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Foto 16 Pesque-pague e parque aquático Sítio das Palmeiras

4. Agricultura familiar

4.2. Agricultura familiar e o fenômeno da pluriatividade

4.2.2. Posições acerca da pluriatividade

Existe um amplo debate sobre os possíveis aspectos positivos e negativos da inserção dos agricultores familiares brasileiros na pluriatividade, polarizado basicamente por aqueles que acreditam que esse fenômeno possa contribuir para a dinamização social e econômica das famílias que vivem e trabalham no campo; e aqueles que entendem a noção de pluriatividade como mais um mecanismo de subordinação dos agricultores familiares ao capital. Tal subordinação ocorreria através da ampliação das relações capitalistas, incorporação de tecnologias modernas e caras, integração com agroindústrias, e do assalariamento via trabalho em indústrias, comércio e serviços.

Guanziroli (2001) não se opõe à pluriatividade, porém deixa o alerta sobre a necessidade de apreender as particularidades da pluriatividade no Brasil, e não simplesmente adotar teorias desenvolvidas em realidades diferentes. Para o autor, a

redução das desigualdades sociais deve ser combatida por meio de políticas de desenvolvimento rural que possam beneficiar a agricultura familiar, tanto com o fortalecimento da agricultura como na adoção de atividades não agrícolas.

Lamarche (1993) concluiu, em sua pesquisa, que a pluriatividade e o êxodo dos jovens no Brasil são atitudes negativas, pois o emprego externo traduz-se na falta de opções por alternativas agrícolas para a agricultura familiar.

Outro autor que considera a possibilidade de decomposição das relações familiares com a inserção em atividades pluriativas é Barthez (1982, 1987), argumentando que a pluriatividade representa uma ruptura com o modelo de família agrícola, pois a atividade agrícola já não caracteriza mais a unidade de referência. (SCHNEIDER, 2003).

Na visão de Anjos (2003, p. 91),

a pluriatividade insere-se em um contexto, onde a agricultura encontra- se submetida do ponto de vista estrutural, a uma perda de importância relativa enquanto atividade produtiva; e ao crescente vínculo entre a produção agropecuária e a dinâmica de outros setores da economia mundial. Este declive acarreta inúmeras conseqüências, especialmente no plano político.

Apesar das imposições externas, como o interesse dos mercados por novos usos do meio rural, pressão para profissionalização e capacitação técnica dos agricultores familiares, inserção da industrialização difusa em áreas consideradas rurais, entre outros fatores, cabe a ressalva da necessidade de adaptação à lógica capitalista por parte dos agricultores familiares, para garantir a sobrevivência de sua família. Assim, as unidades familiares são influenciadas pelas oportunidades de ocupação decorrentes dos interesses dos mercados consumidores, seja por alimentos, paisagens, aspectos histórico-culturais, gastronomia, lazer, turismo, artesanato, etc. Registre-se, no entanto, que ainda cabe à família agricultora a decisão de aceitar e incorporar ou não tais oportunidades em suas estratégias de sobrevivência82.

Para Alentejano (1999), a pluriatividade tem algumas características de resistência ao agronegócio e ao mercado de commodities, pois busca reduzir a subordinação ao mercado (monoculturas, integração). São contudo, limitadas as formas de resistência decorrentes da pluriatividade, pois “o desenvolvimento da pluriatividade significa uma forma de acentuação da exploração capitalista, [...] que aponta para a reestruturação produtiva, tendo como efeito o aumento da exploração do trabalho e a ampliação da margem de lucro dos capitalistas.” (p. 150).

O geógrafo Alentejano vê a pluriatividade mais como imposição do mercado e do capital financeiro para aqueles agricultores em dificuldades, do que como opção. Por conseguinte, entende que a pluriatividade não é para manter a agricultura, mas para

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Segundo Alentejano (1999, p. 155), “essas múltiplas estratégias representam o caminho, às vezes único, para assegurar a reprodução da unidade familiar agrícola, quer porque a renda dita complementar é essencial, quer porque a especialização na atividade agrícola não aparece como opção desejável para os descendentes.”

desmantelá-la. Alentejano (2003, p. 29) afirma que “o que interessa é saber se atividades rurais dos setores secundário e terciário que certamente geram maiores rendas” têm mais chances no entorno de grandes fazendas ou sítios familiares poliprodutivos.

Entre os autores que defendem a pluriatividade, destacamos Marsden e Schneider. Marsden (1995 apud Schneider, 2003) considera que a pluriatividade tende a se generalizar tanto em áreas de produção agrícola, onde o avanço tecnológico diminuiria a demanda de trabalho nas propriedades, como nas demais zonas rurais, onde o próprio Estado vem estimulando o desenvolvimento de outras atividades econômicas, como o turismo e o artesanato. O autor acredita que esse processo conduzirá à revalorização do espaço rural, especialmente em razão do rápido crescimento do movimento ambientalista e dos processos de descentralização industrial, que tendem a ampliar o mercado de trabalho e a pluriatividade pelas famílias rurais83.

Schneider (2003) também entende a pluriatividade como algo positivo para a agricultura familiar frente às novas dinâmicas do espaço rural. “A pluriatividade é vista como uma forma de acomodar a mudança, de se adaptar à realidade da agricultura, minimizando riscos, maximizando oportunidades, construindo uma família e permanecendo na terra.” (p. 97).

Já Carneiro (1999) relativiza as conseqüências da pluriatividade, não se posicionando favorável ou contra esse fenômeno, e defendendo a necessidade de apreender as estratégias e ações da família e de seus membros, para verificar a viabilidade e as implicações da pluriatividade na agricultura familiar. Mais importante seria “[...] identificar e compreender o significado (e o peso) das práticas não-agrícolas nas estratégias reprodutivas de cada tipo de família no sentido de reconhecer a tendência de sua trajetória futura em relação à agricultura e às demais opções de renda”. (p. 341).

Para Carneiro, as práticas não agrícolas, tanto podem

[...] apontar para uma contradição entre a individualização da força de trabalho e o caráter coletivo da economia familiar como pode acarretar o resgate de laços de solidariedade intrafamiliares, fundamentais para a combinação do trabalho individual com os interesses coletivos. (CARNEIRO, 1999, p. 335).

Por conseguinte, “o trabalho extra-agrícola executado por um ou vários membros da unidade familiar [...] pode servir como complemento que reforça e garante a reprodução da exploração agrícola como pode indicar uma estratégia de secundarização da atividade agrícola na reprodução social.” (p. 336). Desta forma, Carneiro acredita que o recurso ao trabalho não agrícola não indica, por si só, a falência da atividade agrícola, mas aponta para a plasticidade da agricultura familiar, que não se enquadra nem nos moldes do agricultor-empresário de ponta nem na chamada agricultura “tradicional”.

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Marsden se fundamenta, contudo, na realidade européia da agricultura familiar, onde as dificuldades de sobrevivência e de acesso à infra-estrutura e serviços públicos são bem menores que no Brasil.

No sentido de adaptação às oportunidades que surgem nessa fase do capitalismo, a pluriatividade se constitui em um fenômeno importante e inevitável, pois, além de diversificar as fontes de renda dos agricultores familiares, amplia suas relações capitalistas, inserindo-os em novos mercados e em novas relações sociais. Todavia, do ponto de vista da autonomia dos agricultores familiares (discutida e defendida por Alentejano, Carneiro, Guanziroli, entre outros), apesar de diversificar as fontes de renda, a pluriatividade, ao inserir os agricultores familiares em novos mercados, intensifica as exigências de uma racionalidade econômica/empresarial.

Em nossa opinião, a adoção da pluriatividade por parte da família rural depende das estratégias e dos anseios de cada família. Ocorre, no entanto, que, apesar de diversas atividades pluriativas serem desenvolvidas a partir da iniciativa de famílias rurais, a origem da maior parte das atividades não agrícolas para a população rural está ligada à oferta de empregos provenientes de empresas que não são de propriedade dos agricultores familiares, como indústrias e outras empresas que se instalam no meio rural, e que buscam mão-de-obra barata e próxima.

Entendemos que o assalariamento de algum membro da família a partir de uma ocupação fora da unidade familiar pode ser um fator que conduzirá a uma maior subordinação deste aos ditames da empresa que o emprega, reduzindo significativamente sua autonomia e de sua família, pois o tempo de trabalho na unidade familiar é reduzido, e parte da força de trabalho passa a ser direcionada ao lucro de um terceiro.

Quando a pluriatividade é decorrente do assalariamento de membros da família fora da unidade familiar, as conseqüências na unidade produtiva e na unidade doméstica são ainda maiores, pois as novidades (relações sociais, direitos trabalhistas, novas territorialidades) estão vinculadas à saída do indivíduo de sua propriedade. A perda de contato freqüente com sua família, pode levar a mudanças soculturais no indivíduo e até à sua migração para as cidades e o conseqüente abandono do rural e das práticas agropecuárias84.

Em contrapartida, quando a família rural opta por alguma atividade não agrícola na própria unidade de produção, diversificando as fontes de renda na UPVF, a pluriatividade parece mais vantajosa, pois o trabalho continua concentrado na unidade, os lucros são maiores, e tendem a ser aplicados na própria propriedade, gerando benefícios para a família e podendo contribuir para fortalecer sua autonomia. Não obstante, nesse debate sobre a viabilidade da pluriatividade como estratégia de manutenção e melhoria da qualidade de vida na agricultura familiar, é preciso analisar as experiências empíricas

84 Apesar de favorável à pluriatividade como estratégia de sobrevivência da agricultura familiar, Schneider

(2003) coloca que a situação de pluriatividade leva à alteração de aspectos intrafamiliares, afetando tanto a unidade doméstica quanto a unidade produtiva.

para verificar os elementos positivos e negativos para o agricultor no que tange a sua qualidade de vida e autonomia.

Entendemos que, para o estudo da agricultura familiar e da pluriatividade, faz-se necessário procurar apreender de forma conjunta os elementos de ordem externa (macroestruturais) - como os interesses dos mercados e do capital financeiro, políticas públicas, revalorização do rural pela população urbana – e os elementos internos (microestruturais), pautados nos anseios e necessidades das famílias85.

O crescimento mundial do fenômeno da pluriatividade fez com que o espaço rural deixasse de ser associado somente ao agrícola, de modo que as atividades não agrícolas levaram os agricultores a ter “novas” funções econômicas e sociais. Com o maior interesse pelo “mundo” rural, há uma complexificação de objetos técnicos e de ações no campo, que levam à necessidade de apreensão das múltiplas funções da agricultura, denominadas multifuncionalidade. No Box 1, procuramos apresentar alguns elementos do debate sobre multifuncionalidade.

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Nesse sentido, a proposta teórico-metodológica de Milton Santos, que utilizamos nessa pesquisa, permite considerar a influência no lugar, de objetos e ações com origem no global e em outras escalas espaciais.

Box 1 - Multifuncionalidade

O conceito de multifuncionalidade da agricultura também influenciou a disseminação do turismo no espaço rural como ideologia de desenvolvimento sustentável, ao considerar outras funções da agricultura (e dos agricultores) para além da dimensão agrícola, ou seja, da função de produzir alimentos. Da mesma forma, a incorporação generalizada da ideologia do desenvolvimento sustentável, a partir de 1992, levou a busca de “novas” atividades, que, ao menos na retórica, combinariam crescimento econômico, conservação ambiental e justiça social.

Contudo, consideramos que além da influência da idéia de desenvolvimento sustentável, a discussão da multifuncionalidade encontra-se vinculada ao crescimento das atividades não-agricolas no espaço rural, que por sua vez, estão ligadas às novas oportunidades de acumulação capitalista a partir do regime de acumulação flexível, que transforma bens materiais e simbólicos em mercadoria.

O espaço rural, que durante o fordismo restringia-se a cumprir funções produtivas agrícolas, incorpora novas atribuições e surge como locus de múltiplas atividades produtivas. Entre as novas funções do espaço rural, estaria o consumo de bens materiais e simbólicos (propriedades, festas, gastronomia) e serviços (ecoturismo, turismo rural, atividades ligadas à preservação ambiental). (MARSDEN apud SCHNEIDER, 2003). Desta forma, a noção de multifuncionalidade se pauta na perspectiva ideológica do desenvolvimento sustentável (devir), bem como nas constatações empíricas de que o espaço rural vem ampliando suas atividades e, portanto, se complexificando.

A Conferência Rio-92 estabeleceu como um dos objetivos, a promoção do desenvolvimento agrícola e rural sustentável (RÉMY, 2003), e fez com que os governos reconhecessem o aspecto multifuncional da agricultura (SOARES, 2002). A partir de então, intensifica-se o debate acadêmico em relação às múltiplas funções da agricultura, e à necessidade de reconhecimento legal destas.

Roux e Fournell (2003, p. 172) apontam as contribuições da multifuncionalidade: - produção e segurança alimentar;

- diversificação das atividades ligadas à atividade agrícola (agroturismo e transformação); - proteção do meio ambiente e preservação da paisagem;

- manutenção de um tecido economico social rural e produção de vínculo social.

Os autores acima demonstram que os aspectos característicos da multifuncionalidade não são novos, pois fazem parte de uma realidade histórica e social. Portanto, historicamente a agricultura tem múltiplas funções, como a segurança alimentar e a manutenção do tecido econômico e social rural.

Soares (2002) coloca que o debate sobre multifuncionalidade da agricultura ganhou notoriedade nas negociações da Organização Mundial do Comércio em 1999, porém não houve consenso entre os países membros, pois enquanto os países exportadores de comoditties, como Brasil e Argentina, buscavam a liberalização do comércio agrícola e remoção de barreiras comerciais; a Comunidade Européia lançou mão multifuncionalidade para argumentar sobre a manutenção dos subsídios agrícolas a seus agricultores. Portanto, Soares percebe a retórica da multifuncionalidade como uma estratégia protecionista da União Européia, visando garantir a continuidade dos subsídios agrícolas, frente às pressões por um comércio livre nos debates da OMC.

Mesmo estando concentrado na Europa, o debate sobre multifuncionalidade chega ao Brasil recentemente. Carneiro e Maluf (2003, p. 19) acreditam que

a noção de multifuncionalidade rompe com o enfoque setorial e amplia o campo das funções sociais atribuídas à agricultura que deixa de ser entendida apenas como produtora de bens agrícolas. Ela se torna responsável pela conservação dos recursos naturais (água, solos, biodiversidade e outros), do patrimônio natural (paisagens) e pela qualidade dos alimentos.

Carneiro e Maluf (2003) defendem a aplicação da noção de multifuncionalidade nas unidades familiares rurais, ou seja, na agricultura familiar. “A noção de multifuncionalidade favorece a passagem do agrícola para o familiar e rural” (p. 20), e, por englobar a geração de bens públicos, permite ampliar o foco de análise para além do conceito de pluriatividade, que se limita aos bens privados. Maluf (2003) defende o enfoque da multifuncionalidade como forma de valorizar o fomento à agricultura familiar, porém destaca a necessidade de “uma abordagem multifacetada e de instrumentos diferenciados em relação às tradicionais políticas de crédito à produção” (p. 139).

Fundamentada nas experiências européias, Carneiro (2003) assevera que na prática, a multifuncionalidade tem sido centrada na valorização econômica (qualidade dos produtos, diversificação das atividades nos estabelecimentos, criação de empregos), com medidas limitadas a nichos de mercados, reservados a produtores muito competitivos.

Portanto, sem políticas públicas diferenciadas, que valorizem as múltiplas funções da agricultura, e que permitam ao agricultor desenvolver e executar ações para além da dimensão econômico-produtiva fica difícil exaltar a multifuncionalidade no rural brasileiro. Todavia, considerando que algumas funções da agricultura são históricas, podemos afirmar que a retórica da multifuncionalidade carrega intencionalidades implícitas que precisam ser reveladas.

4.3. Pressupostos Teórico-Metodológicos para Apreender a