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34. OFFE agrupa as duas correntes (libertários e Ortodoxos) em apenas uma pois, segundo ele,

2.3.1. A Esfera Pública Moderna

Tal qual a discussão sobre modelos de democracia, o debate sobre esfera

pública, parte e pauta-se no embate entre duas grandes tradições de pensamento e

suas derivações, que ora afastam, ora aproximam, “conservadores e progressistas”, não apenas em torno de distintas concepções de Estado e de sociedade mas, também, da relação entre ambos.

No debate sobre diferentes concepções de esfera pública e sobre a mediação que ela realiza nas relações entre Estado e sociedade a questão dos direitos adquire proeminência. Assim, torna-se pertinente inserir, na discussão sobre a formação de

esferas públicas, a relação que os direitos mantém com a mesma e a forma que

ambos assumem na relação Estado sociedade.48

Para HEGEL, o direito atua na universalização das particularidades da sociedade civil, ou seja, na superação da “Gegensittlichkeit [anti-eticidade], enquanto divisão entre universal e particular”. Dessa forma, ele é intermediário entre Estado e sociedade civil, permitindo a institucionalização de direitos objetivos, pois os direitos subjetivos “não alcançam existência objetiva sem se efetivarem enquanto lei, o que envolve legislação, codificação e administração pela autoridade pública”. (ARATO, 1994, 57-58).

A partir do exposto, pode-se dizer que, para HEGEL, a vontade universal “cria” um consenso que o direito transforma em lei. Como a sociedade é dinâmica, a lei deve se adequar, mas a criação da lei não pode fugir do universal. Os direitos, a cultura de direitos estão latentes na sociedade, entretanto, para que os mesmos se tomem lei, isto é, deixem de serem abstratos para serem objetivos, há necessidade da interferência do Estado, que funciona como elemento aglutinador e universalizador do processo.

Vera da Silva TELLES, discutindo as possibilidades e os impasses da construção da cidadania - sob o ponto de vista de seu enraizamento (ou não) nas práticas sociais - e sua relação com a construção de esferas públicas democráticas, toma os direitos como “práticas, discursos e valores que afetam o modo como desigualdades e diferenças” são apresentadas na esfera pública, isto é, os direitos

48 . Não é objeto deste trabalho, e nem se pretende, aprofundar o debate sobre o direito enquanto arcabouço jurídico do Estado. Procurar-se-á apenas ressaltar - e ainda assim, de forma superficial - uma nova maneira de conceber os direitos em nível societário.

expressam como os interesses e conflitos se realizam e aparecem. Desse modo, segue a educadora, - mais do que uma norma legal e um arcabouço institucional - na esfera societal, os direitos “estabelecem uma forma de sociabilidade regida pelo reconhecimento do outro como sujeito de interesses válidos, valores pertinentes e demandas legítimas”. Entretanto, alerta TELLES, o reconhecimento dos direitos não se dá naturalmente, mas é dependente “sobretudo de uma cultura pública

democrática que se abra ao reconhecimento da legitimidade e da diversidade de

valores”. Mais ainda, para ela, essa cultura pública, por sua vez, depende da “constituição de espaços públicos nos quais as diferenças podem se expressar e se representarem uma negociação possível”. (1994 : 91-92).

TELLES visualiza, na experiência democrática brasileira, a possibilidade de construção destes espaços e é, também, neles que vê a possibilidade dos movimentos sociais adquirirem a “consciência do direito a ter direitos”. (LEFORT, apud TELLES, 1994 : 93). Todavia, enfatiza que, numa sociedade “atravessada por ambivalências”, ao mesmo tempo que o novo se desvela no descobrimento do “direito a ter direitos”, o velho se faz presente numa “incivilidade cotidiana” que confunde

direitos com privilégios; em que a defesa dos interesses se faz em um terreno muito ambíguo que desfaz as fronteiras entre a conquista de direitos legítimos e o mais estreito corporativismo; em que a experiência democrática coexiste com a aceitação ou mesmo conivência com práticas as mais autoritárias; em que a demanda por direitos se faz muitas vezes numa combinação aberta ou encoberta com práticas renovadas de clientelismo e favoritismo que repõem diferenças onde deveriam prevalecer critérios públicos igualitários. (1994 : 93).

Em sentido semelhante, SCHERER-WARREN, levanta o fato de que na América Latina, e em particular no Brasil, os movimentos sociais “mesclam elementos da modernidade e da pós-modernidade com remanescentes culturais, arcaicos.” Para a pesquisadora, os movimentos sociais retém do passado, “resíduos das relações clientelísticas, paternalistas e ao mesmo tempo autoritárias”. Da modernidade, “alguns herdam a visão iluminista de um projeto de transformação global da sociedade a se realizar através de sujeitos históricos definidos”. Outros, já expressando a pós-modernidade, “apostam mais nas pequenas transformações que vão ocorrendo no cotidiano”. (1996 : 68-69).

Assim, exatamente da contradição, que toma a questão dos direitos um problema, é que surge o desafio de “tomar comensurável a heterogeneidade” da vida societal. E é também por isso, que sem uma mediação, operada por novas leis e novos direitos, as diferenças podem “se traduzir na fragmentação de identidades autoreferidas, enclausuradas em localismos de caráter comunitário”. (TELLES, 1994 : 94).

De todo modo, é nesse construir-reconstruir de direitos e conflitos que se (re)definem as relações entre Estado e sociedade. A heterogeneidade e a dinâmica dos conflitos que emergem na sociedade extrapolam o arcabouço jurídico clássico e se resolvem em “arenas autonomizadas dos poderes do Estado”. Espaços onde conflitos e soluções se realizam numa negociação que “elabora, incorpora, interpreta princípios de uma justiça substantiva que deslocam e subvertem a tradicional centralidade e unicidade do direito formal como regra ordenadora da vida social”. Mas, se por um lado, essa nova forma de resolução dos conflitos, pode questionar os tradicionais padrões de justiça presentes na autoritária e excludente sociedade brasileira, pode, também, pelas “assimetrias de posições e diferenças no poder de negociação dos grupos envolvidos”, aprofundar desigualdades, ao invés de ampliar e generalizar direitos.

São estes riscos, - de fragmentação e localismos, e de aprofundamento das desigualdades, - que recolocam “a exigência de espaços públicos democráticos que consolidem e ampliem as práticas da representação e negociação”, bem como, colocam, também, “a exigência igualitária, pois sem a igualdade como medida de negociação, esta pode se reduzir a um mero ajustamento corporativo de interesses ou então se resolver no puro jogo de força”. (TELLES, 1994 : 96).

Mesmo considerando os riscos inerentes dessa nova contratualidade não construir uma “medida de eqüidade e as regras da civilidade nas relações sociais”, TELLES vê na dinâmica atual da sociedade brasileira, mais do que nas fórmulas teóricas, práticas que apontam na direção da (re)atualização democrática. Estas se dão, principalmente, nas relações que movimentos da sociedade civil urbana passaram a ter com o Estado, que se caracterizam por deslocar “práticas tradicionais de mandonismo, clientelismo e assistencialismo”, efetivando-se através de gestões “que se abrem à participação popular e a formas de negociação em que

demandas e reivindicações estabelecem a pauta de prioridades e relevância na distribuição dos recursos públicos”. (TELLES, 1994 : 99-100).

A importância dessas experiências, conclui TELLES, está na possibilidade da construção de uma “noção plural de bem público”, não como "consenso que dilui diferenças e interesses em conflito e tampouco como algo sinonimizado com o ordenamento estatal”, mas, essencialmente, como uma “invenção histórica (e política) que depende de espaços públicos democráticos nos quais a pluralidade das opiniões se expresse, nos quais os conflitos ganham visibilidade e as diferenças se representam nas razões que constróem os critérios de validade e legitimidade dos interesses e aspirações defendidos como direitos”. Fugindo da normatividade constituída a priori, tal espaço há que ter, todavia, “como suposto e princípio o reconhecimento recíproco de direitos, estabelecendo uma medida comum que permita, por entre as diferenças e assimetrias de posições, algo como uma dicção comum (mas não idêntica), a troca regrada de opiniões e as normas pactuadas do conflito”. É neste sentido, que se pode afirmar que, inseridos numa esfera pública

democrática, os direitos, “significam também uma reinvenção do princípio

republicano da coisa pública” e, em se tratando do Brasil, significam uma “(re)criação da própria República”, historicamente ofuscada pelo “padrão oligárquico e patrimonialista de gestão da coisa púbica”. (TELLES, 194 : 101-102).

A cultura de direitos é um processo que acontece fora do Estado e este se altera, ou não, em função do que acontece na sociedade. Todavia, hoje, a partir do Estado, através da constituição de colegiados, conselhos etc., administrações populares o publicizam. É neste sentido que a ampliação de espaços institucionais pode levar a constituição ou ampliação de esferas públicas. Segundo OLIVEIRA, por ocasião das eleições de 1988, quando partidos e coligações partidárias de centro-esquerda e esquerda, assumiram várias administrações municipais, ampliaram-se as possibilidades “para a formação de uma esfera pública democrática no Brasil”. (1994:11).

Estariam essas administrações apenas buscando legitimidade em cima de um processo societal já em andamento? É possível chamar de esfera pública, por exemplo, um Conselho Municipal de Saúde, ou uma assembléia do Orçamento Participativo?

dois movimentos contrapostos: da radicalização da democracia e da crise do Estado. Esta crise intensificou o surgimento de novas formas de organização pública, novos espaços que estruturam as demandas - não aceitas ou não respondidas pelos governos - num “imenso círculo de representação política” criando “formas autônomas de poder e influência”. O aguçamento da crise, por sua vez, se dá, não pela sobrecarga de demandas mas, pela inexistência de instituições públicas no “direito do Estado moderno" que consigam abranger estas novas formas de representação. É neste cenário que Tarso GENRO, de modo análogo a Carlos Nelson COUTINHO, concebe a questão democrática como o “eixo de uma estratégia transformadora”, pois a sua concretização só pode se efetivar “desconstituindo o Estado e o direito” vigentes. Ao Estado, - por não conseguir “abrigar, resolver e mediar” as demandas que uma nova cidadania está a exigir, - só resta excluir ou tentar incorporar em novas formas de dominação os portadores de novos direitos. Entretanto, afirma GENRO, estas novas formas de dominação e exclusão - impostas pelas necessidades do capital frente a terceira revolução industrial - gestam também uma esfera pública não-estatal “auto-organizada ou organizada paralelamente ao Estado”, mas que, quotidianamente, tem que remeter-se ao Estado “para interferir na vida pública ou sustentar seus interesses diretos”. Neste sentido, continua GENRO, os governos locais podem e devem vir a ser espaços de experimentação de uma nova política que combine formas representativas e formas diretas de democracia, articulando a representação política tradicional com esta nova esfera pública, que “já existe, independentemente da decisão estatal”. Finalizando, GENRO afirma que a peça orçamentária é o “elemento central do poder público” e a sua elaboração, através de uma esfera pública não-estatal, legitimada por contrato político a partir do governo, traduz-se no momento mais importante de uma “co-gestão estatal e pública não-estatal”.

No contexto da cultura política brasileira os processos dos Orçamentos Participativos têm, como uma qualidade fundamental, desde que consigam constituírem-se enquanto esferas públicas democráticas, o fato de criarem condições para a contestação das relações clientelísticas no âmbito das relações entre Estado e sociedade. Ao formatarem esferas públicas democráticas, evoluem - pela

negação do discurso autoritário da competência da tecnocracia, abrindo, portanto, espaços para uma nova cultura político-administrativa. Em constituindo-se uma esfera

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pública, o Orçamento Participativo, faz com que a decisão sobre a seletividade,

enquanto prática político-administrativa da ação governamental, se desloque das esferas governamentais para as esferas das decisões coletivas. Este movimento, não implica, necessariamente, numa contra-seletividade ou no fim do caráter seletivo nas ações do Estado, o lhe que retiraria o caráter classista. Implica, isto sim, pela publicização - enquanto desprivatização e transparência do processo decisório -, na possibilidade de explicitação e visibilidade do caráter seletivo do Estado.

O OP muda o locus do poder da tecnocracia e da burocracia para os conselhos. No entanto, dentro dos OPs ou Conselhos também existem formas de seletividade. O fato da seletividade ser pública no processo de um Orçamento Participativo é condição suficiente para credenciá-lo como constitutivo de uma nova

esfera pública?

De todo modo, ainda não foi plenamente incorporado aos processos de Orçamentos Participativos sua condição de esfera pública e, se de um lado, o OP não é afirmado enquanto espaço público, de outro, ele exige a condição de espaço público sob pena de tornar-se um novo clientelismo. Este último, tem como característica, justamente, o impedimento da criação de esferas públicas

democráticas, isto é, o bloqueamento das esferas de afirmação de direitos.

COSTA, analisando o processo de construção de esferas públicas locais no Brasil, considera que as chamadas teorias da transição democrática, ao focalizarem o processo de democratização quase que exclusivamente na construção e consolidação de instituições,51 subestimaram, “relegando a um segundo plano” atores centrais da democratização como os movimentos sociais. Para uma análise mais completa dos processos de democratização, seria necessário, segundo

49. Sobre a técnica como elemento legitimante e autoritário do Estado moderno ver CHAUÍ, 1993.