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Segundo 0 ’Donnell, “o elemento decisivo para determinar o resultado da segunda transição é o sucesso ou fracasso na construção de um conjunto de instituições democráticas que se tornem

COSTA,52 que as investigações, de um lado, penetrassem “o tecido das relações sociais e da cultura política gestada nesse nível”, e de outro, se debruçassem sobre “os padrões concretos de relacionamento entre o estado e a sociedade civil, analisando o papel de atores como movimentos sociais, organizações não governamentais, etc. para a operação de tais transformações”. (1997 : 1). Se por um lado, as duas abordagens, citadas por COSTA, focalizam esferas diversas - Estado e sociedade civil - e problemas distintos, - respectivamente, as teorias do Estado procurando novos padrões para a relação Estado-sociedade e as teorias da sociedade civil preocupando-se com a necessária autonomia que um novo modelo deva ter, por outro, convergem quanto aos pontos de partida - processo de democratização da sociedade brasileira - e de chegada - constituição de esferas

públicas democráticas.

Qual o conceito mais consolidado de esfera pública? O de abertura de canais entre o Estado e a sociedade, ou a construção de novos fóruns de discussão, em que o Estado é só uma parte desse processo mais geral? FEDOZZI, define esfera

pública,

como um espaço onde está presente o Estado e a sociedade civil, é uma esfera reconhecida pelos atores sociais, onde o Estado emerge, ou como mediador ou como elemento de disputa, mas onde, fundamentalmente, os vários atores, num grau de relativa autonomia entre si e com o Estado, podem - mediante regras democraticamente estabelecidas em permanente disputa - clarificar os seus interesses, buscar legitimidade, estabelecer as suas alianças e representações. (1993: 04).

O Estado, necessariamente, é elemento constitutivo da esfera pública? No Brasil, país marcado por uma herança de relações tradicionais na política, articuladas a partir de um Estado patrimonial e profundamente autoritário, é possível a construção de uma esfera pública onde ele se faça presente sem cooptar os demais atores? Tarso GENRO diz que,

um novo lugar entre o Estado e a sociedade civil vem sendo paulatinamente testado ao longo do processo de afirmação da democracia moderna. É um lugar “público”, que não é Estado e, ao mesmo tempo, não é um lugar “civil”. Não é a sociedade civil na qual o mundo privado procura a sua realização nem um lugar “estatal, no qual predominam os agentes do Estado. (1996 :126).

importantes pontos decisórios no fluxo do poder político.” ( 0 ’D0NNELL, 1991: 26).

52 . Para esta análise COSTA utiliza-se também de argumentos levantados por outros autores, (ALVAREZ, DAGNINO & ESCOBAR 1997) e (AVRITZER, 1996).

Estas são algumas das questões que se colocam ao debate, quando se relacionam os processos de Orçamentos Participativos, a implantação de direitos e a formação de esferas públicas. As categorias: público, privado e esfera pública foram cunhadas ao longo da história, entretanto, foi essencialmente na modernidade que sofreram as transformações que interessam ao nosso tema. A nítida distinção entre a esfera pública e a esfera privada, presente no mundo antigo, desfez-se na modernidade com a passagem do que era social, das atividades econômicas, então sob responsabilidade da administração doméstica, à esfera pública, transformando o que era pertinente à família em interesse coletivo. Assim, no mundo moderno, o público e o privado interpenetram-se continuamente, mas de tal modo que “a noção de que a sociedade, como um chefe de família, administra a casa em favor de seus membros, é profundamente arraigada na terminologia econômica, [...], [o que] implica ou sugere uma analogia entre a sociedade e o indivíduo que governa a sua casa ou a sua família”. (ARENDT, 1991: 46).

Ao diagnosticarem o encolhimento da esfera pública burguesa, HABERMAS e

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Hannah ARENDT concordam que criou-se um vazio em termos de esfera pública. OLIVEIRA, dialogando sobre essa (des)constituição da esfera pública burguesa, diz que neste vazio surgiu a esfera pública proletária, pois enquanto naquela os interesses privados da burguesia tornam-se interesses gerais, “a formação de uma esfera pública democrática não burguesa ocorre quando a própria relação privada de domínio da burguesia passa a ser objeto de negociação pública”. (1994: 14).

A seguir, desenvolverei três modelos de esfera pública, procurando abranger com isso, mesmo que superficialmente, o pensamento dominante das principais correntes políticas filosóficas atuais. O primeiro modelo, decorre da visão de mundo dominante na tradição liberal e se fundamenta na teoria dos sistemas de LUHMANN. O segundo modelo de esfera pública carrega os ideais cívicos republicanos presentes no pensamento de ROUSSEAU e Hannah ARENDT e o terceiro modelo, apoia-se nos teóricos da redescoberta da sociedade civil, principalmente em COHEN, ARATO e HABERMAS, que em trabalhos mais recentes, de modo análogo

53 . A esfera pública burguesa é, segundo Costa, “aquela associada aos espaços de intercâmbio comunicativo (salões, cafés, mas também imprensa e fóruns ampliados) que emergem, sobretudo na Europa, com a era moderna e cujo processo de esgarçamento e diluição foi qualificado por Habermas.” (COSTA, 1997 : 5)

a HELD, parte de uma análise crítica das duas grandes tradições da teoria

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democrática para propor um terceiro modelo de democracia.

A concepção liberal de esfera pública

A esfera pública liberal institui-se pela centralidade que atribui aos meios de comunicação e pela impossibilidade de entendimento comunicativo. É a disputa pelo controle dos recursos disponíveis e a conseqüente eficácia no uso destes, e não o conteúdo das propostas, que definirá as preferências (políticas) das massas. Nesta

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concepção, elaborada a partir da teoria dos sistemas de LUHMANN, a esfera

pública é caracterizada como um “sistema de comunicação especializado na

‘reunião (imput), processamento (throughput) e na transmissão de temas e opiniões (output)”. (NEIDHARDT, apud COSTA, 1997 : 3).

Mesmo sendo um espaço comunicativo aberto, em sua funcionalidade concreta, a esfera pública assim concebida, estabelece uma “diferenciação funcional rígida entre os porta-vozes (de partidos, de grupos organizados, etc.) e os media por um lado e o público (no sentido de platéia), por outro”. (COSTA, 1997 : 4). Desse modo, a mesma esfera pública gesta e cultua dois tipos de cidadãos: os formuladores/processadores (cidadãos ativos) e os destinatários (cidadãos passivos) das mensagens. Esta duplicidade de atores faz com que neste modelo de esfera

pública, se diferencie opinião pública - enquanto opinião dominante daqueles que

têm voz ativa - de opinião da população, enquanto opinião do público platéia. A conseqüência da diferenciação dos papéis e do peso da opinião dos distintos atores é que o próprio alargamento da esfera pública liberal, quando ocorre, processa-se

54 . A analogia, do ponto de vista metodológico, refere-se a que ambos procuram construir seus modelos de sociedade a partir de um duplo movimento: dissecando criticamente as duas grandes tradições teóricas, que historicamente se opõe e, construindo uma normatividade a partir das convergências dos modelos analisados. Held, de modo mais genérico, opõe a tradição liberal à marxista e Habermas, referenciando-se mais particularmente no debate norte americano, opõe comunitaristas e liberais. Diferentemente, o primeiro propõe como categoria chave o conceito de autonomia e o segundo, desenvolve o modelo discursivo.

55 . Na teoria sistêmica, os vários subsistemas constituem-se em “sistemas” fechados, auto- referentes, com “formas de ação e códigos próprios, que não são traduzíveis e intercambiáveis com outros subsistemas.” Cada subsistema não se preocupa com as conseqüências que suas ações provocam nos outros subsistemas. Além de precarizada, a comunicação entre os subsistemas se efetiva em níveis individuais, de modo que um subsistema só consegue comunicar-se com o que lhe está próximo, assim, a comunicação entre o sistema como um todo se dá de forma estanque, pois não há “nenhuma instância onde os problemas da sociedade como um todo assumam consistência e relevância, vale dizer, sejam tematizados numa linguagem comum.” (COSTA, 1994 : 42)

de forma estanque e controlada. Os segmentos sociais excluídos do espaço formulador/processador das políticas só conseguem publicizar suas demandas em nível de “input” da esfera pública, isto é, no espaço que, neste modelo, antecede a

esfera pública propriamente dita (“throughput”). Assim, as manifestações dos atores

“secundários” são consideradas apenas como “um equivalente funcional para as entrevistas coletivas daqueles atores que já se estabeleceram no sistema de comunicação da esfera pública”. (NEIDHARDT, apud COSTA, 1997 : 4).

Além disso, há ainda que levar em consideração a real possibilidade de que, os que têm a opinião dominante, - formuladores/processadores - a tem em razão do modelo permitir uma não transparência no interior da própria esfera pública. Tal possibilidade, efetivada pelas “estruturas de um poder oculto obstruem a esfera pública e excluem as discussões frutíferas e esclarecedoras”. (HABERMAS, 1998 : 36).

Norberto BOBBIO, ao discorrer sobre as seis “promessas não cumpridas” pelas democracias ocidentais afirma que, mesmo a não realização de todas elas não significa a degeneração da democracia, mas apenas uma “adaptação natural dos princípios abstratos à realidade”. Entretanto, ressalva, “todas, menos uma: a sobrevida (e a robusta consistência) de um poder invisível ao lado ou sob (ou mesmo sobre) o poder visível”. (1992 : 10). Para BOBBIO, é constitutivo da democracia o fato de que nela “nada pode permanecer no espaço do mistério”. Assim, continua o filósofo italiano, a definição de um governo democrático, exige que se tenha um “governo do poder público em público” e isto porque, “público” tem dois significados diversos: conforme coisa pública que se contrapõe ao “privado” e, conforme “visível” que se contrapõe ao “secreto”. (1992 : 85).

Na esfera pública liberal, a política é, sobretudo, “uma luta por posições que assegurem a capacidade de dispor de poder administrativo. [...] O êxito é medido pelo assentimento dos cidadãos a pessoas e programas, quantificados pelo número de votos obtidos”. O eleitor decide seu voto do mesmo modo que escolhe suas preferências no mercado. “O que se exige das pessoas é que não levem em conta nada que não seja o interesse próprio”. (HABERMAS, 1995 :43).

Desse modo, para além, e em conseqüência mesmo, da concepção

56 . As seis promessas são: a sobrevivência do poder invisível; a permanência das oligarquias; a supressão dos corpos intermediários; a revanche da representação; a participação interrompida e o cidadão não educado.

funcionalista e liberal deste modelo, outra singularidade deve ser ressaltada. Os temas que compõem a agenda a ser processada na esfera pública se formam através de um mercado onde os diversos atores secundários - para terem suas demandas visualizadas e incorporadas pela “opinião pública” (porta-vozes de partidos e grupos organizados e os media) - devem superar “a concorrência estabelecida pela presença dos demais atores”, valendo para isso, prioritariamente, a “habilidade dos movimentos em manipular os recursos comunicativos de que dispõem”. (COSTA, 1997 : 4). Assim, a questão norteadora que se coloca para explicar (e justificar) a inclusão ou não de temas na esfera pública não é dada

pelas possibilidades abertas aos movimentos de convencimento da sociedade da justeza de seus propósitos, nem, tampouco, de se questionar se os temas trazidos pelos movimentos correspondem a reivindicações e ‘projetos’ latentes da sociedade ou padrões de moralidade existentes ou almejados. Trata-se, unicamente, de avaliar a capacidade destes de produzir, seja pela espetacularização de suas ações, seja através de um trabalho adequado de relações públicas, fatos com conteúdo noticioso. (COSTA, 1997 : 4)

Por esta abordagem, a força motriz para produzir o convencimento não provém da força dos argumentos mas da substituição do “público pelo publicitário”. (RIBEIRO, apud COSTA, 1997 : 5). A motivação para participação em ações de solidariedade, por exemplo, é conseguida transformando-se os novos políticos “em mestres do jogo de imagens, capazes de arregimentar, através da estética não verbal e da promessa de participação em ações carregadas de emoção e grandes vivências, milhares de adeptos”. (COSTA, 1997 : 4). A organização Greempeace talvez seja aquela que mais fielmente (e espetacularmente) simbolize esta forma de inserir-se na agenda pública.

Entretanto, mesmo que não seja apenas em espetáculos grandiosos que esta forma política se realiza e nem seja possível, muitas vezes, separar justeza de propósitos ou padrões de moralidade da maior ou menor possibilidade de vencer a concorrência que dá acesso a esfera pública, sem dúvida a capacidade de acesso é decorrente, quase que exclusivamente, dos recursos que o ator controla.57

57 . Por este ângulo, pode-se explicar mais facilmente porque, por exemplo, no início de 1998, logo após a interdição - por problemas na estrutura do edifício Palace II, prédio “classe alta” no Rio de Janeiro - e durante vários dias, o assunto transformou-se em manchete nacional com seus moradores conseguindo, inclusive, uma audiência com o Presidente da República e a promessa de indenizações via cofres públicos. A relevância do acesso aos meios de comunicação e o poder dos mesmos fica mais evidente se considerarmos que no mesmo Rio de Janeiro, milhares de

Por esta abordagem, elitista, - que concebe a esfera pública apenas como um mercado concorrencial pelo controle e uso de recursos comunicativos, da forma mais espetacular possível - “não se deve esperar que, no bojo das campanhas de solidariedade, ou nos demais processos de mobilização coletiva verificados nas sociedades contemporâneas, constituam-se contextos comunicativos, caracterizados pelos intercâmbios racionais-discursivos”. (BARINGHORST, apud COSTA, 1997 : 4).

Esta concepção, entretanto, parece não poder abarcar, por exemplo, a “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida” sugerida por Betinho, ação solidária que, sem prometer “ações carregadas de emoção e grandes vivências”, envolve milhares de pessoas em todo o país. Também, certamente não consegue enquadrar, ao menos totalmente, a solidariedade e o espírito cívico expresso pelos participantes do Orçamento Participativo de Florianópolis. A maioria (71,28%)58 - quando colocada frente a uma situação (recursos financeiros disponíveis para uma só obra em uma só comunidade) e duas opções (realjzar a obra na sua ou em outra comunidade) - respondeu que optaria “pela mais carente, mais necessitada” com critérios de justiça como: maior população, nível de carência, maior número de crianças, condições de vida etc. e, através de procedimentos como: “pela maioria, por sorteio, pelo consenso e metade para cada comunidade”, ou seja, que buscaria uma solução “democrática e justa”. Entretanto, explica os 20,21% dos participantes que, frente a mesma situação, movendo-se por uma racionalidade instrumental, responderam que sempre decidiriam movidos pelos seus interesses particulares ou, no limite, pelas suas comunidades.

Remontando a HEGEL, observa-se que somente no Estado, terceiro estágio de seu modelo de sociedade, não há mais conflito entre ser e dever ser, entre

desabrigados esperam há anos providências do poder público para recomeçarem sua vidas, atingidas por calamidades, como enchentes e desabamentos, conseqüências do descaso do próprio Estado. Casos semelhantes ocorrem nos mais diversos locais e ocupariam páginas e páginas. Em Florianópolis, por exemplo, a enchente de dezembro de 1995, entre outros problemas, alagou a bacia hidrográfica do Itacorubi, onde situam-se vários bairros “classe média alta”, bem como deixou centenas de desabrigados nos diversos morros da capital. Já no início de 1996, na região de Itacorubi, constituiu-se um movimento a partir dos moradores objetivando resolver definitivamente os problemas de enchentes naquela região. Projetos técnicos foram feitos, professores da universidade se engajaram, reuniões periódicas com o poder público local foram realizadas, tudo isto com uma ampla cobertura da mídia. Considerando a justeza dos propósitos, nada mais correto. Por outro lado, até o momento, os desabrigados dos diversos morros continuam a mercê da natureza (e da fé) contra os deslizamentos que os ameaçam a cada chuva.