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Foto 16 Pesque-pague e parque aquático Sítio das Palmeiras

2. A contribuição de Milton Santos para a teoria social crítica através da

2.4. O espaço: objetos e ações

Milton Santos entende que o espaço geográfico deve ser considerado como algo que participa igualmente da condição do social e do físico, um misto, um híbrido. O espaço é formado de objetos técnicos, materializados a partir de ações, constituindo-se em um composto de formas-conteúdo (materialidade-ação).

“Nossa proposta atual de definição da geografia considera que à disciplina cabe estudar o conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ação que formam o espaço.” (SANTOS, 1996, p. 51). A indissociabilidade de objetos e ações se dá por meio da constante interação destes. “De um lado, os sistemas de objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma.” (p. 52).

Santos ainda argumenta que “o enfoque do espaço geográfico, como o resultado da conjugação entre sistemas de objetos e sistemas de ações, permite transitar do passado ao futuro, mediante a consideração do presente". (p. 81). Ocorre, portanto, que, assim como objetos e ações do passado influenciam na dinâmica espacial do presente, apreender o presente nos permite refletir e agir sobre o futuro.

Na visão de Santos (1996, p. 51):

O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá. [...] Através da presença dos objetos técnicos: hidroelétricas, estradas de ferro, cidades, fábricas, o espaço é marcado por esses acréscimos, que lhe dão um conteúdo extremamente técnico.

Os sistemas de objetos e de ações considerados em conjunto constituem sistemas técnicos. Os objetos técnicos representam a materialidade/forma, estando dispostos na paisagem e fazendo parte do espaço geográfico. “Um objeto técnico nasce porque uma série de operações intelectuais, técnicas, materiais, sociais e políticas convergem para a sua produção” (SANTOS, 1996, p. 172). Ao longo do tempo, um novo sistema de objetos responde ao surgimento de cada novo sistema de técnicas. Em cada período, há também um novo arranjo de objetos.

Para os geógrafos, os objetos são tudo o que existe na superfície da Terra, toda herança da história natural e todo resultado da ação humana que se objetivou. [...] O enfoque geográfico supõe a existência dos objetos como sistemas e não apenas como coleções: sua utilidade atual, passada, ou futura vem, exatamente, do seu uso combinado pelos grupos humanos que os criaram ou que os herdaram das gerações anteriores. Seu papel pode ser apenas simbólico, mas geralmente, é também funcional. (SANTOS, 1996, p. 59-60).

As ações levam a mudanças na disposição e na composição dos objetos, da mesma forma que os objetos podem limitar ou beneficiar determinadas ações. Tudo o que é resultado do trabalho do homem constitui-se, portanto, em um objeto técnico. Só

não seriam objetos técnicos aquilo que Santos (1996) chama de coisas, que corresponderiam a tudo o que provém da natureza (elementos abióticos – como rochas, atmosfera, água e minerais – e elementos bióticos, ou seja, toda a biodiversidade animal e vegetal), e que ainda não foram utilizadas pelo homem. Entretanto, a partir da atribuição de um valor às coisas, estas também se transformam em objetos36.

Um exemplo interessante dessa transformação das coisas em objetos diz respeito à questão da turistificação de lugares com elementos “naturais” conservados, como praias, rios, matas, cavernas, etc. O desenvolvimento das técnicas permitiu ao homem obter lucros com a conservação da “natureza”, transformando esta em mercadoria. Além disso, a disseminação da idéia de retorno à natureza como retorno ao sagrado tem profunda ligação com o imaginário da sociedade, imaginário que, por sua vez, é amplamente influenciado pela mídia por meio da informação, que é uma das maiores fontes de poder dentro do período atual, chamada por Santos de meio técnico-científico-informacional.

O tempo de existência e a funcionalidade dos objetos técnicos são relativos, e estão vinculados aos avanços universais da ciência e da tecnologia, bem como às condições naturais, econômicas, políticas e culturais dos lugares. É preciso discernir entre a existência do objeto e o valor deste.

Toda criação de objetos responde a condições sociais e técnicas presentes num dado momento histórico. Sua reprodução também obedece a condições sociais. Algumas pessoas adotam a novidade em breve espaço de tempo, enquanto outras não reúnem as condições para fazê-lo, ou preferem recusá-la, permanecendo com modelos anteriores. (SANTOS, 1996, p. 56).

Santos (1997) chama os objetos de objetos técnicos em função da gênese técnica destes. No meio técnico-científico-informacional, a descartabilidade dos objetos técnicos e sua substituição por novos objetos é cada vez mais rápida e comum. “Os objetos são eles próprios informação; e não apenas movidos pela informação” (p. 172). A necessidade de produção e consumo crescentes faz com que os objetos preexistentes envelheçam rapidamente, sendo substituídos por “objetos tecnicamente mais avançados, dotados de qualidade operacional superior" (p. 101).

Devido à relevância da observação da forma na Geografia, a apreensão dos objetos técnicos através da paisagem pode ser um ponto de partida para a análise geográfica. Santos (1996) diferencia a paisagem de configuração territorial e de espaço, entendendo-a como a porção da configuração territorial que é possível abarcar com a visão. A paisagem é transtemporal, pois contém objetos passados e presentes, numa construção transversal. É uma parcela fragmentada do real possível de ser apreendida a

36 No princípio, tudo eram coisas, enquanto hoje tudo tende a ser objeto, já que as próprias coisas, dádivas

da natureza, quando utilizadas pelos homens a partir de um conjunto de intenções sociais, passam, também, a ser objetos. Assim a natureza se transforma em um verdadeiro sistema de objetos e não mais de coisas e, ironicamente, é o próprio movimento ecológico que completa o processo de desnaturalização da natureza, dando a esta última um valor (SANTOS, 1996, p. 53).

partir da observação, sendo uma síntese concreta, um conjunto de formas e objetos que expressam tempos e territórios diferentes.

Apesar da relevância da paisagem/forma, Santos (1996) assevera que não basta focar somente a forma/aparência, mas a forma-conteúdo, pois todo objeto surge de uma ou mais ações. “A idéia de forma-conteúdo une o processo e o resultado, a função e a forma, o passado e o futuro, o objeto e a natureza, o natural e o social.” (p. 83). “Por adquirirem uma vida, sempre renovada pelo movimento social, as formas – tornadas assim formas-conteúdo – podem participar de uma dialética com a própria sociedade e assim fazer parte da própria evolução do espaço” (p. 86). Essa dialética não se dá entre sociedade e paisagem, mas entre sociedade e espaço37.

Santos (1980 e 1996) utiliza o conceito de rugosidades para referir-se ao que fica do passado como forma, como espaço construído, ou seja, como elementos da paisagem. As rugosidades revelam combinações que eram as únicas possíveis em um tempo e lugar dados, e contribuem para apreender o espaço geográfico. O autor (1996) alerta para o fato de que as rugosidades não podem ser apenas encaradas como heranças físico-territoriais, mas devem ser encaradas também como heranças socioterritoriais ou sociogeográficas38.

Ao atribuir grande valor ao espaço como objeto de análise da Geografia, Santos dá relevância à paisagem e às rugosidades como conceitos que auxiliam no estudo do espaço geográfico, pois estas revelam objetos técnicos de tempos diferentes, que surgem, permanecem e coexistem no espaço, em função de ações intencionais ou até não intencionais. A proposta de avançar na apreensão da forma para a da forma- conteúdo apresenta-se, porém, como um salto qualitativo do entendimento da relação entre paisagem e espaço, pois não nega a paisagem, mas a considera como uma importante variável do espaço geográfico.

Poderíamos afirmar que a paisagem pode conter os objetos técnicos visíveis, fruto de diversas ações (formas-conteúdo), mas que é uma categoria limitada para a Geografia. Santos (1996) ainda aponta que existem situações onde os objetos não mudam de lugar, mas de função, fazendo com que haja transformações no espaço sem que a paisagem se modifique. Desta forma, a análise do espaço como objeto da Geografia apresenta-se mais complexa, pois busca apreender de forma conjunta os objetos e as ações.

Santos (1996, p. 77) ressalta que “a ação não se dá sem que haja um objeto; e, quando exercida, acaba por se redefinir como ação e por redefinir o objeto.” Considerar

37 Uma casa vazia ou um terreno baldio, um lago, uma floresta, uma montanha não participam do processo

dialético senão porque lhes são atribuídos determinados valores, isto é, quando são transformados em espaço. O simples fato de existirem como forma, isto é, como paisagem, não basta. A forma já utilizada é coisa diferente, pois seu conteúdo é social. Ela se torna espaço, porque forma-conteúdo (SANTOS, 1996, p. 88).

as ações ou os objetos separadamente não é suficiente, portanto, para apreender a realidade histórica. As duas categorias, objeto e ação, devem ser tratadas unitariamente.

O objeto é um testemunho atual da ação, havendo “uma clara hierarquia das ações que se instalam em objetos igualmente hierarquizados e se exercem por seu intermédio. [...] Os objetos que conformam os sistemas técnicos atuais são criados a partir da intenção explícita de realizar uma função precisa, específica. Essa intencionalidade se dá desde o momento de sua concepção, até o momento de sua criação e produção” (SANTOS, 1997, p. 101).

No que diz respeito às ações, o autor (1996, p. 67) afirma que estas “resultam de necessidades, naturais ou criadas. Essas necessidades: materiais, imateriais, econômicas, sociais, culturais, morais, afetivas, é que conduzem os homens a agir”. Assim como os objetos, as ações também influenciam a ciência e a técnica, ao mesmo tempo em que são influenciadas pelas mesmas.

Santos (1996) chama a atenção para a distinção entre a escala de realização da ação e a escala de seu comando, que, em muitos casos, é estranho aos atores sociais locais. “As ações humanas não se restringem aos indivíduos, incluindo também as empresas, as instituições” (p. 67), ou seja, as firmas. Deve-se distinguir entre os atores que decidem e os outros. O decididor (governos, empresas multinacionais, agências de notícias, organizações internacionais, chefes religiosos) pode escolher o que vai ser difundido para os outros, e, mais do que isso, a ação que vai se realizar. Todavia, para que a ação ocorra, é preciso subordiná-la às normas, que podem ser escritas ou não, formais ou informais, mas que devem ser aceitas e seguidas pela sociedade.

São as ações que, em última análise, definem os objetos, dando-lhes um sentido. Não existe, contudo, ação sem sujeito/ator, sendo justamente os interesses e “necessidades” desses atores, sobretudo dos que decidem, um dos elementos responsáveis pela configuração do espaço geográfico, pois criam e transformam ações e objetos. Os objetos, as ações e a ordem espacial resultante são, portanto, intencionais. Por outro lado, a recepção e a incorporação dos objetos e das ações pela grande maioria da população local (que possui menos poder de decisão), também influenciam na dinâmica espacial. Além disso, essa população também realiza ações e pode criar/modificar objetos. São esses interesses/necessidades, seja dos atores que decidem ou dos outros, que Santos chama de intencionalidades, outro conceito fundamental em sua proposta de interpretação da Geografia.

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[...] as rugosidades nos trazem os restos de divisões do trabalho já passadas, os restos dos tipos de capital utilizados e suas combinações técnicas e sociais com o trabalho (SANTOS, 1996, p. 113).