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2.4. O IHGB como lugar de autoridade: em busca do reconhecimento na cidade letrada

2.5.4. O historiador-literato e, às vezes, poeta

Ao trazer para o espaço das atribuições do historiador a questão escrita correta e elegante, Varnhagen dialogava com a preocupação do cônego Januário da Cunha Barboza em relação à necessidade de textos de história com uma narrativa bem elaborada, tornando a leitura agradável e útil. Para o primeiro secretário do IHGB, inspirado no barão de Barante (1782-1866),

a historia seria, portanto, incompleta, descoberta e arida, si occupando-se unicamente de resultados geraes, por uma mal entendida abstracção, não collocasse os factos no theatro em que se passaram, para que melhores se apreciem pela confrontação de muitas e poderosas circumstancias que desembaracem a intelligencia dos leitores. A sorte geral da humanidade muito nos interessa, e nossa sympatia mais vivamente se abala quando se nos conta o que fizeram, o que pensaram, o que soffreram aquelles que nos precederam na scena do mundo: é isso o que falta á nossa imaginação, é isso o que resuscita, por assim dizer, a vida do passado, e que nos faz ser presentes ao espectaculo animado das gerações sepultadas. Só desta arte a historia nos póde offerecer importantissimas lições; ella não deve representar os homens como instrumentos cegos do destino, empregados como peças de um machinismo, que concorrem ao desempenho dos fins do seu inventor.168

Para Temístocles Américo Cezar, os escritos de Prosper de Barante seriam uma espécie de manual do historiador no discurso de Januário da Cunha Barboza. O historiador francês, representante da escola romântica, professava que se poderia ressuscitar o passado, desde que se tivesse a competência para manipular de forma correta as fontes. Além disso, ele defendia a escrita da história pautada por um estilo vívido e literário. A defesa da cor local era uma das premissas de organização da narrativa, uma vez que ao preservar o potencial criativo das fontes herméticas ou áridas, pode torná-las mais vivas, mais intensas.169

168 Januário da Cunha Barboza. Discurso do Primeiro Secretario Perpetuo do Instituto, RIHGB, op. cit., p. 12-13.

169 Temístocles Américo Cezar, Narrativa, cor local e ciência: notas para um debate sobre o conhecimento histórico no século XIX, História Unisinos, São Leopoldo, vol. 08, n. 10, jul./dez. 2004, p. 24-25.

Essa estetização do passado, influenciada pelo uso da noção de cor local como estratégia de construção narrativa histórica do século XIX, defendida pelo primeiro secretário perpétuo, confirmava a importância deste procedimento para a eficiência das tarefas de rememoração.170 Segundo Valdei Lopes

de Araujo, embora uma das preocupações recorrentes nos textos originais do IHGB, a forma da narrativa era menos evidente quando comparada com os aspectos eruditos e as demandas filosóficas.171 Neste

sentido, as memórias de Raimundo da Cunha Mattos e de Rodrigo de Souza da Silva Pontes seriam exemplares desta hierarquia de interesses, pois estariam muito mais voltadas para a questão da reunião e organização de documentos e da periodização da história do que com a própria narrativa.

Com base na análise da correspondência ativa e dos prefácios de suas obras, Laura Nogueira Oliveira observou que a dimensão literária em Varnhagen se fazia presente por meio da discussão do estilo. Para o prescritivo autor da Historia geral do Brazil, o historiador deveria ter estilo. O estilo que advogava para o gênero histórico era próximo ao do judiciário, mas lembrava que mesmo um veredicto não poderia deixar em segundo plano o belo.

Do mesmo modo que a criação poética, ao redigir um texto o historiador tinha (...) de preocupar-se com o belo; mas se o belo na poesia era alcançado pela harmonia da forma, no discurso histórico ele era atingido graças à capacidade de o historiador torná-lo verossimilhante, por meio da invenção apropriada.172

Ao abordar a questão do estilo nos escritos de Varnhagen, a autora ponderou que ser historiador-literato e poeta para ele não implicava em improviso ou adesão cega à inspiração. Pelo contrário, significava cuidar da arquitetura textual: a revelação da verdade dependia do controle da palavra e de seu correto emprego.173

Neste caso, o visconde de Porto Seguro se aproximava das afirmações do barão de Barante – referenciado no discurso de Januário da Cunha Barboza – que também destacou a semelhança entre a narrativa histórica e a poesia, pois ambas falariam à imaginação, embora a primeira dependesse da verdade dos fatos:

170 Manoel Luiz Salgado Guimarães, A disputa pelo passado na cultura histórica oitocentista no Brasil, in: José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império: novos horizontes, op. cit., p. 107.

171 Valdei Lopes de Araujo, A experiência do tempo: conceitos e narrativas na formação nacional brasileira (1813-1845), op. cit., p. 143. 172 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 83.

a história, no seu sentido mais geral, é a narrativa dos fatos. Ela deve, logo, variar em seu caráter, na sua aparência segundo os fato narrados, e de acordo com quem a narra. Ela ensina os tempos decorridos, não somente em relação ao relato dos acontecimentos; mas também, especialmente quando foi escrita pelos contemporâneos, ela representa o espírito, a vida moral de cada época.

A arte histórica, como todas as outras artes, teve e deve ter suas fases da civilização. Tal como os homens e os povos nem sempre pensaram e agiram com as mesmas disposições, uma vez que nem sempre viram os fatos sob o mesmo aspecto. Esta foi a raça humana, a história o foi: é justo que a pintura varie conforme o modelo.174

Em sua correspondência ativa, Varnhagen abordou a questão da escrita correta e elegante com alguns interlocutores como o próprio monarca D. Pedro II e Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Por meio da confidência epistolar, o historiador expôs seus cuidados com os seus escritos, procurando se fazer bem compreendido pelo leitor. Conselhos, sugestões e orientações sobre a redação dos textos eram ofertados e recebidos.

Nas missivas endereçadas ao IHGB, ele também registrou seu interesse pela forma como o historiador deveria cuidar da construção da sua narrativa. Na despedida da carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, logo que iniciou suas atividades de pesquisa em Portugal, Varnhagen justificava a demora de envio de contribuições para a Revista como uma precaução, pois havia de zelar pela qualidade da sua escrita:

Concluirei asseverando a V. S. que é quasi exclusivamente à geographia e historia do nosso paiz, que o Instituto tanto tem já fomentado, que se dedicam todas as minhas horas vagas; e que eu não dou d’isso já provas e documentos pela imprensa, é porque me reservo a fazel-o com mais madureza, e sem precipitação por todos os escriptores condemnada nas expressões proverbiaes do velho Horácio.175

174 Amable Guillaume Prosper Brugière (barão de Barante), Etudes historiques et biographiques, Paris, Didier et Cie, 1858, p. 183 (tradução livre).

175 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sem data no original, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 95.

Para o visconde de Porto Seguro, a construção dos seus textos exigia, além de profunda pesquisa documental, dedicação no trato das regras e do estilo da linguagem. A produção de seus escritos, portanto, dependia de apurado trabalho de lapidação. Assim como cobrava de si qualidades de erudição e literária, não deixava de procurá-los nos textos dos outros.

Em outra carta ao primeiro secretário do IHGB, de 1º de maio de 1844, Varnhagen teceria elogiosas palavras ao programa Qual era condição social do sexo feminino entre os indigenas do Brasil?, apresentado pelo consócio e político paulista José Joaquim Machado de Oliveira (1790-1867),176

reconhecendo justamente a sua capacidade imaginativa no desenvolvimento dos argumentos:

Ilmo. Snr. No numero 14 da Revista Trimestral foi impresso o tão eloquente como erudito desenvolvimento do nosso consocio o Sr. Machado de Oliveira ao programa sorteado “Qual era a condição social do sexo feminino entre os indígenas do Brasil.

Ao acabar de ler essa excellente dissertação o espírito fica satisfeito à vista de tantos argumentos que lhe fallam à razão, à imaginação e até ao sentimento; e quase essa leitura deixa em nós repugnancia à só idéa da possibilidade da mínima opposição ás bellas e consoladoras doutrinas apresentadas.177

Na sua correspondência com o amigo Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, segundo Laura Nogueira Oliveira, Varnhagen seria mais profícuo ao abordar os atributos literários necessários ao historiador.178 O diretor da Biblioteca de Évora seria interlocutor eleito pelo autor da Historia geral do Brazil

para esmiuçar os contornos formais e estéticos da narrativa histórica.

Além da cumplicidade entre amigos e trocas de informações sobre documentação nos arquivos, Varnhagen fazia um exercício de escrita sobre sua prática como historiador dedicado ao culto da pátria brasileira e da cidade letrada. Não poucas vezes fazia questão associar as suas atividades de pesquisa e de escrita a um amor as letras. Confidenciava este fato porque acreditava que o amigo conhecia por si próprio o que era aquele sentimento.179

176 Conferir: José Joaquim Machado de Oliveira, Programma – Qual era a condição social do sexo feminino entre os indigenas do Brasil, RIHG, Rio de Janeiro, tomo 04, 1842, p. 168-201.

177 Carta ao cônego Januário da Cunha Barboza, secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1º de maio de 1844, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 125-126.

178 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 86, nota 17.

179 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 29 de agosto de 1849, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 156.

As prescrições, os conselhos e os pedidos trocados entre Varnhagen e Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara poderiam ser pensadas aqui com base nas análises de Michel Foucault acerca da correspondência entre de Sêneca e Lucilius. As cartas enviadas ao amigo permitiram a Varnhagen fazer um exercício pessoal, pois ao escrever, se lê o que se escreve, do mesmo modo que, ao dizer alguma coisa, se ouve o que se diz.180

Neste sentido, oferecer orientações de como escrever era uma forma de exercitar consigo mesmo o cuidado com a língua. As suas cartas agiam tanto sobre aquele que, pela (re)leitura, a recebia, quanto sobre quem a enviava. O próprio gesto da escrita realizava este dialogo de si com o outro.181

As cartas a Joaquim da Cunha Rivara, ao menos as que tinham a finalidade de ministrar conselhos de redação, não se restringiam a uma mera introspecção, de deciframento de si por si, eram mais uma abertura que se daria ao outro sobre si mesmo.182 Ao indicar, por exemplo, os caminhos

necessários com a linguagem para a sua aprovação no interior das regras e dos anseios da revista O Panorama, Varnhagen expunha também as suas próprias percepções do que seria a escrita do historiador- literato e, às vezes, poeta.183

Na missiva de 04 de setembro de 1839, o jovem historiador não apenas sugeria ao amigo os cuidados estilísticos dos textos, mas incluía um indicativo do que e como abordar nas páginas do periódico. Estas prescrições afetivas atendiam ao interesse de Varnhagen que Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara fosse aceito e reconhecido pela sua comunidade de escritos em torno de O Panorama.

A respeito do Panorama devo dizer que os Directores me disseram, que desejavam que os artigos fossem quanto possivel sobre si e nunca maiores de trez columnas. É máo dar artigos grandes e peior é o cortal-os. Tambem me disseram que deixavam ficar o Mahomet porém que não desejavam muitas coisas desta natureza: e só quando possivel noticiais de Portugal e algumas curiosidades do Brasil. De Portugal podia V. Sª esboçar vários períodos históricos de differentes reinados etc., ou emprehender a continuação de uns quadros de historia portugueza que o sr. Alexandre Herculano deixou

180 Michel Foucault, A escrita de si [1983], in: Ética, sexualidade, política, Coleção Ditos & Escritos V, op. cit., p. 153. 181 Ibidem, ibidem.

182 Ibidem, p. 157.

183 O Panorama era revista de caráter artístico e científico de que era proprietária a Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, patrocinada pela própria rainha D. Maria I (1734-1816). Em torno deste periódico se reuniria a elite letrada portuguesa, tendo Alexandre Herculano como uma das suas referências. Ela seria o reduto dos românticos durante a primeira metade do século XIX. Segundo Thiers Martins Moreira, O Panorama é normalmente conhecido como revista do romantismo. Tal é a força literária da palavra, a publicação parece

limitar-se a um único mérito: fonte de poetas e novelistas, ainda inéditos ou em surgimento. Thiers Martins Moreira, Varnhagen e a história da

interrompidos desde o 1º vol. – creio que desde Sancho 2.º, de quem ainda tratou. Não digo bem: parou no fim do reinado de Affonso 3.º, à pag. 156 do 1.º Vol. do Panorama. Estes artigos podiam agora continuar-se no mesmo sentido; i. é o de encarar as dissenções com Roma antiga, que hoje nos utilizariam. Convem porém abstrahir na história das particularidades biographicas que todos os nossos querem sempre contar dos reis etc. Em D. Dinis vem a propósito a Universidade sobre que V. Sª não terá poucas noticias, etc.

Convêm ainda dizer outra reflexão; que convirá ser effetiva para todos os artigos que se escreverem em periódicos como o Panorama. É necessário que em todos elles trabalhe a imaginação, quero dizer, que com verdade haja imagens e poesia que deleite. V. Sª bem o saberá – É necessario que quem escreve incuta as suas ideas e é nisto que consiste a maior originalidade que de V. Sª pedem os Directores do Panorama. V. Sª escreverá como poder e tiver agora vagar, mas não deixaria de ser talvez lisongeiro à Direcção, que V. Sª quando assim não estivesse para escrever, recommendasse os artigos com um termo médio a respeito de originalidade e de traducção – isto deve-lhe ser mais favoravel que prejudicial.184

Para Varnhagen, a imaginação era instrumento vital no processo de escrita do historiador. O leitor teria de ser seduzido por um texto que abordasse os fatos com imagens e poesia. Outro aspecto marcante nas orientações ao amigo estava a necessidade de se tomar um tempo considerável na elaboração dos artigos, evidenciando um cuidado com a escolha e o uso das palavras. Este tipo de prescrição na sua escrita epistolar vislumbraria uma outra representação do historiador sorocabano que fugiria à idéia de um mero compilador de documentos. Para ele, segundo Laura Nogueira Oliveira,

do mesmo modo que na criação poética, ao redigir um texto o historiador tinha (...) de preocupar-se com o belo; mas se o belo na poesia era alcançado pela harmonia da forma, no discurso histórico ele era atingido graças à capacidade de o historiador torná-lo verossimilhante, por meio da invenção apropriada.185

184 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 04 de setembro de 1839, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 33-34.

185 Laura Nogueira Oliveira, A palavra empenhada: recursos retóricos na construção discursiva de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 83.

A preocupação com a beleza da escrita, traduzida pela correção e harmonia, aparecia também na forma e na ordem como Varnhagen achava que deveria ser apresentados os temas na revista, seguindo uma espécie de cronologia. Um bom e articulado enredo temático, pelo seu raciocínio, ajudaria na construção de imagens vivas e agradáveis ao público e na compreensão dos propósitos do autor. A disposição do lugar em que fatos e personagens entrariam na narrativa foi abordada na carta de 18 de setembro de 1839:

Sei que a Direcção gostou muito do artigo àcerca dos indígenas, que até já vi composto, e creio que ainda vai 1.º do que a vida do Arcebispo. – Eu já a fui ler, e achei nella a viveza de imagens que agrada ao respeitavel público, em objectos desta natureza. Para quando V. S.ª acabar o que tem à cerca dos indigenas talvez eu continue com um artigo à cerca do Descobrimento, imprimindo por esta occasião a linda narração de Pero Vaz de Caminha. Recommendo a V. Sª que não se esqueça dos quadros de Historia Portugueza, na qual, como V. Sª diz, não faltam pontos intactos.186

A relevância da narrativa para Varnhagen, por exemplo, fazia-se presente no seu desejo de divulgar as belezas da carta de Pero Vaz de Caminha. Este texto seria a base da sua Crônica do Descobrimento, publicada nas páginas de O Panorama, em 1840, cumprindo a promessa feita ao amigo Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Ele apresentava a carta de Caminha de forma ficcional procurando ser o mais próximo possível da realidade e, dessa forma, mais convincente, porque mais verossimilhante.187 Na construção da crônica percebe-se a proximidade das intenções de Varnhagen com

as sugestões do barão de Barante, ou seja, o uso da imaginação na produção de uma narrativa verdadeira e agradável como uma forma de cativar o leitor.188

Em outra missiva de 10 de março de 1840, o visconde de Porto Seguro traria de novo a recomendação ao amigo de uma narrativa que trouxesse elementos de estilo para ajudar no

186 Carta a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, diretor da Biblioteca de Évora, 18 de setembro de 1839, in: Francisco Adolfo de Varnhagen, Correspondência ativa, coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa, op. cit., p. 35.

187 Laura Nogueira Oliveira, Os índios bravos e Sr. Visconde: Os indígenas brasileiros na obra de Francisco Adolfo de Varnhagen, op. cit., p. 53.

188 Segundo Temístocles Américo Cezar, o êxito da proposta do barão de Barante estava justamente no tempero da escrita com as cores locais: Instrumento da narrativa histórica, seja ela um romance, uma peça de teatro, uma pintura de um acontecimento ou de um personagem

do passado, a cor local confere visibilidade à história sem, no entanto, abrir mão da faculdade imaginativa, a mesma que autoriza, eventualmente, o leitor a não percebê-la. Temístocles Américo Cezar, Narrativa, cor local e ciência: notas para um debate sobre o

convencimento do público. As palavras bem adoçadas, com toques de romance, seriam o caminho, ao lado da documentação compilada, para conseguir credibilidade e cumplicidade:

Não se esqueça V. Sª d’algum romance ainda que não seja muito romanceado. O que se quer é historia verdadeira, mas com certo colorido que agrade. Para isso serve de muito o pictoresco; i. é. o estado da athmosphera etc. V. Sª poderá aproveitar os seus muitos conhecimentos nas sciencias physicas e naturaes.189

Diante do amigo, Varnhagen não escondia seus próprios receios compartilhados sobre o processo da escrita. A juventude era o tempo das inseguranças e da necessidade de reconhecimento dos pares mais antigos da cidade letrada. Ao mesmo tempo em que procurava seguir a orientação de um certo descaramento litterario, sugerido pelo historiador Alexandre Herculano (1810-1877), ele não conseguia afugentar os fantasmas da dúvida, do medo de ferir a escrita, de deixar lacunas.

Vejo que V. Sª faz muito caso de difficuldades futuras e passadas. Lembro a V. Sª que muitas vezes tenho ouvido ao Sr. Herculano, “que quem quer escrever para o publico deve ser descarado em quanto está com a penna na mão”. D’outro modo tudo são receios, tudo são dúvidas, medos de errar, de deixar escapar alguma coisa, de... tudo. Convem sim ter e seguir certas normas, mas não sermos tão scepticos que depois de escrevermos uma duzia de vezes algumas linhas n’um papel não atrevemos a continuar. Quem me daria a mim, -- um rapaz de 22 annos, atrevimento para me arrastar em questões acadêmicas, se não fosse às vezes o preciso descaramento litterario, tão necessario como o político! Bem sei que disto se deve servir só quem o precisa, -- que tal talento haverá que se conheça tão bem as suas forças que de nada duvíde, e não precise fazel-o por systema, e outros haverá que por demazia de ignorancia não precizem o conselho, -- que é um ditado ser a ignorancia de si atrevida.190

Além disso, a busca de saber e erudição como pré-condição para se enveredar pelo território minado da redação, alertava ao diretor da Biblioteca de Évora, poderia ser um elemento de