• Nenhum resultado encontrado

2.4. O IHGB como lugar de autoridade: em busca do reconhecimento na cidade letrada

2.5.1. As faces do historiador varnhageniano: erudito, filósofo, literato e, às vezes, poeta

Na cultura histórica dos oitocentos, a relação com o passado não era questão secundária. Segundo Taíse Tatiana Quadros da Silva, ela era fundamental na definição das possibilidades sobre o devir, como forma de invenção de si mesmo e de transitar entre esta invenção e o diverso.101 Diante deste

fato era preciso, aos que se dedicavam ao fazer histórico, questionar-se sobre o que seria o seu ofício a partir das áreas de conexão (nem sempre tranqüilas) entre o cientista e o literato.

Se o passado, à semelhança da História, como sugeriu Durval Muniz de Albuquerque Júnior, é uma invenção do presente de quem a escreve, embora ancorada nos signos deixados pelo passado,102 pode-se afirmar que Varnhagen foi um dos protagonistas no processo de fabricação de uma

escrita da história no século XIX brasileiro. A operação historiográfica por ele elaborada, à luz das práticas

101 Taíse Tatiana Quadros da Silva, A erudição ilustrada de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-77) e a passagem da historiografia das belas letras à história nacional: breve análise histórica, in: Manoel Luiz Salgado Guimarães (org.), Ensaios sobre a escrita da história, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, p. 114. Conferir também: Taíse Tatiana Quadros da Silva, A reescrita da tradição: a invenção historiográfica do documento na

História geral do Brasil de Francisco Adolfo de Varnhagen (1854-1857), op. cit., capítulo II.

e do lugar que controlavam e codificavam as suas convenções, criou uma maneira de narrar o passado, evidenciando a sua verdade documental latente.103

Varnhagen não só coligiu documentos e escreveu uma história geral para o Brasil, ele também produziu reflexões sobre o que deveria ser o ofício de historiador, trazendo o seu lugar e as suas práticas para o mundo dos homens das letras. Havia nos seus escritos, em especial nas suas cartas, a preocupação de estabelecer para os seus interlocutores como deveria se proceder a pesquisa histórica.

Ao contrário do que os escritos bio-bibliográficos sobre Varnhagen sentenciaram ao longo do tempo sobre o seu status de historiador conhecido pela sua capacidade de pesquisa documental, uma espécie de traça de arquivo, pode-se identificar na sua obra uma necessidade de marcar, de forma incisiva, uma identidade para a sua profissão. Reduzir Varnhagen e mesmo os seus colegas do IHGB a meros compiladores de fontes seria negar as práticas historiográficas complexas e ricamente elaboradas no Brasil oitocentista.

Se sua escrita e estilo narrativo nos dias de hoje podem soar estranho, enfadonho ou mesmo digno de anedotas, precisa-se ter em mente que essa mesma escrita produziu verdades e definiu maneiras de ser, sentir e interpretar o Brasil e o seu povo. Encarar sua Historia geral do Brazil e seus outros escritos significa a possibilidade, mesmo que desconfortável, de um diálogo com questões, temas e enredos que ainda se fazem presentes teimosamente na historiografia, nas ementas das disciplinas de História do Brasil dos cursos de graduação e pós-graduação, nos currículos de História do ensino fundamental e médio e nos manuais e livros didáticos.104

Varnhagen escreveu uma narrativa identitária, essencialista e excludente, mas isso não autoriza o historiador do presente a entendê-lo a partir da ótica de um juiz num tribunal, oferecendo sentenças laudatórias e fechadas. Neste sentido, as palavras de Durval Muniz de Albuquerque Júnior oferecem alguns apontamentos necessários para esta pesquisa, pois as escritas da história são mediadas por temporalidades e experiências:

a História não está a serviço da memória, de sua salvação, mas está, sim, a serviço do esquecimento. Ela está sempre pronta a desmanchar uma imagem do

103 Michel de Certeau, A escrita da história, 2 ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, p. 66.

104 Conferir: Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, capítulo VIII; Thais Nivia de Lima e Fonseca, “Ver para compreender”: arte, livro didático e história da nação, in: Lana Mara de Castro Siman e Thais Nivia de Lima e Fonseca, Inaugurando a História e construindo a nação; discursos e imagens no ensino de História, Belo Horizonte, Autêntica, 2001, p. 91-121; Ciro Flávio de Castro Bandeira de Melo, Senhores da História e do Esquecimento: a construção do Brasil em dois manuais didáticos de História na segunda metade do século XIX, Belo Horizonte, Argumentum, 2008; Circe Maria Fernandes Bittencourt, Livro

passado que já tenha sido produzida, institucionalizada, cristalizada. Inventado, a partir do presente, o passado só adquire sentido na relação com este presente que passa, portanto, ele anuncia já a sua morte prematura.105

No processo de (re)escrita da sua Historia geral do Brazil, o visconde de Porto Seguro procurou definir em diferentes momentos os preceitos que deveriam orientar o seu trabalho e legitimar a sua narrativa. Ao lado de outros membros do IHGB, ele procurou enfrentar a indeterminação de um modelo de escrita de história a seguir. A pergunta que ecoava pelos salões do IHGB era sobre como se deveria escrever a história do Brasil.

De acordo com Nelson Schapochnik, o desejo compartilhado sobre a necessidade de produzir uma história representativa da integridade nacional e do regime monárquico esbarrava com a ausência de uma escrita que desenhasse, a partir de apreciações críticas, o retrato da nação:

De qualquer maneira, seria importante lembrar que, mesmo os homens de letras ressentindo-se da carência de um modelo orgânico que fosse capaz de dar conta da “marcha dos nossos sucessos relacionados entre si”, já se assinalava a presença de uma pluralidade de formas que assumiria a escrita da história. Sem nenhuma tradição interna a que se filiar e tampouco sem uma definição clara de um padrão explicativo que resultasse em uma “história bem organizada”, os membros do Instituto Histórico experimentaram modalidades distintas de intervenção sob a forma de relatórios, anais e memórias.106

Para a primeira geração do IHGB, a experiência do tempo havia sido ressignificada. A independência e a emergência do Brasil como corpo político e territorial autônomo implicou numa mudança da percepção em relação ao passado. A compreensão daquele presente como conseqüência do passado, segundo Valdei Lopes de Araujo, abria a necessidade de sua experiência como algo a meio caminho, como as etapas necessárias de um longo fio que não pode ser partido.107

O evento de 1822 era um novo marco na cronologia do império colonial português ou luso- brasileiro, responsável por uma abertura epistemológica. Com base nesta fissura no fio, o passado colonial

105 Durval Muniz de Albuquerque Júnior, História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história, op. cit. , p. 61.

106 Nelson Schapochnik, Como se escreve a história?, Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 13, n. 25/26, set. 1992, p. 67. Conferir: Nelson Schapochnik, Letras de fundação: Varnhagen e Alencar – projetos de narrativa instituinte, dissertação de mestrado, Programa de Pós- graduação em História Social, Universidade de São Paulo, 1992.

107 Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), São Paulo, Hucitec, 2008, p. 155.

precisava ser compreendido não apenas como parte da história da expansão e domínio da Coroa portuguesa, mas também como o espaço e o tempo da formação da nacionalidade brasileira. Nele estaria a biografia da nação, as suas origens primordiais. A América e o Brasil deveriam ser historicizados pelos membros do IHGB:

O que estava em jogo era a apropriação e a unificação de um passado, tanto recente quanto longínquo, por homens que, havia bem pouco, não se incomodavam em por múltiplas camadas de identidade não contraditórias. Essa nova demanda por memória exigia do relato histórico um grau de unidade e organicidade inédito. O espaço geográfico, chave fundamental na constituição dessa organicidade, precisava ser transformado em um lugar histórico que, como tal, pudesse integrar-se à totalidade “identitária”.108

Diante destes desafios, essa primeira geração do IHGB procurou elaborar propostas e diretrizes para a escrita de uma história geral do Brasil que, em larga medida, apresentavam os caminhos a serem trilhados pelo historiador. Nos primeiros tempos do grêmio seria possível encontrar memórias versando sobre o tema da escrita da história, forjadas pelos seus sócios. Manoel Luiz Salgado Guimarães chamaria de textos de fundação esse conjunto de contribuições apresentados ao IHGB e publicados em sua Revista.

Fundação igualmente de uma forma peculiar de escrita; a escrita da história do ponto de vista nacional, e também de um personagem; o historiador, que, se bem compartilha com diversos especialistas do código letrado algumas características e tradições, por outro lado desenha uma nova especialidade para as atividades das letras: escrever a história do Brasil a partir de procedimentos adequados, capazes de assegurar a verdade do narrado segundo os protocolos em construção e que começam a vigir para esse tipo de escrita peculiar.109

108 Ibidem, p. 160.

109 Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 99.

Entre os textos de fundação indicados estariam o discurso no ato de instituição do IHGB, de autoria do seu primeiro secretário, o cônego Januário da Cunha Barboza,110 o texto a respeito do melhor

meio para obter o maior número possível de documentos sobre a história e geografia do Brasil, do bacharel e diplomata Rodrigo de Souza da Silva Pontes,111 e a dissertação acerca do sistema de escrever a história

antiga e moderna do Brasil, do militar Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839).112 Além desses,

Manoel Luiz Salgado Guimarães observou que a monografia premiada do naturalista bávaro Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868)113 seria outro exemplo pela sua notoriedade, definindo alguns dos mitos

fundadores dessa escrita nacional.114 O famoso escrito de von Martius seria lembrando e instituído

posteriormente como o texto símbolo do projeto historiográfico do IHGB, embora se saiba que dentro do grêmio não houvesse um consenso quanto ao modelo de escrita a ser adotado.115

Apesar de escrita num contexto diferente dos primeiros anos de criação do IHGB, a memória Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil, destinada ao imperador por Varnhagen, em 18 de julho de 1852,116 bem como suas cartas e seu prefácio à 1ª edição da Historia geral

do Brazil, pode estabelecer um profícuo diálogo com estes textos de fundação, ao evidenciar os aspectos comuns e destoantes na definição do perfil do historiador a ser constituído naquele momento.117

Na carta apresentando a referida memória, Varnhagen registrava ao imperador que aquelas reflexões eram fruto da sua paixão pelo Brasil e de sua lealdade ao seu soberano. Em nome da monarquia e do Brasil jurava dedicar sua escrita como instrumento de luta e defesa: A minha vida é do Brazil, que é minha pátria, e de V. M. Imperial, que me protege.118

110 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 09-17.

111 Rodrigo de Souza da Silva Pontes, Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior numero possivel de documentos relativos á Historia e Geographia do Brasil?, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 03, 1841, p. 149-157.

112 Raimundo José da Cunha Mattos, Dissertação acerca do systema de escrever a historia antiga e moderna do Imperio do Brasil, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 26, 1863, p. 121-143.

113 Karl Friedrich Philipp von Martius, Como se deve escrever a história do Brasil, RIHGB, Rio de Janeiro, tomo 06, 1844, p. 389-390.

114 Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho, Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 99.

115 Conferir: Lucia Maria Paschoal Guimarães, Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889), RIHGB, op. cit., p. 575. A monografia premiada de von Martius será analisada a partir de seu diálogo com o projeto historiográfico de Varnhagen no capítulo III.

116 Esta memória, encaminhada por carta a D. Pedro II, naquele mesmo ano foi lida na Academia de História de Madrid e foi publicada apenas em 1948 no Anuário do Museu Imperial. Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852),

Anuário do Museu Imperial, Petrópolis, Ministério da Educação e Saúde, vol. 09, 1948, p. 229-236. Para uma análise detalhada desta memória

com os demais escritos de Varnhagen, conferir: Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., capítulos I, II e III.

117 Segundo Arno Wehling, o que nos pareceu o substrato do Instituto: a existência de uma elite política ‘moderada’, vinculada ao movimento do Regresso e que se opunha, ideologicamente tanto ao modelo político jacobino e sua solução democrática, quanto ao modelo neo- absolutista da Restauração. Arno Wehling, Estado, história, memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional, op. cit., p. 45. 118 Carta ao imperado D. Pedro II, 18 de julho de 1852, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 188.

Ao longo do texto, Varnhagen apresentou de forma sistemática os pressupostos que deveriam orientar a escritura da sua Historia geral do Brazil e, além disso, defendeu alguns atributos necessários ao historiador no exercício de seu fazer. Na sua leitura, este profissional precisaria ser um erudito, filósofo, literato e por vezes poeta.

Eis uma questão, d’alta transcendência, preliminar á nossa História, e que desejáramos ver tratada sem prevenções, e discutida e esclarecida com o animo tão tranqüilo e despreocupado, como temos ao inspirar-nos as idéias que passaremos a transcrever, depois assentarmos bem quaes sejão reconhecidamente os dotes necessários ao historiador.

No seculo actual ninguem poderá alcançar este título, sem que a um tempo seja erudito no assumpto, philosophico, litterato, e até diremos ás vezes, poeta.119

Preocupado em cuidar da sua imagem como historiador e de se fazer compreendido e reconhecido pelos pares, Varnhagen em suas cartas, memórias e prefácios cuidava de esclarecer sobre seus posicionamentos e escolhas no processo da escrita de sua obra. Ele se prevenia e respondia aos eventuais ataques ou críticas dos seus leitores, em especial aqueles que desfrutavam de autoridade sobre temas da história do Brasil. Cuidar da recepção de seus textos pela crítica era uma tarefa permanente da sua escrita epistolar e prefacial.

No caso dos prefácios, Laura Nogueira Oliveira percebeu que o visconde de Porto Seguro os redigiu sempre se dirigindo diretamente ao seu leitor e usando esse espaço para introduzir e comentar as intenções, idéias e conceitos que nortearam sua escrita:

Por um lado, ele buscava convencer seu leitor da boa intenção que o movera ao redigi-la, apresentando-a como resultado de anos de pesquisa e reflexão em busca da verdade histórica. Por outro, pretendia guiar seu leitor em direção ao que considerava ser a correta leitura e compreensão da obra. (...)

A força da argumentação varnhageniana nesses textos prefaciais não pode ser menosprezada. Afinal, o autor não apenas buscava demonstrar a solidez de

119 Francisco Adolfo de Varnhagen, Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil (1852), Anuário do Museu Imperial, op. cit., p. 229.

seus princípios, como pretendia garantir que eles não ficassem diluídos ao longo da obra. 120

Ao fazer esses exercícios de escrita de si pelas cartas e prefácios, ou seja, de preservação de seu status como homem das letras e, conseqüentemente, de sua individualidade, o visconde de Porto Seguro procurava sempre lembrar aos seus interlocutores e leitores de seu compromisso em conquistar os dotes por ele apresentados como marcas de excelência em sua profissão.

Além da sua (auto)defesa e da busca se fazer entendido, Varnhagen fazia uso destes espaços como uma forma de promoção de seu trabalho, de apresentar-se diante da rede de sociabilidade da qual fazia parte: associações literárias, institutos históricos, academias científicas, entre outros.

No universo das cartas, por exemplo, ele fazia a preparação dos seus privilegiados leitores para as tramas e as descobertas de sua obra. Não foram poucas vezes, na sua correspondência com o monarca, que o historiador sorocabano abordou os bastidores da escrita da sua Historia geral do Brazil. Por meio desta confidência epistolar, ele desejava angariar simpatias, curiosidades e apoio. No caso de D. Pedro II, isso implicava patrocínio e chancela oficial. Para os demais interlocutores, significava a busca de uma base de proteção e divulgação da sua obra, uma vez que contava com a sua autoridade intelectual no processo de aceitação e reconhecimento.121

A glória intelectual exigia muito mais do que a produção do texto propriamente dito. Varnhagen não era apenas o autor de texto, mas estava umbilicalmente envolvido com a fabricação de seu objeto ao lado de outras personagens do mundo do impresso e dos leitores.122 Segundo Angela de Castro

Gomes, a correspondência pessoal entre intelectuais seria um espaço revelador de suas idéias, projetos, opiniões, interesses e sentimentos, mas também de constituição de suas identidades pessoais e profissionais.123 E esse trabalho de escrita de si envolvia o cuidado com a publicização de seus escritos.

120 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 17-18.

121 Com base nesta observação, a correspondência, segundo Gisele Martins Venâncio, seria um espaço que a um só tempo define a sua sociabilidade e é definido por ela. Giselle Martins Venâncio, Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história, in:

Angela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 113.

122 Ao analisar as circunstâncias relacionadas ao processo de definição do livro como objeto da cultura, Roger Chartier afirmou que os autores não escreviam livros, e sim textos que outros sujeitos transformavam em objetos impressos. Em outras palavras, contra a representação,

elaborada pela própria literatura, segundo a qual o texto existe em si mesmo, independente de qualquer materialidade, deve-se lembrar que não há texto em si mesmo, independente de qualquer materialidade, deve-se lembrar que não há texto fora do suporte que o dá a ler (ou a ouvir) e que não há compreensão de um escrito, seja qual for, que não dependa das formas nas quais ele chega ao seu leitor. Por isso, a distinção indispensável entre dois conjuntos de dispositivos: aqueles que dizem respeito às estratégias de escritura e às intenções do autor, aqueles que resultam de uma decisão de editor ou de uma imposição de oficina. Roger Chartier, À beira da falésia: a história entre incerteza e

inquietudes, Porto Alegre, Ed. da Universidade; UFRGS, 2002, p. 71.

123 Angela de Castro Gomes, Em família: correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre, in: Ângela de Castro Gomes (org.), Escrita de si, escrita da história, op. cit., p. 51-52.

Neste sentido, Varnhagen manipulava saberes e conceitos de uma comunidade de sentido, de uma cidade letrada. Ao propor como condição necessária para o historiador os dotes de erudito, filósofo, literato e também poeta, ele dialogava com as questões de seu tempo que se debruçavam sobre a pesquisa e a escrita histórica. Por esta razão, nas suas cartas esses atributos eram abordados com seus pares dentro e fora do IHGB, que compartilhavam do interesse pela produção histórica.

Para Varnhagen, a escrita da história só seria possível a partir do domínio pleno dos fatos, o que requereria uma extensa pesquisa documental. A posse do conhecimento autêntico do passado era o antídoto para combater os males da ficção. A sua erudição era comprovada pela sua capacidade de recuperar dos empoeirados arquivos os vestígios necessários à fabricação de sua narrativa:

Sem erudição no assumpto não existe matéria de que escrever historia, ou a obra escripta, sem factos muito averiguados (por mais esmerada que seja a