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Foto 16 Pesque-pague e parque aquático Sítio das Palmeiras

2. A contribuição de Milton Santos para a teoria social crítica através da

2.6. Território e Territorialidade

Partindo do princípio de que o espaço seria o objeto de estudo da Geografia, e, portanto, a categoria geográfica basilar, e entendendo que o conjunto de conceitos permite dar legitimidade ao debate teórico-metodológico, achamos pertinente explanar algumas considerações a respeito do conceito de território, pois este é um conceito clássico da Geografia, e está intimamente ligado ao espaço, e às dimensões econômica, política e cultural das sociedades. Com base na abordagem do território a partir de geógrafos clássicos como Ratzel (1990) e Raffestin (1993), bem como dos geógrafos brasileiros Souza (1995), Haesbaert (2004) e Saquet (2003 e 2005), discorremos sobre os conceitos de território e territorialidade. Abordamos também impressões de Santos sobre o território, através dos conceitos de configuração territorial e território usado.

Na busca da gênese do conceito de território, Souza (1995, p. 84) destaca que o território surge na Geografia Política, onde é entendido como um “espaço concreto em si (com seus atributos naturais e socialmente construídos), que é apropriado, ocupado por um grupo social. A ocupação do território é vista como algo gerador de raízes e identidade.”

Um ícone da Geografia Política foi o geógrafo alemão Friederich Ratzel39, por

meio de suas obras "Antropogeografia" (1882) e "Geografia Política" (1897). Por ter formação naturalista, Ratzel desenvolve sua noção de território a partir da idéia de hábitat, idéia usada na Biologia para a delimitação de áreas de domínio de determinada espécie ou grupo de animais. Na abordagem de Ratzel o termo território aparece, portanto, como sinônimo de solo e/ou de ambiente40. A grande contribuição de Ratzel foi,

contudo, vincular o território como imprescindível para alcançar objetivos políticos, teorizando a respeito de sua relevância na constituição do Estado-Nação e intrinsecamente justificando a manutenção e a conquista de poder, pois, para ocorrer o domínio do Estado, seria necessário existir um território.

[...] a sociedade que consideramos, seja grande ou pequena, desejará sempre manter sobretudo a posse do território sobre o qual e graças ao qual ela vive. Quando esta sociedade se organiza com esse objetivo ela se transforma em Estado. (RATZEL, 1990, p. 76).

Na Geografia contemporânea, Raffestin (1993) é um dos autores de destaque no debate sobre território e poder. Ao colocar que a Geografia Política clássica foi trabalhada simplesmente como uma “Geografia do Estado”, deixando de abstrair outras formas de

39 Apesar de ser considerado um precursor do determinismo geográfico, Ratzel, no final do século XIX, já

evidenciava questões fundamentais para a construção do conhecimento geográfico, sobretudo com sua visão indissociável entre homem e natureza. “A nossa ciência deve estudar a Terra ligada como está ao

homem e, portanto, não pode separar este estudo do da vida humana, tampouco do da vida vegetal e

animal” (RATZEL, 1990, p. 32).

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Para Ribas et al. (2002), Ratzel entende o território como recursos naturais, incluindo também a água e o clima. O território, desta forma, é tido como substrato (palco) para a efetivação da vida humana, sinônimo de solo/terra e outras condições naturais, bem como para a sobrevivência dos povos no planeta (espaço vital).

poder, Raffestin inclui novas variáveis em sua tentativa de sistematizar uma Geografia do

Poder, diferenciando o poder da seguinte forma: o Poder, manifestado através dos

aparelhos institucionais complexos que encerram o território, controlam a população e dominam os recursos, sendo o poder visível e identificável, controlado pelo Estado; e o

poder que está presente em cada relação e esconde-se em todos os lugares atrás do Poder do Estado, pois é invisível e, por conseguinte, o mais perigoso.

Pelo fato de debruçar-se sobre a problemática do poder, Raffestin (1993) utilizou o conceito de território de forma intensa em sua obra, entendendo-o como

[...] um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. [...] o território se apóia no espaço, mas não é espaço. É uma produção a partir do espaço, que se inscreve num campo de poder. (p. 144).

Apesar de tecer críticas sobre a abordagem do território em Ratzel e Raffestin, Souza (1995) fundamenta-se nas obras destes e de outros autores, entendendo que o território seria um “espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder.” (p. 78). Na visão de Souza (p. 81), o entendimento do território vinculado somente ao Estado nacional não é suficiente, haja vista que “os territórios são construídos e desconstruídos nas mais diversas escalas espaciais e temporais.” Saquet et al.41 (2003, p. 10) também

entendem que o território é produzido pelas relações de poder engendradas por um determinado grupo social, e se efetiva em diferentes escalas, não apenas naquela convencionalmente conhecida como o “território nacional” sob gestão do Estado-Nação.

Haesbaert (1995) não deixa de entender o território como “um espaço sobre o qual se exerce um domínio político, e como tal, um controle do acesso” (p. 168). Para o geógrafo (2004, p. 97), “o poder” e, por conseguinte, o território, “é sempre multidimensional e multiescalar, material e imaterial, de dominação e apropriação ao mesmo tempo.” Ao fazer uma ampla revisão em torno do conceito de território, Haesbaert (2004) propõe uma abordagem do território a partir de uma perspectiva integradora, que congrega a dimensão econômica (recursos naturais e construídos e seus usos), política (relações de poder) e cultural (identidades), que coexistem e se combinam na produção do espaço e do território. Nesse sentido, “o território carregaria sempre, de forma indissociável, uma dimensão simbólica ou cultural em sentido estrito, e uma dimensão material, de natureza predominantemente econômico-política” (p. 74).

Haesbaert (2004, p. 79) também aponta para a “necessidade de uma visão de território a partir da concepção de espaço como um híbrido – híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e cultura, e entre a materialidade e a 'idealidade', numa complexa interação espaço-tempo.” Saquet é outro pesquisador a destacar a interdependência entre espaço e território.

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Os artigos de Ribas et al. (2002) e de Saquet et al. (2003) foram produzidos pelo GETERR (Grupo de Estudos Territoriais) da Unioeste, campus Francisco Beltrão, do qual fazemos parte.

Território e espaço estão ligados, entrelaçados, pois o primeiro é fruto da dinâmica socioespacial. Há um processo de territorialização, paradoxalmente, com perdas e reconstruções incessantes, com formas e ações, decisões, desejos, etc., intimamente conectado à materialização espacial da sociedade e à dinâmica da natureza exterior ao homem. (SAQUET, 2005, p. 49).

Segundo Saquet (2003), como as relações são múltiplas, os territórios também o são, de modo que diversos territórios e territorialidades se sobrepõem em um lugar. Além disso, existem temporalidades heterogêneas, lentas e rápidas, coexistindo simultaneamente. Portanto, “não há uma homogeneidade no espaço nem no território, mas uma heterogeneidade de tempos e territórios em cada unidade espacial de análise seja no lugar, no país, etc" (p. 21).

Souza (1995) é outro autor a enfatizar a existência e a sobreposição de diversos territórios dentro de um mesmo lugar ou espaço físico. O geógrafo diferencia territórios

contínuos e descontínuos, pois, classicamente, os territórios foram caracterizados como

contínuos, marcados por áreas específicas e contíguas. Não há, contudo, como negar a existência de territórios descontínuos, também entendidos como territórios-rede42,

conectados sobretudo por fluxos de informações e ações. Assim, os territórios-rede dependem dos avanços tecnológicos na comunicação, pois se manifestam a partir do que Haesbaert (2004) chama de ciberespaço (virtual).

Para Souza (1995), há uma superposição de territórios e territorialidades, que se confundem no espaço. A territorialidade “é um certo tipo de interação entre homem e espaço, a qual é sempre uma interação entre seres humanos mediatizada pelo espaço” (p. 99). Por conseguinte, acreditamos que a territorialidade é subjetiva, de modo que cada indivíduo possui sua(s) territorialidade(s).

Saquet (2003, p. 26) também aponta a dimensão subjetiva da territorialidade, entendendo-a como “o desenrolar de todas as atividades diárias que se efetivam, seja no espaço do trabalho, do lazer, da família etc., resultado e condição do processo de produção de cada território, cada lugar.” Nesse sentido, a territorialidade está ligada ao cotidiano e ao lugar, sendo assim, influenciada por aspectos culturais, políticos, econômicos e ambientais dos indivíduos.

Raffestin (1993) argumenta que a

Territorialidade pode ser definida como um conjunto de relações que se originam num sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo (p. 160). [...] A territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais; ela é consubstancial a todas as relações e seria possível dizer que, de certa forma, é a "face vivida" e a "face agida" do poder. (p. 162).

Apesar de a territorialidade ser subjetiva, as firmas também possuem territorialidades, que são físicas, políticas, econômicas e até sociais. Assim como a

42 Tanto Souza (1995) quanto Haesbaert (1995) utilizam o conceito de território-rede ao se referirem a

territórios que não dependem exclusivamente de um espaço físico. Entendemos que a maior parte dos territórios-rede é comandada pelos agentes hegemônicos do capitalismo, sobretudo pelas firmas globais.

territorialidade humana, as territorialidades das firmas extrapolam o espaço físico, estendendo-se à área de atuação e à influência da firma, e às relações comerciais que esta estabelece.

Souza (1995) destaca a autonomia no debate sobre terrritório e territorialidades, e, com base na concepção de autonomia de Castoriadis, argumenta que

[...] uma sociedade autônoma é aquela que defender e gerir livremente seu território, catalizador de uma identidade cultural e ao mesmo tempo continente de recursos, recursos cuja acessibilidade se dá, potencialmente, de maneira igual para todos. Uma sociedade autônoma não é uma sociedade “sem poder”, o que aliás, seria impossível. No entanto, a plena autonomia é incompatível com a existência de um “Estado” enquanto instância de poder centralizadora e separada do restante da sociedade. (p. 106).

Enfocando a importância da autonomia na busca de alternativas para o desenvolvimento socioespacial, Souza usa o conceito de territorialidade autônoma.

Após apresentar críticas à idéia de desterritorialização, entendendo que “a desterritorialização está indissociavelmente ligada com a (re)territorialização, pois na prática proliferam as interseções e as ambigüidades” (1995, p. 198), Haesbaert (2004) propõe o conceito de multiterritorialidade, justificando que este novo conceito abrange os processos de des-re-territorialização.

Para Haesbaert (2004), a multiterritorialidade faz parte do processo de territorialização dos indivíduos e dos grupos, sendo bem antiga. Com a maior diversidade de territórios e territorialidades nos dias atuais, em virtude dos avanços técnicos, a multiterritorialidade se apresenta, contudo, como um conceito muito útil nos dias atuais. A multiterritorialidade

[...] é conseqüência direta da predominância, especialmente no âmbito do chamado capitalismo pós-fordista ou de acumulação flexível, de relações sociais construídas através de territórios-rede, sobrepostos e descontínuos, e não mais de territórios-zona. (p. 338).

Nesse sentido, a multiterritorialidade pode se dar através da mobilidade concreta ou virtual, e implica a “possibilidade de acessar ou conectar diversos territórios” (p. 343), ou seja, de experimentar vários territórios ao mesmo tempo. Apesar de entender que todos os indivíduos podem ter múltiplas territorialidades, decorrentes dos territórios em que vivemos/agimos, Haesbaert (2004) usa como exemplos de vetores da multiterritorialidade os indivíduos com grande mobilidade física e relacional, e as firmas com atuação global.

Em relação à abordagem de Milton Santos em torno do conceito de território, percebemos que, ao atribuir seu enfoque para o espaço, Santos não destaca o conceito de território, mas trabalha dois conceitos correlatos, sendo o de configuração territorial e território usado. Santos (1986) diferenciou espaço, configuração territorial e paisagem, ao perceber que, para apreender o espaço geográfico, seria importante decodificar seus

elementos componentes, como a paisagem e a configuração territorial. Assim, o espaço seria a totalidade real, o resultado da geografização da sociedade sobre a configuração territorial, sendo composto pela configuração territorial, pela paisagem e pela sociedade.

A configuração territorial é o território e mais um conjunto de objetos existentes sobre ele (naturais ou artificiais). Ela corresponde à forma, aos objetos fixados no espaço. Já a paisagem seria uma parte da configuração territorial visualizada pelo observador. (SANTOS, 1986).

Em 2001, Santos publica, juntamente com Silveira, uma obra onde propõe uma nova adjetivação ao território, o território usado. Acreditando que “é o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social”, Santos (2002, p. 15) trabalha com o conceito de território usado, apontando que cada país formaria um território usado, com seu Estado e suas normas, mas que esse território sofre forte influência das ações e das intencionalidades globais.

Para a compreensão do espaço geográfico, as técnicas indicariam como, onde, por quem, por que e para que o território é usado. Santos e Silveira (2001) sugerem pensar o território no seu papel ativo e não apenas como palco, pois o território – que se encontra regulado pelo mercado – permite ler as descontinuidades nas feições regionais. Para se entender o território usado, é preciso analisar a constituição deste território, ou seja, a constituição de determinado país. Por conseguinte, o processo de reconstrução da sociedade e do território poderia ser entendido pela formação socioespacial43.

Santos (2002) ainda afirma que a interdependência universal dos lugares é a nova realidade do território, desencadeando a transnacionalização do território. As firmas são, para Santos (1996), as maiores responsáveis pelo processo de transnacionalização do território, que é marcado pela perda de poder dos Estados-nação. O poder das firmas leva ao que o autor chama de corporatização do território.

Apesar de acharmos pertinente o conceito de território usado para a escala nacional, estaremos priorizando uma abordagem do conceito de território a partir das colocações de Souza (1995), Haesbaert (1995 e 2004) e Saquet (2003 e 2005). Estas colocações apontam para a existência de diversos territórios e territorialidades que se sobrepõem no espaço geográfico, e que são multidimensionais e multiescalares.

43 Milton Santos utiliza o conceito de formação socioespacial, fundamentado no conceito de formação

econômica e social, para referir-se ao processo de constituição de territórios nacionais. Nesse sentido, a formação socioespacial pressupõe uma análise geográfica da escala nacional, sendo a mediadora entre o mundo e o lugar. “A formação socioespacial e não o modo de produção constituem o instrumento adequado para entender a história e o presente de um país” (1996, p. 107).