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Ao pensar a história numa relação dialógica, Dominick LaCapra propôs que a sua compreensão pudesse articular os esforços das pesquisas documentais com a interpretação, desviando dessa maneira das simplificações de textos complexos, como a Historia geral do Brazil, em meros reflexos de seu tempo – como se traduzisse o pensamento do seu autor (Varnhagen) e de seu tempo (a sociedade do Brasil Império).251

Negligenciar ou tratar de forma secundária a relevância da interpretação nas práticas do historiador, transforma-lo-ia num mero observador a descrever os fatos ou coletor e arranjador de documentos. Desconsiderar o ponto de vista do historiador acerca do seu objeto de estudo, conduziria a pseudo-idéia de uma posição onipresente, isenta, pura do historiador. Historicizar as formas de entendimento da vida e obra de Varnhagen seria uma estratégia para desnaturalizá-las, mostrando as estratégias discursivas na fabricação pelos sócios do IHGB do historiador-monumento e obra-monumento da história da história do Brasil.252 É preciso dessacralizar o cânone historiográfico.253

A eleição de Varnhagen e da Historia geral do Brazil como símbolos da origem da historiografia brasileira tem atendido a diferentes interesses da cultura histórica e política, em seus diferentes matizes, a partir da segunda metade do século XIX e ao longo do XX. Embora se possa produzir uma visão a-histórica da sua obra, este processo de produção dos discursos tem sido dinâmica, marcada por diferentes sujeitos, lugares institucionais e saberes. No caso deste capítulo, centrou-se a análise nos historiadores vinculados direta ou indiretamente ao IHGB e à construção permanente da sua memória como casa da história da nação.

Ao longo do primeiro centenário de sua morte, Varnhagen e o conjunto de sua obra foram transformados em historiador-obra-monumento da nação e do IHGB, servindo como símbolos para a celebração da nacionalidade brasileira e da memória da casa da memória nacional. Os membros do IHGB

251 Para o autor, uma implicação prática dessas considerações é a possibilidade de reconstruir normas e convenções em formas que podem ser mais duradouras precisamente porque nos permitem argumentar melhor com o criticismo e com a contestação. A esse respeito, uma função do diálogo com o passado é aprofundar a tentativa de determinar o que merece ser preservado, reabilitado ou transformado criticamente na tradição. Dominick LaCapra, Rethinking Intellectual History, in: Dominick LaCapra e Steven L. Kaplan (eds.), Modern European Intellectual History: Reappraisals and New Perspectives, op. cit., p. 78.

252 Ibidem, p. 78-79.

253 Para Pedro Paulo Abreu Funari e Glaydson José da Silva, as formulações pós-modernas, ao postularem a desnaturalização dos sujeitos e identidades ontológicos como o homem universal europeu, burguês, colonialista, branco, macho e cristão, têm contribuído para uma compreensão da pluralidade das experiências, principalmente ao reconhecerem a elaboração de sujeitos e identidades como produtos de forças culturais conflitantes, que operam em meio a jogos de relações de poder marcados pelo conflito. Pedro Paulo Abreu Funari e Glaydson

procuraram sempre vincular a origem e existência do primeiro historiador do Brasil, o fundador da história do história do Brasil, ao momento de criação do grêmio e ao seu projeto de escrita da história.

O presidente do grêmio, Américo Jacobina Lacombe, em conferência publicada na sua Revista, no começo dos anos 1990, manteria viva a visão consagrada por Joaquim Manuel de Macedo do IHGB como necessidade para a emergência de Varnhagen como o pai da história do Brasil:

Eis que o homem capaz de levar a cabo este empreendimento surge providencialmente nesse momento! Francisco Adolfo de Varnhagen, então oficial do exército português, que volta ao Brasil para reivindicar a nacionalidade brasileira. Não podia chegar em ocasião mais propícia. Não somente é acolhido pelo cônego Januário Barbosa, então o grande secretário e principal incentivador dos trabalhos do Instituto, mas é hospedado por ele. Os primeiros trabalhos de Varnhagen estão todos publicados na Revista. Ele é um elemento-chave na origem das questões levantadas. A “Memória da Martius”, publicada no tomo VI da Revista, influi visivelmente na sua orientação. E começou a lenta elaboração da sua grande História geral do Brasil que vai aparecer em 1854 e marcar uma época em nossa historiografia. Como estilo e exposição, Capistrano considera Southey superior. Mas a incorporação das numerosas buscas e a orientação nacional da concepção, fazem de Varnhagen o pai da nossa história.

Sem o ambiente que ele encontrou, de interesse em torno da nossa formação, criado pelo IHGB ele não teria talvez criado ânimo para seu trabalho.254

O IHGB soube cultivar esta memória nas celebrações de sua morte, em 1878, no centenário de seu nascimento, em 1916, no cinqüentenário de sua morte, em 1928, no sesquicentenário de seu nascimento, em 1966, e no centenário de sua morte, em 1978.Nessas solenidades, Varnhagen era exaltado como filho ilustre do IHGB, exemplo a seguir e a venerar, nas palavras Basílio de Magalhães. Ele também congregaria a mentalidade de uma época da história da nação – uma janela para se entender o século do Império brasileiro, marcado pelo entusiasmo pela Monarquia, pelo desejo de salvar a unidade do Império, pela narrativa da continuidade. Nas páginas da sua Revista estariam guardadas os fragmentos de

sua existência e as memórias produzidas pelos consócios sobre o mestre da Historia geral do Brazil, como diria José Honório Rodrigues. 255

Segundo Américo Jacobina Lacombe, a obra de Varnhagen seria a expressão mais perfeita daquele estado de espírito no campo da história. Ela seria perpétua assim como a memória do IHGB, ventre que forjou seu artífice:

Esta tem tal superioridade e tal perfeição no acabamento que resistiu à passagem da atmosfera que a criou, e o autor permanece sobranceiro na historiografia brasileira, mesmo quando suas teses são postas em cheque. Tal é o verdadeiro valor de uma obra científica e uma obra de arte.256

Enfim, o visconde de Porto Seguro traduziria a história do Brasil, a história da escrita da História do Brasil e a história do IHGB. Inventar a biografia de Varnhagen era revitalizar um conjunto de referências de lugares de autoridade, daquilo que se desejava lembrar e esquecer.257

Seu legado, a exemplo de outros letrados ilustres, materializaria a instituição, dando literalmente um corpo a noções abstratas que as gerações posteriores desejavam celebrar. Assim como Rui Barbosa representava a liberdade, Machado de Assis, a literatura, o Barão do Rio Branco, o território, Varnhagen era a incorporação da história e do IHGB.258

Ao fazer o culto à figura de Varnhagen, os artífices da sua memória estariam, de certa forma, retomando a noção de historiador como herói, presente nos textos do escritor escocês Thomas

255 Para Lúcia Lippi Oliveira, citando Raoul Girardet, a festa tem sempre uma função pedagógica e unificadora, reduzindo as diferenças existentes. Embora seu sonho homogeneizador tenha sido desfeito e hoje “a festa revolucionária tenha sido eliminada da história com seus teóricos, seus doutrinadores e seus párocos, parece, no entanto, que nem por isso desapareceu a noção de um liame necessário a ser estabelecido (ou restabelecido) entre o religioso e o político, a convicção de uma indispensável integração (ou reintegração) do sagrado na organização da Cidade”. Lúcia Lippi Oliveira, As festas que a República manda guardar, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 02, n. 04,

1989, p. 174. Conferir: Raoul Girardet, Mitos e mitologias políticas, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, p. 150.

256 Américo Jacobina Lacombe, A construção da historiografia brasileira: o IHGB e a obra de Varnhagen, RIHGB, op. cit., p. 257.

257 De acordo com Luigi Bonafé, a lembrança convive com o esquecimento. O ato de lembrar depende invariavelmente de uma dose considerável de seleção daquilo que é digno de ser lembrado, e da “gestão de um equilíbrio precário” ente o que deve ser dito e o que merece ser silenciado. Há muito que os teóricos da memória se voltam para a compreensão das relações entre estas duas dimensões indissociáveis da memória: a lembrança e o esquecimento. Elas apontam para a necessidade de uma reflexão sobre as relações entre passado, presente e futuro. Luigi Bonafé, Um herói em dois tempos: apontamentos para uma história da memória sobre Joaquim Nabuco, in: Martha Abreu et al

(orgs.). Cultura política e leituras do passado: historiografia e ensino de história, op. cit., p. 334.

258 Na leitura de João Felipe Gonçalves, as celebrações póstumas têm sustentado que os grandes homens como Rui Barbosa, Rodrigues Alves, Machado de Assis, Osvaldo Cruz entre outros construíram a nação, literalmente fizeram-na com seus dotes inatos e únicos. O Brasil era

visto como um grande artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens com qualidade acima do normal. João Felipe

Gonçalves, Enterrando Rui Barbosa: um estudo de caso da construção fúnebre de heróis nacionais na Primeira República, Estudos Históricos,

Carlyle (1795-1881).259 Diante das incontáveis dificuldades do trabalho de escrita da história, o autor

vislumbrava que criar uma narrativa significava organizar o material caótico de maneira coerente, que poderia ser traduzido pelo próprio principio de fundação do IHGB: colligir, methodisar, publicar ou archivar os documentos necessarios para a historia e geographia do Imperio do Brazil260. O historiador-herói, nesta

leitura, além da função de mediador, desempenharia também a de árbitro, elegendo aquilo que mereceria ser selecionado em meio ao caos. Para Débora El-Jaick Andrade,

A idéia do historiador enquanto mediador, retornaria em nova roupagem no decorrer de seus textos [Thomas Carlyle], implicando na analogia entre a função do historiador e a do grande homem. Inspirado na leitura dos alemães, Schlegel, Fichte e Jean Paul Richter, Carlyle defende em sua obra a tese de que o historiador seria uma espécie de herói diante do Caos da Existência que corresponderia à história humana, pois seria o sujeito iluminado que conferiria sentido, que imporia a ordem sobre a desordem, decifrando a filosofia da

natureza, que era, segundo sua definição, inesgotável, irredutível e em muitos

sentidos inapreensível.261

Uma personagem do romance Amores risíveis, do escritor tcheco Milan Kundera, interpela um colega numa situação de debate dentro da academia sobre o significado de uma vida, de uma biografia. Segundo a personagem do professor, qualquer vida humana daria margem a inúmeras interpretações. Logo, completou seu raciocínio, segundo a maneira como é apresentado, o passado de qualquer um de nós tanto pode se tornar a biografia de um chefe de Estado adorado como a biografia de um criminoso.262

Se esta afirmação é válida, a quem serviria a eleição de Varnhagen como o patrono da historiografia brasileira?

259 Ao analisar o papel do herói no discurso histórico, Caio César Boschi teceu as seguintes considerações: É tão exagerada a glorificação de alguns agentes históricos que por vezes somos levados a crer que se trata de personagens de ficção – e quanto mais nos afastamos da análise histórica centrada no movimento coletivo dos homens, mais se abre espaço para o aparecimento de heróis. O perfil do herói é modelado e reforçado pelos detentores do poder, que o transformam em parâmetro a ser seguido e reverenciado. A imagem pública de muitas dessas figuras, aliás, é um lembrete permanente sobre os estreitos limites entre a História e a ficção. Caio César Boschi, Por que estudar história? São Paulo, Ática, 2007, p. 54.

260 Extractos dos Estatutos, RIHGB, Rio de Janeiro, vol. I, 1839, p. 18.

261 Débora El-Jaick Andrade, Escrita da história e política no século XIX: Thomas Carlyle e o culto aos heróis, História & Perspectivas, Uberlândia, n. 35, jul./dez. 2006, p. 226. Conferir: Débora El-Jaick Andrade, O Paradoxo no pensamento de Thomas Carlyle: resistência à democracia e o culto ao grande homem, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002; Thomas Carlyle, On History, in: Thomas Carlyle: selected writings, Harmondsworth, Penguin Books, 1986.

A partir da leitura das repetitivas biografias do visconde de Porto Seguro, forjadas em diferentes contextos, encontrou-se uma possível reposta para tal questionamento: A sua escolha como herói ou mito intelectual da História do Brasil pela ótica do panteon de papel do IHGB263 tinha a finalidade

de forjar um discurso que procurava arrogar para o grêmio o papel de locus fundacional da historiografia brasileira.264 Varnhagen só seria possível como historiador graças ao surgimento do IHGB e a escrita de

uma história do Brasil verdadeiramente nacional só teria começo com ele. A história da escrita da História do Brasil, numa linha cronológica e evolutiva, teria um marco: antes e depois de Varnhagen. Seus antecessores não se igualariam a seu feito intelectual e seus sucessores teriam de lhe pagar tributo pelos caminhos desbravados por ele na pesquisa e escrita histórica. Em síntese, o IHGB-Varnhagen era a origem da historiografia nacional.265

Em nome desta representação política de defesa de espaço institucional diante da criação e desenvolvimento da pesquisa história no interior das universidades brasileiras, sua memória foi enquadrada e ressignificada, aparando arestas, fissuras e desvios. Era o veneno amargo da origem que descia pela garganta dos historiadores do Brasil do século XX.266

No próximo capítulo, os fragmentos escritos de Varnhagen serão objeto de estudo para se compreender como o dito destemido bandeirante, assim nomeado pelos seus biógrafos, produziu suas próprias representações sobre si mesmo, o IHGB e a escrita da história do Brasil, bem como narrou os bastidores da composição da 1ª edição de sua Historia geral do Brazil. Uma história que não necessariamente marcava uma relação de profunda cumplicidade e aceitação em relação ao IHGB e ao seu projeto de construção da memória nacional, pois segundo o escritor norte-americano Mark Twain (1835-1910), as biografias são apenas as roupas e os botões da pessoa. A vida da própria pessoa não pode ser escrita.267

263 A metáfora panteon de papel para se referir à Revista do IHGB foi cunhada por Maria da Glória de Oliveira, em Escrever vidas, narrar a história. A biografia como problema historiográfico no Brasil oitocentista, op. cit., p. 31.

264 Segundo Ian Watt, qualquer narrativa deve ter um começo no tempo; e isto significa que uma das funções do mito é ancorar o presente no passado, e da história é ancorar o passado no presente. Ian Watt, Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, D. Quixote, D. Juan, Robinson

Crusoé, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1997, p. 323.

265 O discurso inaugural de criação do Instituto Varnhagen, pelo consócio José Francisco da Rocha Pombo, em 1923 é lapidar na direção da construção do Varnhagen como um marco: Varnhagen é integral. Ha de ser bem difficil e pouco provavel que se descubram nos tres seculos

da colonia factos que não estejam no seu contexto. Depois é, pode-se dizer, o legitimo criador da nossa historia, tanto pelo culto que a ella rendeu em toda a sua vida, como pela inestimavel somma de serviços que prestou a quantos queiram no futuro completar-lhe a obra pela amplitude. José Francisco da Rocha Pombo, Discurso inaugural, op. cit., p. 24-25.

266 Para a genealogia nietzschiana adotada por Michel Foucault, a história precisaria também ensinar a rir das solenidades da origem: A alta origem é o “exagero metafísico que reaparece na concepção de que no começo de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso e mais essencial”: gosta-se de acreditar que as coisas no seu início se encontravam em estado de perfeição; que elas sairiam brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã. Michel Foucault, Microfísica do Poder, op. cit., p. 18. A questão da obsessão pelas

origens na historiografia do IHGB e de Varnhagen será retomada na análise dos enredos temáticos da Historia geral do Brazil, a ser realizada no capítulo III.

Enfim, a história de uma vida, como bem afirmou Pierre Bourdieu, não pode ficar restrita a idéia de trajetória, caminho, linearidade.268

______________________________________SEGUNDO CAPÍTULO

INVENÇÕES DE SI:

AS CARTAS DE VARNHAGEN E A ESCRITA DA HISTÓRIA DO BRASIL

(1839-1860)

A carta torna o escritor “presente” para aquele a quem ele a envia. E presente não simplesmente pelas informações que lhe dá sobre sua vida, suas atividades, seus sucessos e fracassos, suas venturas e desventuras; presente como uma espécie de presença imediata e quase física.

[Michel Foucault, Escrita de Si].

Há verdades acerca das quaes o historiador deve proceder como o dramaturgo, que esconde de traz dos bastidores o que julga conveniente á melhoria da sua producção.

[Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na