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respectivas sociedades. Esse encaixe acarreta que as características de cada estado e de cada sociedade influenciam fortemente as características da democracia que terá a possibilidade (se tiver alguma) de se consolidar - ou meramente durar ou, finalmente, fracassar." (1993 : 125).

funcionais (de classe, étnicas e gênero). Mesmo nos centros urbanos é visível a dissolução funcional e territorial da “dimensão pública do estado”. O crescimento do crime, as intervenções ilegais da polícia, a prática da tortura, a execução sumária de suspeitos, a negação de direitos a mulheres e outras minorias, a impunidade do comércio de drogas e o grande número de crianças abandonadas “expressam a crescente incapacidade do estado para efetivar suas próprias regulações”. Nestas situações, tanto as regiões periféricas criando “sistemas de poder local que tendem a atingir extremos de domínio violento e personalista - patrimonial, até mesmo sultanístico - abertos a toda sorte de práticas violentas e arbitrárias”, quanto os bairros ricos segregando-se, fazem com que se encolham “os espaços públicos” e se constituam “sistemas de poder privatizado”.

Para 0 ’D0NNELL, essas regiões “neofeudalizadas” contam com organizações estatais, nacionais, estaduais e municipais, entretanto, a “obliteração da legalidade priva esses poderes [...] da dimensão públicà'. Há eleições, governos e legisladores e os partidos funcionam mas, tanto os partidos como os governos locais funcionam “com base em fenômenos como o personalismo, o nepotismo, o prebendalismo, o clientelismo etc”. De um modo geral, o interesse dos legisladores limita-se a “sustentar o sistema de dominação privatizado” que os elegeu. Para isso, dependem da troca de “favores” com o Executivo que, enfraquecido, precisa de apoio do Legislativo. Esses políticos, tanto do Executivo quanto do Legislativo, convergem na “hostilidade que demonstram a qualquer forma de obrigatoriedade de horizontal accountabilitf e, mesmo que algumas vezes ocorram graves conflitos entre eles, ambos trabalham “para evitar o surgimento de instituições representativas sólidas”.

Nestes países, que apresentam extensas áreas “heterogêneas”, as democracias se baseiam em um Estado que mistura, “de modo complexo, funcional e territorialmente, importantes características democráticas e autoritárias”. Assim, questiona-se o autor: que tipo de regime democrático pode se estabelecer sobre essa heterogeneidade? Até que ponto se pode usar aqui teorias do Estado e da democracia dos países mais homogêneos? O resultado da heterogeneidade territorial e funcional é uma disfunção onde “os direitos participativos, democráticos, da poliarquia são respeitados. Mas o componente liberal da democracia é sistematicamente violado”. ( 0 ’D0NNELL, 1993).

Mais do que confirmar a continuidade na linha teórica - situando o Estado como a esfera determinante do processo - das análises (1987 e 1993) de 0 ’D0NNELL, sobre os processos de transição, o que me interessa ressaltar é a mudança no enfoque que se opera da primeira para a segunda análise. Se no primeiro trabalho, a centralidade estava na retirada de cena dos atores autoritários, no segundo, o autor dá ênfase ao que no primeiro era secundário: a dimensão patrimonialista da cultura política latino americana.

SEIBEL, mantendo-se também - só que exclusivamente - numa análise da esfera estatal, mas referindo-se especificamente ã situação brasileira, reforça a tese do patrimonialismo quando afirma que o caráter patrimonial de organização do poder “perpassa de alto a baixo as instituições brasileiras, particularmente as públicas”.73 Para ele, a revisão das “formas morais” que permeiam as instituições, implica a superação das formas patrimonialistas de gestão, que exige “a organização de uma nova cultura político-administrativa”. Avançando para além da constatação de uma “incompatibilidade fundamental” entre o patrimonialismo e a construção de uma sociedade civil autônoma, SEIBEL propõe três “competências” que auxiliariam na configuração de uma nova prática política, qual sejam, a) uma competência técnica; b) uma cultura política e; c) uma postura ética. A competência técnica deve resgatar os instrumentos de organização e planejamento numa “perspectiva ampliada”, pois estes instrumentos, “desde que controlados socialmente”, podem neutralizar as formas patrimoniais de gestão, uma vez que o patrimonialismo, por sua própria natureza, “tem dificuldade de organizar a sociedade [...] através de ‘instrumentos públicos’ ou controlados socialmente”. Entretanto, continua o autor, por mais importante que seja, a competência técnica, sozinha, é insuficiente para gestar uma nova cultura político-administrativa. Há também a necessidade de um projeto político que tenha como ponto de partida “a noção de público-privado”.

/F inalm ente, como o terceiro elemento, SEIBEL diz ser necessária a construção de uma cultura ética que vincule competência técnica e projeto político. Não uma cultura corporativa, mas sim a que parte de uma crítica à “razão instrumentalista’ do arcabouço teórico das teorias administrativas”. Para isso, o

73 . SEIBEL, entretanto, faz a ressalva de que a afirmação não significa que o caráter das instituições brasileiras seja predominantemente patrimonial, mas sim que, em alguns setores da sociedade e do aparato estatal ele é hegemônico.

repensar da ética, no cotidiano das organizações, exige a reflexão em torno de três eixos: a) colocar a transparência, enquanto condição ética na práxis administrativa, como uma condição do controle social do “segredo de Estado”; b) perseguir a construção de consensos enquanto “relação social que viabilize a explicitação de diversidades” e; c) vincular fortemente o conceito de universalidade ao de público- privado, de modo que expresse a “delimitação e/ou negação das formas e práticas privativistas, particularistas e excludentes da ‘práxis administrativa”. (1993 : 59-62).

Marta ARRETCHE, em recente trabalho sobre reforma do Estado, questiona o consenso criado em torno dos argumentos de que a “descentralização de políticas públicas é capaz de - por si só - reduzir” a apropriação privada dos bens e serviços do Estado. Contraria BOBBIO, - que credita à “proximidade espacial” existente entre o governo local e os governados a realização do princípio que o “poder é tanto mais visível quanto mais próximo está”, (BOBBIO, 1992 : 88). Para ARRETCHE a realização da democracia ou, o uso clientelista dos recursos públicos, depende mais da “natureza das instituições” que, em cada nível de governo, devem processar as decisões e das “possibilidades de controle” real dos governados sobre a ação dos governos, do que da “escala ou nível de governo”. (1996 : 45). Para ela, a defesa feita por distintas perspectivas políticas, de que a descentralização é constitutiva da democracia, centra-se numa concepção consensuada, segundo a qual, é o “âmbito” no qual se processam as decisões políticas que determina a concretude democrática. Desse modo, para aqueles comprometidos com a radicalização da democracia, a descentralização e, em especial, a experiência dos orçamentos participativos, “representa urna estratégia” para criar instituições que viabilizem a “participação dos cidadãos nas decisões públicas”. Para os liberais, a descentralização constituí-se numa ferramenta para “fortalecimento da vida cívica” da sociedade civil, represada por um Estado centralizador. Entretanto, para a autora, a possibilidade de apreensão da concretude do ideal democrático exige como critério a adoção de determinados princípios.74 Como concepções e valores políticos

74 . A autora cita três conjuntos de princípios que, de acordo com a visão adotada, devem ser observados. Os primeiros, formulados por Dahl (1982), sobre os quais há relativo consenso. Os segundos, que se vinculam “à idéia de governo representativo que, tal como foram formulados no final do século XVIII, nunca foram postos em questão: 1) os representantes são eleitos pelos governados: 2) os representantes conservam uma independência parcial diante das preferências dos eleitores; 3) a opinião pública sobre assuntos políticos pode se manifestar independentemente do

só se realizam em instituições concretas, é pela análise da natureza de tais instituições que se pode avaliar se tais princípios se efetivam. Para a radicalização do ideal democrático, a descentralização é importante, porém, insuficiente. É mister que o caráter e funcionamento efetivo das instituições que se construíram e se consolidaram estejam de acordo com os princípios que as gestaram.

Leonardo AVRITZER, dialogando com 0 ’D0NNELL, faz uma crítica às teorias da transição, por resumirem e simplificarem a questão da democratização à retirada de cena dos atores autoritários. A partir desta crítica, AVRITZER coloca a seguinte questão: se o autoritarismo constitui apenas um veto à democracia, como, mesmo após a retirada desse veto, ainda permanecem características autoritárias no sistema político? Segundo AVRITZER, os formuladores destas teorias, por não terem uma concepção normativa de democracia, acreditam que, com a retirada de cena dos atores autoritários, automaticamente, as instituições readquirem a capacidade de processar conflitos, e que esta seria inerente a sua própria existência. Para ele, várias análises sobre o funcionamento da democracia brasileira75 apontam para “a existência de uma cultura política que se mantém ao longo do autoritarismo”, o que sugere que a democratização deva ser vista como “um processo mais longo de transformação da cultura política e das relações Estado-sociedade”.

Situando-se sob uma perspectiva da sociedade civil, AVRITZER levanta três pontos que a seu ver, devem fazer parte das reflexões sobre os processos de democratização. Inicialmente, afirma que a base da política democrática não é constituída pela “coordenação automática da ação política”, efetuada pelas instituições, mas sim pela “incorporação de um sistema democrático de valores” para a ação, efetivada no interior do sistema político. A democratização, constitui-se então, “na consolidação de uma prática política democrática no nível da sociedade civil e do

controle do governo; e 4) as decisões políticas são tomadas após debate (Manin, 1995, pp. 7-17)”. O terceiro conjunto de princípios, destaca a concepção da democracia participativa, “afiliada a tradições igualitárias e comprometida com a radicalização da participação na vida pública”, que levanta seis princípios: “1) soberania popular; 2) igualdade política; 3) justiça distributiva; 4) consciência cívica; 5) desempenho econômico; e 6) competência governamental (Cohen & Rogers, 1995, pp. 33-40)” (ARRETCHE, 1996 : 47)

5 . AVRITZER elenca como características da democracia brasileira: a) a persistência de um comportamento não-democrático das elites políticas, que continuam seguindo estratégias patrimonialistas ou corporativistas (Camargo, 1989, e Mainwaring, 1991); b) a dissolução entre as práticas políticas democráticas no nível da institucionalidade política e persistência de práticas não-

sistema político”. Se se apega apenas à constatação de regularidades empíricas (eleições etc.), pode-se deixar de perceber que “a vigência de normas e seu entendimento podem estar em contradição”, deixa-se de perceber que, em democracias não consolidadas, pode existir “um hiato entre a existência formal de instituições e a incorporação da democracia às prática cotidianas dos agentes políticos”. Para AVRITZER, trata-se, sobretudo, de compreender que “existe uma cultura política não democrática que se entrelaça com a institucionalidade democrática”, fazendo com que, as práticas dominantes, neste caso, não sejam nem “puramente democráticas nem puramente autoritárias”. Pode-se, portanto, supor a existência de “duas culturas e apontar a disputa entre elas no interior do sistema político”. Desse modo, não basta que atores não vetem negociações, pois é a idéia mesmo de negociação que está em jogo e ela assume uma relevância distinta quando se consideram os países de longa tradição democrática e os recém democratizados. Nestes últimos, a negociação envolve o “aprendizado da negociação”.

Em segundo lugar, AVRITZER pondera que não se deve desvincular a questão do autoritarismo da questão da modernização do Estado e da economia, haja vista a coincidência entre “a introdução das formas modernas de racionalidade na política e o surgimento das formas contemporâneas de autoritarismo”. O processo de modernização, desestrutura uma forma de Estado e de relação Estado- sociedade, pois faz com que as estruturas de poder e a economia se despersonalizem e isto tem um formidável impacto sobre o exercício da democracia. Um novo equilíbrio só se estabelece quando “a democracia e um conjunto de direitos sociais se generalizam enquanto práticas compensatórias”. Desse modo, tanto a democracia quanto a cidadania podem ser consideradas como “rupturas com formas de poder privado incompatíveis com as relações impessoais introduzidas pelo Estado moderno”. Entretanto, vale lembrar que “a transferência e a assimilação das estruturas do Estado moderno e das técnicas modernas de dominação” ocorre mais facilmente do que o aprendizado pelos atores sociais das formas de ação no interior dessas mesmas estruturas.

Em terceiro, lembra que as relações entre Estado e sociedade “não devem ser concebidas apenas enquanto continuidade”, pois assim se deixa de analisar,

tanto o papel democratizador de movimentos sociais, quanto a democracia como “uma forma de solidariedade social e de controle sobre o Estado”. Com efeito, se fixarmos como parâmetros da democratização, a incorporação de uma cultura

política democrática e a inserção da democracia na agenda social, a democracia

deixa de ser vista apenas como a “coordenação” da ação sem vetos, para ser entendida como algo que diferencie “formas de ação estratégicas de formas solidárias de ação social”. (AVRITZER, 1995 : 109-114).

Em síntese, se para 0 ’D0NNELL a segunda transição é elemento decisivo para o sucesso ou fracasso na construção de instituições democráticas, para ARRETCHE não basta descentralizar e criar instituições, é necessário que elas tenham um caracter democrático. AVRITZER avança ainda mais, afirmando que não bastam instituições democráticas, é necessário ter (gestar) uma cultura política democrática que faça a ligação entre instituições e normas e valores sociais.

Capítulo 3

Procedimentos metodológicos da análise empírica

3.1. Hipótese

A hipótese que tomamos é que o Orçamento Participativo, enquanto uma dimensão democrática de gestão, representa um esforço para romper com formas tradicionais de gestão estatal e impulsionar a formação de esferas públicas democráticas. Entretanto, o Orçamento Participativo encontra limites e resistências, representados principalmente:

a) pela cultura política que historicamente organizou de forma particularista - clientelista as relações entre Estado e sociedade;

b) por atores sociais, com práticas tradicionais de representação política, que se sentem ameaçados por uma nova forma de vínculo entre governo e sociedade e;

c) pela ausência de formatos institucionais democráticos.

3.2. Metodologia da abordagem empírica e fonte de dados

Para elucidar o problema de pesquisa proposto e testar a hipótese levantada optei por um delineamento do tipo estudo de caso, com coleta e análise de dados qualitativos e quantitativos. Assim, a pesquisa empírica apoia-se nas seguintes fontes de dados: