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2.4. O IHGB como lugar de autoridade: em busca do reconhecimento na cidade letrada

2.5.3. O historiador-filósofo

A história, na percepção do visconde de Porto Seguro, teria lições a oferecer aos homens. Ela ensinaria a partir dos fatos do passado a evitar os erros do presente, possibilitando um futuro repleto de glórias. O seu historiador-filósofo seria capaz de trazer do limbo do passado os grandes feitos que permitiram a formação da nação brasileira. Esse projeto historiográfico, segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães, atendia à necessidade de se estudar o Brasil como uma forma de torná-lo conhecido dentro e fora das suas fronteiras: uma articulação entre conhecimento e exercício do poder, entre demandas fundadas num conhecimento da história e do território e a implantação de um projeto de construção nacional.150

De acordo com Januário da Cunha Barboza, uma narrativa histórica deveria ser explicativa e expositiva. Sua noção de história estava impregnada de uma idéia de história pragmática, ou seja, de um instrumento para o aperfeiçoamento da sociedade e das instituições, tendo o Estado como grande personagem. Para o primeiro secretário do IHGB, as dimensões filosófica e pragmática eram faces da mesma moeda:

148 Peter Gay, O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 74. 149 Jacques Derrida, Mal de arquivo: uma impressão freudiana, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001, p. 32.

150 Manoel Luiz Salgado Guimarães, Entre as Luzes e o Romantismo: as tensões da escrita da história no Brasil oitocentista, in: Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Ensaios sobre a escrita da história, op. cit., p. 71.

A vida moral tem suas condições e suas leis; compõe-se tambem de circumstancias ligadas por meio de relações quase necessarias; a philosophia póde reconhecel-as e demonstral-as; e a imaginação, com mais celeridade e certeza, saberá então dellas assenhorear-se. A razão do homem, sempre vagarosa em sua marcha, necessita de um guia esclarecido e seguro, que accelere os seus passos. O talento dos historiadores e dos geographos é só quem póde offerecer-nos essa galeria de factos, que, sendo, bem ordenados por suas relações de tempo e de logar, levam-nos a conhecer na antiguidade a fonte de grandes acontecimentos, que muitas vezes se desenvolverão em remoto futuro.151

Já, para Raimundo da Cunha Mattos, a texto do historiador precisava ser essencialmente expositivo, tomando como referência os documentos originais. Ele deveria ser uma narrativa comprometida com os fatos como eles realmente aconteceram e com a arte da escrita, transformando a leitura em processo agradável e exato. Enfim, a história, segundo o marechal, era a ciência de narrar ou descrever os acontecimento do presente e do passado e, também, oferecer profecias ou previsões para o futuro. Além disso,

a historia abrange todos os ramos dos conhecimentos humanos: póde ser geral ou particular, e divide-se em secções principaes, que são subdivididas em particulares ou especiaes. Ela em a materia, ordem, e estylo deve ser escripta por um modo harmonioso, agradavel, conciso, decente, exacto e o mais claro que for possivel; e o fim principal da historia politica e civil, é encaminhar os homens á pratica das virtudes e ao aborrecimento dos vicios para que d’ahi resulte o bem estar das sociedades.152

A proposta Varnhagen aproximava-se mais dos argumentos de Januário da Cunha Barboza, embora não deixasse de reconhecer a importância da história pragmática. Logo, uma história filosófica e pragmática fazia parte de sua agenda de trabalho. No caso da segunda dimensão, sua correspondência ofereceria alguns indicativos desta permanente preocupação.

151 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 12.

152 Raimundo José da Cunha Mattos, Dissertação acerca do systema de escrever a historia antiga e moderna do Imperio do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 137.

Em sua carta ao primeiro secretário perpétuo, de 05 de outubro de 1839, o historiador sorocabano deixava claro que deveria ser dever do Estado cuidar da história e do conhecimento do país natal, sendo ele o grande incentivador do espírito de nacionalidade.153

Neste sentido, ele apoiava a articulação entre o IHGB e o Estado imperial na construção da história da nação brasileira. Não se cansava de exaltar o status do grêmio como uma instituição util e patriótica para o Brasil.154 Nas suas cartas ao IHGB, sempre consagrava palavras de amor à corporação

litterária que tão obsequiosamente o recebera como sócio.155

Em correspondência, por exemplo, ao segundo secretário do IHGB, Manuel Ferreira Lagos (1816-1871), datada de 14 de julho de 1845, Varnhagen renovaria os seus votos de lealdade e compromisso para com a casa da memória, colocando-se a seu serviço a partir de uma retórica da humildade:

Com a melhor boa vontade procurarei cumprir todas as ordens que receber do Instituto, cuja prosperidade tão bem desenvolvida por V. Sª em seu último relatório, muito nos deve a todos dar prazer e animar. Pela minha parte se bem reconheço que as côres da amizade ahí me favoreceram, cobrarei com isso novos estímulos, ao menos a não me tornar indigno da confiança que em mim haja de depositar o Instituto (...)156

Reconhecer a autoridade de lugar institucional da associação era uma maneira de fortalecer também a sua imagem de historiador para a cidade letrada. Varnhagen, como funcionário do governo e membro do IHGB, ao lado da experiência de pesquisa que granjeava para si, sentia-se em condições para assumir a tarefa de erguer o monumento da nacionalidade e cobrar o devido reconhecimento.

Em seu Memorial, provavelmente apresentado ao Ministro do Império no final de 1851, listou as suas contribuições produzidas em benefício da história da pátria, desejando alcançar a graça de uma condecoração. Ele fazia tal pedido com base no entendimento de que a história constituía peça

153 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 05 de outubro de 1839, in: in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 39-40.

154 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 05 de novembro de 1840, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 55.

155 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 08 de julho de 1841, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 63.

156 Carta a Manuel Ferreira Lago, segundo secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 14 de julho de 1845, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 135-136.

importante no processo de construção do Brasil. Assim sendo, alegava que, além de se dedicar à diplomacia, havia entregado seus dias ao Brasil, roubando até horas de sono:

Entregou-os a uma composição em que ideou symbolizar no feito d’Amador Bueno a unidade do Imperio;

Entregou-os a um trabalho em que pretendeu abraçar as Províncias enfeixando n’um só corpo brasileiro chamado Florilegio, o que cada uma dellas tem produzido;

Entregou-os a ganhar por concurso o premio de uma medalha de ouro no valor de quatro centos mel reis, da qual cede, bem que pobre, para se criar com outro premio novos estímulos ao trabalho;

Entregou-os a escrever as biographias dos fallecidos brasileiros distinctos, sobre que tem podido colher noticiais;

Entregou-os a fazer mais populares na Europa e até no Brazil os Épicos

Brazileiros;

Entregou-os a preparar uma edição do encyclopédico escriptor do Brazil Gabriel Soares, cuja publicação poderá contribuir à gloria do Instituto Histórico; (...) Entregou-os a sérios estudos sobre os Indios e a Colonização que nos poderão talvez, algum dia, levar a abraçar de novo a tal respeito a jurisprudencia antiga; Entregou-os finalmente a meditar sobre outros pontos de nossa administração, e a dizer por escripto ao paiz muitas verdades em vez de o adular.157

Em linhas gerais, Varnhagen lembrava aos seus superiores que a sua missão diplomática e, em especial, historiadora estava atrelada aos projetos da consolidação da nação. A sua escrita estava a serviço do Brasil. Ele semeava com seus textos as sementes do nacionalismo entre os brasileiros. Portanto, era justo que lhe concedesse a graça de Officialato do Cruzeiro.

O recebimento de comendas, honrarias e títulos por parte do Império brasileiro significaria o reconhecimento do papel do historiador para a pátria e a valorização da presença da dimensão filosófica na sua prática, ou seja, do seu dever de escrever uma história que ministrasse exemplos de patriotismo e

157 Memorial apresentado ao Ministro do Império, por Francisco Adolfo de Varnhagen (1851), in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 167-168.

de governo e apresentasse lições aprendidas com os erros e faltas do passado para resguardar as futuras gerações.158

Segundo o próprio Varnhagen, suplicar uma graça não significava meramente a busca de recompensa, mas sim da valorização daquele que trabalha por amor ao trabalho e por ganhar, à custa deste, um bom nome. Por esta razão, a ninguém mais que o juízo esclarecido do governo se pode dirigir para obter, por meio de demonstrações públicas, a sanção deste bom nome.159 Portanto, a glória do

historiador seria também a da história da nação por ele escrita. A celebração e premiação dos seus feitos pelo imperador traria o reconhecimento da sua autoridade de fala e escrita entre os pares e a nação.

A importância moral das obras históricas estaria na credibilidade da sinceridade das escolhas feitas pelo historiador. Ele seria um juiz a examinar as provas do passado e emitir sentenças para o presente, almejando o futuro. Varnhagen desejava ser lembrado em vida e pela posteridade como aquele que escreveu em nome da verdade e das lições da história, ou melhor, autor de uma narrativa que serviu à manutenção e consolidação da unidade do Brasil. Se a nação era a sua verdade, o longo percurso percorrido para a conquista da glória nacional era a lição a ser aprendida e repetida.

Na sua missiva a D. Pedro II, de 14 de julho de 1857, o autor registrava esse propósito patriótico da história nos debates pelo país e na composição da sua Historia geral Brazil. A possibilidade e a conveniência da unidade nacional, registrou Varnhagen,

ainda na época do porvir em que o Brazil possa chegar a contar mais de cem milhões de habitantes, quando o espírito público se forme pela historia de um modo idêntico, foi por mim sustentada tenazmente em 1851 em muitas discussões com meus amigos deputados pelo norte, e não perco occasião de a pregar na Historia Geral, que por si só, se for adoptada nas Academias, há de contribuir e muito a elevar o patriotismo e à harmonia do espírito nacional, fomentada pela igualdade de educação de todos os subditos.160

158 Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), Anuário do Museu Imperial, op. cit., p. 229.

159 Memorial apresentado ao Ministro do Império, por Francisco Adolfo de Varnhagen (1851), in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 169.

160 Carta ao Imperador D. Pedro II, 14 de julho de 1857, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 246.

Ao buscar as lições morais do passado, segundo Laura Nogueira Oliveira, Varnhagen restituía a compreensão do papel e da finalidade da história da Antigüidade clássica, da historia magistra vitae. Na sua leitura, ele tratava temas caros aos antigos como Cícero, Heródoto, Strabo e Tácito:

a função moral da história e o incentivo à imitação e emulação, a convicção de ser necessário escrever uma história imparcial, capaz de premiar e de vilipendiar, a certeza de que escrevia a verdade histórica e a esperança de alcançar a eternidade graças à obra que se edificava.161

Ao defender esta concepção exemplar da história, Varnhagen manteria viva a concepção da historia magistra vitae que havia sido lembrada pelo cônego Januário da Cunha Barboza, no discurso inaugural de 1838, e retomada por von Martius, na sua monografia premiada de 1844:

Basta atendermos ao que diz Cícero sobre a historia, para conhecermos logo as vantagens que se devem esperar de um Instituto que della particularmente se occupe, e composto de homens os mais conspícuos por suas lettras e por suas virtudes. – A historia (escreve aquelle philosopho romano) é a testemunha dos

tempos, a luz da verdade e a escola da vida.162

A historia é uma mestra, não somente do futuro, como também do presente. Ella póde diffundir entre os contemporaneos sentimentos e pensamentos do mais nobre patriotismo. Uma obra historica sobre o Brazil deve (...) despertar e reanimar em seus leitores brasileiros amor da patria, coragem, constancia, industria, fidelidade, prudência, em uma palavra, todas as virtudes cívicas.163

Esse modelo de história como magistra vitae, passando por reformulação até o final do século XVIII, encontraria nos historiadores do IHGB, em especial entre os fundadores e mesmo em

161 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 67.

162 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 09. 163 Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, RIHGB, op. cit., p. 409.

Varnhagen, adeptos e praticantes.164 Segundo Arno Wehling, eles falavam de uma história que deveria ter

uma tríplice função:

filosófica (ou seja, interpretativa, que elucidasse o significado dos acontecimentos à luz das grandes tendências), pragmática (que servisse de orientação para a sociedade do presente) e crítica (que, através de métodos confiáveis, restabelecesse a verdade objetiva, ressalvadas as distorções partidárias, quer políticas, quer religiosas, e os excessos literários).165

Para Renata William do Santos do Vale, ao fundarem o IHGB, os espaço da experiência dos seus sócios era o da história como magistra vitae. Este espaço era o passado presente – pensamento comum, as experiências passadas que se faziam presentes, que indicava o norte de sua bússola para uma concepção antiga de história, e para como os fundadores do grêmio haviam vivido a história. Contudo,

no horizonte de expectativa destes homens estava a nova e moderna concepção de história moderna, filosófica, verdadeira, única, apontada para o progresso. Ao olharem para trás, viam uma história mestra da vida, e ao olharem para frente, viam uma história moderna e filosófica.166

No entroncamento entre estas duas noções de história estaria a escrita de Varnhagen. Instrumento da narrativa, juízo e testemunho seriam palavras presentes no vocabulário dos historiadores do seu tempo. Eles visavam à construção da imagem de uma história promotora da verdade, a partir dos usos das fontes documentais fidedignas sobre o passado, tendo a nação como metanarrativa.167 A história

teria ainda muitas lições a ensinar.

164 Segundo Manoel Luiz Salgado Guimarães, os letrados do IHGB compartilhavam da concepção da história como mestra, mesmo que esse topos esteja sendo revisto pela escrita oitocentista, apoiando-se na defesa do que denominam uma história filosófica. Manoel Luiz Salgado

Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 118. Conferir: Temístocles Américo Cezar, Lições sobre a escrita da história: historiografia e nação n Brasil do século XIX, Diálogos, Maringá, vol. 08, n. 01, 2004, p. 11-29.

165 Arno Wehling, A invenção da história: estudos sobre o historicismo, Niterói, Ed. da UGF; Ed. da UFF, 1994, p. 166.

166 Renata William Santos do Vale, Lições da história: as concepções de história dos fundadores do IHGB, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003, p. 12.

167 Para Valdei Lopes de Araujo, os membros do IHGB alinharam os conceitos de estado, pátria e monarca em um conjunto único de referência que deveria responder pelo interesse público, o qual, na concepção desses homens, se confundia com a manutenção dessa conjunção conceitual. Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), op. cit., p.