimo e de experiência de vida dos indivíduos. A noção de verdade, a partir da perspectiva da cultura da sociedade do individualismo, não se restringiria apenas a uma dada verdade factual, objetiva, total e refém da prova documental, que continua a ter vigência e credibilidade e que também tece conexões com o individualismo moderno. Em outras palavras,

21 Para Ernesto Manuel de Melo e Castro, o hoje da recepção e da leitura vêm sempre depois do hoje da escrita e depois do hoje do envio, que agora já é um ontem e esses dois hojes já sendo defasados no tempo, contem a possibilidade quase certa de aquilo que nas cartas se lê, já não é mais o que está acontecendo (...) O hoje que leio é já um ontem do que foi escrito... É isso que me desagrada e ao mesmo me atrai desagradavelmente... essa intromissão do passado que as cartas me trazem no presente que estou vivendo, enquanto fico sem nada saber do presente simultâneo de quem me escreveu. Ernesto Manuel de Melo e Castro, Odeio Cartas, in: Walnice Nogueira Galvão e Nádia Battella

Gotlib (orgs.), Prezado senhor, prezada senhora: estudo sobre cartas, São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 15.

22 Maria do Socorro de Sousa Araújo, Paixões políticas em tempos revolucionários: nos caminhos da militância, o percurso de Jane Vanini (1964-1974), dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2002, p. 29.

a verdade passa a incorporar um vínculo direto com a subjetividade/profundidade desse indivíduo, exprimindo-se na categoria sinceridade e ganhando, ela mesma, uma dimensão fragmentada e impossível de sofrer controles absolutos. A verdade, não mais unitária, mas sem prejuízo de solidez, passa a ser pensada em sentido plural, como são plurais as vidas individuais, como é plural e diferenciada a memória que registra os acontecimentos da vida.23

As reflexões sobre o indivíduo nas sociedades modernas remeteriam a uma preocupação recente com a adoção e a divulgação de muitas das práticas de adestramento de si já existentes em outras épocas – como meditações, exames de consciência e memorizações. Estas práticas estariam presentes na escrita de si e na idéia de verdade como sinceridade.24

Esses exercícios de adestramento de si por si mesmo convidariam um diálogo com os escritos de Michel Foucault dedicados às artes de si mesmo: sobre a estética da existência e do domínio de si e dos outros na cultura greco-romana, mas não adotadas como a busca de uma origem primeira de uma concepção de produção do si.25

Uma carta, dentro de um conjunto de fragmentos de uma existência escolhido, selecionado e disposto numa ordem de um enredo biográfico, pode ser pensada como a marca de uma ausência – do morto. Contudo, no universo de trocas de missivas entre quem envia e quem recebe, ela assumiria um efeito de uma presença, pois escrever seria uma forma de se mostrar, ou seja, de

se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro. E isso significa que a carta é ao mesmo tempo um olhar que se lança sobre o destinatário (pela