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2.1 A Teoria do Espaço de Milton Santos

2.1.4 Epistemologia da existência

De que modo as mudanças conceituais apresentadas acima impactam na própria epistemologia da Geografia como ciência autônoma?

Como exposto acima, a totalidade é resultado do processo de totalização, que a cada momento cria novos indivíduos, conduzindo a uma nova totalidade, a um novo espaço geográfico objeto de estudo da Geografia. Além disso, sabe-se que o conhecimento do todo somente pode ser atingido através do conhecimento de suas partes, e cada uma das partes somente podem ser dadas a conhecer a partir do todo. Contudo, para que se depreenda a verdade total, somente o afirmado anteriormente é insuficiente. É necessário que se conheça também o processo histórico, o movimento conjunto de todas as partes, ou seja, a totalização (SANTOS, 2006).

Desse modo, para a realização de um estudo geográfico é muito importante levar-se em consideração como a evolução da sociedade como parte do processo histórico.

Portanto, para a compreensão da teoria ora apresentada é relevante a consideração de como o homem tem se relacionado com a distância e a superação dela, que, historicamente, sempre representaram problemas existenciais para a humanidade.

Em um momento inicial, a distância era um importante limitador das ações humanas. Estava, pois, a vida, circunscrita aos lugares. Desse modo, limites, fronteiras, inclusive físicas, inspiraram de forma relevante a evolução do saber geográfico. No entanto, com a evolução da técnica cada vez mais complexa, tais limitações foram sendo superadas, atingindo o seu ápice no período atual, o denominado período técnico-científico-informacional (SILVEIRA, 2006).

No entanto, muitas geografias não foram atualizadas, prendendo-se a contextos baseados em uma visão puramente geométrica do espaço, privilegiando a distância quando se impõe uma revisão profunda, já que a evolução tecnológica impõe limites à importância dos fatores anteriormente determinantes citados acima (ibidem).

Nas palavras de Maria Laura Silveira (ibidem, p. 82):

Nessa sucessão de contextos, ontem e hoje muitas geografias permanecem atreladas a uma visão do espaço como continente, uma concepção geométrica, feita de velhos e novos conceitos que privilegiam a distância. O centro da reflexão epistemológica parece ser a extensão, um conceito-chave ou, mesmo, uma categoria, que leva a uma resignificação do vocabulário tradicional. A preocupação epistemológica é a extensão e a forma de sua operacionalização, a distância, autorizando a falar de distância-tempo

e de distância-custo na geografia, amparados também nas reflexões das ciências econômicas.

Ainda segundo o magistério da mencionada autora (ibidem, p. 82):

Em geral, no período contemporâneo, as ideias de distância, limite, fronteira são postas em questão. Num mundo assim construído e, ainda, com a força da ação de alguns agentes e de suas respectivas formas de discurso, muitas dessas distâncias foram superadas, levando a uma reformulação de limites, a uma necessária resignificação dos conceitos da nossa disciplina e a um conjunto de novos conceitos, dentre os quais, parece-nos, o conceito de rede desponta com muita força no nosso vocabulário.

E qual será o fundamento epistemológico dessa ressignificação? Ora, o centro da reflexão epistemológica da Geografia deve abandonar a distância e a extensão, de modo a reformular o vocabulário da Geografia tradicional, dada a sua incapacidade de interpretar o presente de forma adequada com base em formulações antigas.

Diversos autores, tais como Antoine Bailly, Philippe e Geneviève Pinchemel, Roger Brunet, Benno Werlen, dentre outros, ao desenvolverem uma epistemologia baseada na extensão, têm como ponto comum terem como preocupação central a razão (ibidem), e não a emoção.

Contudo, uma Geografia fundada tão somente na racionalidade é serviçal das forças hegemônicas, só explicando o mundo pela razão e esta relacionando-se com a distância, o que não permite que se explique a totalidade do mundo contemporâneo.

O encurtamento das distâncias e a evolução da técnica ainda mantêm o alto grau de exclusão, com uma importante contribuição da ciência para tanto, já que está atrelada a uma epistemologia que exclui a emoção como parte possível do conhecimento científico. Em relação à Geografia, tem-se uma ciência preocupada não em explicar fenômenos, mas apenas registrar resultados, focada tão somente em tamanho, forma, sítio. Tal opção representa, de fato, uma recusa à modernidade, já que as possibilidades tornam-se existência pela ação (ibidem).

Desse modo, tal epistemologia da extensão, com sua visão de espaço geográfico como mero cenário onde a vida se desenvolve, é insuficiente como base para o desenvolvimento da Geografia.

Desse modo, e tendo como base a Teoria do Espaço de Milton Santos, Maria Laura Silveira (ibidem) propõe a substituição da epistemologia da extensão por uma epistemologia da existência. Para tanto, baseia-se na ideia, já mencionada acima, de Heidegger, segundo a qual o homem somente existe na situação concreta e consciente de cada um. Desse modo, estar no mundo deixa de ser um problema tão somente de distância, limites e razão, passando a ter como

base a concretização das inúmeras possibilidades disponíveis ao homem, o que nos traz de volta ao conceito miltoniano de evento (SANTOS, 2006).

Essa modificação de abordagem de visão epistemológica torna-se ainda mais característica em nosso mundo, uma vez que a técnica, tão característica do atual período técnico-científico-informacional, apresenta-se como um novo e grande desafio para a Geografia, pois uma ciência como a nossa, cujo principal objeto era “fatiar o espaço em pedaços e mostrar suas diferenças, não tem mais razão de ser porque o mundo tornou-se homogêneo” (SILVEIRA, 2006, p. 88).

No entanto, embora as variáveis-chave do período atual, tais como as finanças, a informação e a tecnociência, imponham uma tendência à unicidade, a existência não se dá de forma uniforme: as possibilidades concretizam-se de formas diversas e, em consequência, os eventos também diferem, até mesmo pelas diferenças de configuração territorial, de sistemas de objetos existentes, que possibilitam escolhas diversas.

Assim, o espaço da nossa existência não é aquele reticular e retilíneo imposto pelo período técnico-científico-informacional, e sim o espaço banal, definido como:

O espaço banal é o lugar do acontecer solidário (SANTOS, 1996a; 1996b), independentemente da força que os atores tenham para criar extensões. É o espaço da emoção porque nem todas as ações nem todos os objetos aderem à racionalidade do período. (ibidem, p. 90)

O espaço banal é, assim, o espaço de todos, como se percebe no trecho citado abaixo: As diversas geografias, isto é, a geografia dos transportes, a geografia do comércio, a geografia da população, a geografia da indústria, etc ... são parcialidades que levam em conta aspectos isolados do acontecer, às vezes como se fosse possível, além de isolar para a análise, fazê-lo, também, para síntese, o que é um grande risco. Estas espacializações singulares, como os transportes que fluem numa área, ou como o comércio, alteram o significado de uma região. Não é o espaço que se estuda assim, mas sim fragmentos dele. Quando me refiro à realização da economia, da sociedade, da cultura, da política, o que eu tenho são espaços adjetivados, o espaço económico, o espaço cultural, o espaço político, o espaço social, mas o que quero entender e preciso entender, é o espaço banal. O espaço banal é o espaço de todos os alcances, de todas as determinações; o espaço banal é o espaço de todos os homens, não importam as suas diferenças; o espaço banal é o espaço de todas as instituições, não importa a sua força; o espaço banal é o espaço de todas as empresas, não importa o seu poder. (SANTOS, 1996, p. 9)

Podemos, então, afirmar que a Geografia deve se preocupar não somente com a forma, mas com a vida que há nas formas. Ela deve investigar não somente os conteúdos, mas também os processos, o que somente pode ser feito a partir de uma teorização mais adequada ao nosso momento.

Esse momento, que exige uma epistemologia preocupada com a existência, conforme proposto por Silveira (2006), não pode ser explicado somente a partir da racionalidade, dos

aspectos formais, ignorando a existência e, por conseguinte, o espaço, onde concretizam-se as ações e onde pomo-nos no mundo. Deve, pois, buscar uma epistemologia dos processos e não somente do produto final, preocupada com a totalidade, e não com visões parciais.