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Estabilização da demanda e desconsideração da personalidade jurídica

Vige em nosso sistema a teoria da substanciação, o que torna o processo civil brasileiro altamente preclusivo. Isso faz com que poucas alterações sejam aceitas e somente em determinados momentos do procedimento, a teor do disposto nos arts. 264 e 294 do Código de Processo Civil. Surge então um aparente conflito a ser resolvido, que é a estabilização da demanda contra a desconsideração da personalidade jurídica. Estando a demanda já estabilizada e imune a alterações subjetivas e objetivas, em um primeiro momento não seria tecnicamente aceitável o que a praxe nos mostra possível: a desconsideração da personalidade jurídica no curso de uma demanda sem que o sócio

262. D

tivesse feito parte desde o início do processo. Isso porque o ingresso de alguém novo (sócio-controlador ou pessoa jurídica na desconsideração inversa) em algum dos pólos altera a situação subjetiva do processo, sem contar que há um novo pedido (de desconsideração) fundamentado em uma nova causa de pedir (fattispecie somada à sua ocorrência in casu).

Mas a regra da estabilização da demanda não é um landmark. O próprio art. 264 do Código de Processo Civil afirma que é defeso alterar algum dos elementos da demanda, salvo substituições permitidas em lei. MARCATO traz algumas exceções processuais a essa regra e deixa nítido que a estabilização não é absoluta.263 Contudo, não só processuais são essas exceçõee permitidas em lei. Como acertadamente CÁSSIO SCARPINELLA BUENO afirma, as situações de direito material também podem ser exceções a essa regra, mormente quando não há uma substituição das pessoas mas uma complementação do pólo do processo, como ocorre na hipótese do art. 50 do Código Civil.264 A conclusão a que se chega é que a desconsideração da personalidade jurídica também pode se enquadrar entre as exceções do art. 264 do Código de Processo Civil, o que faz com que seja relativizada a estabilização da demanda. Mesmo que em algum grau a entrada no sócio dentro do processo pendente afronte a essa estabilização, esse afrontamento está autorizado pela lei e é plenamente admissível.

Caso não se considere que o art. 50 do Código Civil não é uma das exceções permitidas pelo art. 264 do Código de Processo Civil, ainda assim é tecnicamente possível a convivência da desconsideração da personalidade jurídica com a estabilização da demanda. O art. 264 do Código afirma que a alteração subjetiva dos pólos processuais é livre até a citação mas nunca será feita depois do saneamento, ocasião em que a demanda estaria estabilizada por completo. Mas essa regra não é rígida, tanto que o próprio Código traz exceções a ela. Sabidamente, a regra natural é a de que o litisconsórcio seja formado logo na propositura da demanda, mas há situações em que a formação do

263. Código de processo civil interpretado, comentário ao art. 264 do Código de Processo Civil, p. 791. 264. No que tange ao art. 264 do Código de Processo Civil, diz textualmente C

ÁSSIO sobre as substituições permitidas em lei material: “não me parece despropositado que „as substituições permitidas em lei‟, a que se refere a parte final do art. 264 do Código de Processo Civil, possam também ser lidas, pelo menos casos como aquele que está, aqui, em estudo, como autorizações previstas em lei material e não só lei processual. Não, propriamente, para uma substituição propriamente dita, mas para uma

complementação do pólo passivo da relação processual, in Partes e terceiros no processo civil brasileiro, n. 3.4, p. 106.

litisconsórcio é ulterior. O autor pode, p.ex., alterar a demanda quando ocorrer a sucessão (CPC, arts. 43, 265, § e 1065). O réu também pode nas hipóteses de chamamento ao processo (CPC, arts. 77-80) e na reconvenção subjetivamente ampliada,265 ocasião em que a demanda inicial do autor não é alterada mas amplia-se o número de pessoas nos pólos do processo. Também o juiz pode modificar a demanda na situação de litisconsorte necessário, a teor do pr. do art. 47 do Código de Processo Civil. Essa alteração pelo juiz demonstra que a regra dos arts. 264 e 294 do Código de Processo Civil não é absoluta, pois o pr. do art. 47 faz com que o juiz ultrapasse o princípio da inércia e inclua novas pessoas. E, por fim, um terceiro pode instituir um litisconsórcio em processo pendente e com isso alterar subjetivamente a demanda, como ocorre na oposição (CPC, arts. 56-61), na intervenção litisconsorcial voluntária266 e também no caso de sucessão. Nota-se facilmente que há uma diversidade de situações nas quais a estabilização subjetiva da demanda é relativizada. Nada impede tecnicamente que o ingresso do sócio-controlador que sofreu a desconsideração da personalidade jurídica seja mais uma dessas situações em que a estabilização subjetiva é abrandada.

Ocorre que o tema da desconsideração não parece conflitar somente com a estabilização subjetiva da demanda. Também há de ser enfrentada a estabilização da causa petendi e do petitum, pois inegavelmente aquele que pretende atingir o patrimônio do sócio-controlador cria um novo pedido fundamentado em uma nova causa de pedir. A regra dos arts. 264 e 294 tem como mens principalmente (a) impedir que novos fatos e pedidos sejam inseridos sem que o contraditório seja integralmente respeitado e evitar (b) retrocessos procedimentais.267 Mesmo assim, o próprio Código traz algumas exceções a esse postulado. Tanto que ele permite que seja objeto de conhecimento pelo juiz fatos supervenientes não introduzidos na demanda inicial, a teor do art. 462 do Código de Processo Civil. Nas demandas possessórias também, tanto que o art. 920 do Código de Processo Civil permite alterações na causa de

265. Sobre ampliação subjetiva na reconvenção, cfr. L

UIS GUILHERME AIDAR BONDIOLI, Reconvenção no

processo civil, n. 11.4, pp. 108-114.

266. Nosso Código não disciplina essa modalidade de intervenção de terceiros, mas D

INAMARCO corretamente defende sua plena admissibilidade, mesmo que somente até o saneamento do processo, cfr. Instituições de direito processual civil, II, n. 594, p. 388.

267. D

INAMARCO, Instituições de direito processual civil, II, nn. 414-417, pp. 69-77. BEDAQUE também afirma que “embora não se trate de divisões estanques, o legislador não admite idas e vindas – isso para possibilitar o normal desenvolvimento do processo e evitar atos protelatórios”, in Efetividade

pedir e pedido. O art. 461, § 4º do Código possibilita ao juiz impor multa, independentemente de pedido, para o cumprimento de determinada ordem; assim também o art. 11 da lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985.268 Portanto, há situações em que a estabilização objetiva da demanda é relativizada pelo próprio Código.

Para a desconsideração da personalidade jurídica, também é possível essa relativização da rigidez dos critérios objetivos da demanda. Se houver o atendimento pleno ao contraditório antes da desconsideração (infra, n. 49), o primeiro óbice está superado. DINAMARCO expressamente concorda com a relativização da estabilização da demanda executiva nas hipóteses denominadas pelo Superior Tribunal de Justiça de redirecionamento269 da execução, desde que haja nova citação ou intimação.270

Em outras palavras, desde que haja respeito ao contraditório. Sem falar especificamente em processo executivo também assim entende BEDAQUE, para o qual se for “introduzida no

processo causa de pedir não deduzida na inicial e o contraditório abranger a nova realidade fática, não há por que desconsiderá-la”.271 Eis a chave para a superação da estabilização da demanda: o contraditório. Nesse mesmo sentido é a doutrina de CRUZ E TUCCI, ao dizer

que “no tocante ao tema do nosso estudo [a causa de pedir], concepção mais elástica dos postulados que regem a estabilização da demanda, fixada em seus elementos subjetivos e objetivos, passa a ser exigência da moderna doutrina. Ganha significado, neste contexto, o princípio do contraditório, que, em momento algum, a legitimar a atuação das partes, pode ser descurado pelo juiz”.272

Então se o contraditório for respeitado, é plenamente admissível que a regra da estabilização seja superada e conviva harmoniosamente com a desconsideração da personalidade jurídica na demanda original do autor.

A segunda razão de ser dos arts. 264 e 294 do Código de Processo Civil é a necessidade de manutenção da marcha do processo avante.

268

. Para mais situações, cfr. JUNIOR ALEXANDRE MOREIRA PINTO, A causa petendi e o contraditório, n. 2.3, pp. 69-76

269

. A expressão redirecionamento não traduz nenhuma técnica e por isso só deve ser usada por uma questão de conveniência com essa infeliz linguagem utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça. Concorda com essa crítica, MANTONVANNI COLARES CAVALCANTE, in “O chamado „redirecionamento‟ da execução fiscal ao sócio da pessoa jurídica executada”, Execução civil: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior, pp. 349-351.

270. Instituições de direito processual civil, IV, n. 1.598, p. 484.

271. Efetividade do processo e técnica processual, n. 20, p. 132. No mesmo sentido, J

UNIOR ALEXANDRE MOREIRA PINTO, A causa petendi e o contraditório, n. 3.5.3, pp. 131 ss.

272. J

A estabilização funcionaria como uma mola propulsora do processo, já que evitaria que a demanda retrocedesse em eventuais causas de pedir ou pedidos novos feitos no curso do procedimento. Essa justificativa é criticada por parte da doutrina, ao entender que, apesar daquela demanda ser julgada rapidamente, a controvérsia não seria solucionada.273 Porque eventual nova demanda poderia ser proposta com base na causa de pedir ou pedido não aceito na primeira e isso retardaria a solução final da situação conflitante entre as partes, de modo que essa nova demanda poderia ser ajuizada por conexão e então teria de ser julgada conjuntamente por necessitar de uma convicção única pelo juiz. Por isso, ao falar das técnicas de aceleração dos procedimentos, DINAMARCO afirma que é preciso

relativizar mitos e dogmas para libertar o processo de exageros preconceituosos. E textualmente diz que uma dessas técnicas é a legitimação da “alteração do petitum ou da

causa petendi, à vista da prova e mediante cuidados inerentes à efetividade do

contraditório, mesmo depois da citação do réu e da contestação oferecida”.274

Há ainda outros fatores que também contribuem para o entendimento aqui posto. Pois (a) não haverá prejuízo para a pessoa jurídica que sofre a desconsideração de sua personalidade.275 Ao contrário, (b) ela será beneficiada, porque se tentará evitar que a sociedade vá à falência na medida em que o exeqüente buscará a satisfação de seu crédito por outra pessoa. Pois como CALIXTO SALOMÃO afirma, o conceito de desconsideração da personalidade jurídica é diametralmente oposto ao da falência, pois a desconsideração existe justamente para se evitá-la.276 Isso torna evidente que (c) haverá benefício também para o exeqüente, que terá aumentadas suas chances de êxito no recebimento de seu crédito e com isso (d) a garantia constitucional de um processo célere estará garantida (CF, arts. 5º, inc. LXXVIII, e 37). Sem contar que

273. C

ERINO CANOVA, La domanda giudiziale e il suo contenuto, p. 136; GIANFRANCO RICCI, Individuazione

o sostanziazione nella riforma del processo civile, p. 1237; RICARDO DE BARROS LEONEL, Causa de

pedir e pedido: o direito superveniente, n. 2.1.7, p. 88.

274. Fundamentos do processo civil moderno, II, n. 477, p. 904. 275. São importantes os dizeres de C

ÁSSIO SCARPINELLA BUENO: “a bem da verdade, a formação ulterior do litisconsórcio eventual, em casos como estes, não traz qualquer prejuízo para o réu. Nem sequer uma eventual demora na citação do „novo‟ litisconsorte, providência que, no particular, só pode trazer prejuízos para o autor. E porque a introdução de um „novo‟ litisconsorte pode significar que o cumprimento ou a execução de uma eventual sentença condenatória será aparelhada contra ele, há, também por esse fundamento, uma razão a mais para afastar qualquer prejuízo para o réu”, in Partes e terceiros no processo civil brasileiro, n. 3.4, p. 105.

276. Diz o doutrinador: “o real motivo que se deve guiar a não vinculação da teoria da desconsideração à

falência da sociedade é teleológico. Desconsideração e falência são conceitos antagônicos. A desconsideração é, como se verá, um método para permitir exatamente a continuação da atividade social”, O novo direito societário, p. 216.

(e) a entrada do sócio ainda na fase de conhecimento contribuirá para uma melhor instrução probatória, pois ele trará elementos que autorizem ou não a desconsideração da personalidade jurídica.277

Em conclusão, o ingresso do sócio na demanda mesmo já estabilizada – seja na fase cognitiva ou executiva – é um meio que contribui para a satisfação do direito material e não cabe ao processo obstar essa eficiência, desde que respeitado o contraditório e normas inerentes ao due processo of law. Seja porque a desconsideração da personalidade jurídica é uma das hipóteses permitidas em lei à regra da estabilização da demanda, seja porque é perfeitamente possível a convivência harmônica da desconsideração com esse fenômeno da estabilização, o que é acompanhando pela posição jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça.278