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2 INTEGRAÇÃO REGIONAL: ESTADOS E TERRITÓRIOS

2.3 ESTADO SOBERANO: TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES

2.3.4 Estado liberal: liberdade e propriedade

Se para Hobbes, a segurança e a paz são os valores supremos da vida política, com o Estado tendo a primazia nessa relação; para John Locke (1632-1704), liberdade e propriedade são os valores supremos, apresentados em termos quase indissociáveis na medida em que Locke engloba além do patrimônio, a liberdade e a própria vida no conceito de propriedade do indivíduo, dando origem assim a uma das grandes vertentes do liberalismo moderno. Para começar, Locke rejeita a doutrina do direito divino dos reis e a existência de direito natural que estabeleça hierarquia natural entre os homens, seja pela paternidade, que só diferencia os indivíduos transitoriamente, na relação familiar, seja por qualquer outro título.

No estado de natureza todos os homens são portadores de direitos iguais. Em segundo lugar, não há porque estabelecer, segundo Locke, vínculo entre a propriedade e o direito de governar, pois há sim distinção entre domínio privado e poder político, isto é, público. Locke argumenta que Abel e Caim como proprietários não tinham por que interferir no patrimônio um do outro. Se esse direito natural existisse, um deles não teria de fato domínio privado (LOCKE, 2004). Ou seja, a condição de Caim e de Abel era de igualdade como detentores de direitos particulares.

Aqui reside aspecto de extrema importância da contribuição de Locke para o mundo moderno: há sim distinção entre dois tipos de associação, a família e a pólis, marcados pela separação entre os atributos e faculdades privados e o poder típico do estado, estabelecendo verdadeiro fosso entre o domínio privado e o domínio público. A proposição encontra profundo eco na fundamentação de Adam Smith e a sua “mão-invisível” ao conceber o funcionamento do sistema econômico enquanto organismo com leis próprias, onde as instituições existentes operam apenas no sentido de facilitar o seu funcionamento. Isto é, a grande função do Estado resume-se a assegurar o livre funcionamento do mercado, além de

assegurar a defesa do país contra ataques estrangeiros e cuidar da segurança doméstica, exercendo o poder de polícia para manter a ordem e a segurança do patrimônio das pessoas (bens e a vida).

Para Locke a ponte entre esses dois domínios é feita, em primeiro lugar, pelo surgimento de associação diferente da rede de intercâmbios privados que fazem parte do mundo natural. É um tipo de associação política que tem funções próprias e meios próprios. Em segundo lugar depende da seleção de um homem ou de homens para o exercício de tais funções, que, para Locke, só pode ser feita segundo critérios fixados especialmente para referido tipo de associação, sujeita a limites na atuação e uso do seu poder político, pois sem representação não há democracia. Quando seus princípios são aplicados à economia, o liberalismo alcança outro ponto de vista, devido principalmente a Adam Smith, que à semelhança dos fisiocratas que defendiam a liberdade total (da natureza), não dispensava a necessidade de um Estado forte para garantir as leis da natureza.

Vê-se assim a afirmação da prevalência do indivíduo sobre o Estado, considerando que a transferência dos direitos naturais para o ente coletivo é parcial, um dos traços marcantes da doutrina liberal. Essa concepção surgiu no contexto histórico das guerras religiosas do século XVII, em um período em que somente as pessoas de certas posses (os proprietários) tinham condições de enfrentar essa tarefa. John Locke generalizou essa experiência, apresentando-a na forma de reduzido número de princípios. Mas o direito de propriedade é alçado por John Locke à condição de direito irrenunciável e intransferível, expresso de forma contundente da seguinte maneira:

“[...] por poder político, entendo o direito de fazer leis com penalidade de morte e, por conseguinte, com toda penalidade menor, para o fim de regulamentar e conservar a propriedade” (LOCKE, 2004).

O contrato social de Locke apresenta-se, portanto, como um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. Desta forma ninguém perde sua liberdade, apenas deixa um líder guiá-lo sendo que a propriedade possui pontos intransferíveis como a vida e transferíveis como os bens. Pode-se dizer, em síntese, ainda que com certa simplificação: “[...] enquanto os indivíduos de Hobbes [...] renunciam a todos os direitos, exceto um, os indivíduos de Locke renunciam a um só direito, ou seja, conservam todos menos um” (BOBBIO; BOVERO, 1987, p. 74).

Para Locke (2004), a propriedade é um direito natural, pois nasce do esforço pessoal no estado de natureza antes da constituição de poder político, e por isso deve ter seu livre

exercício garantido pela lei. Através de Locke a inviolabilidade da propriedade - que compreende todos os outros direitos individuais naturais (liberdade, vida) e indica a existência duma esfera do indivíduo autônoma em relação ao poder público - torna-se um eixo da concepção liberal do Estado, a mais consciente, coerente e historicamente relevante teoria do primado do privado sobre o público. É elevada por Benjamin Constant (1985) a emblema da liberdade dos modernos contraposta à liberdade dos antigos, no sentido de que a esfera privada tende a se alargar em detrimento da esfera pública, “[...] senão ao ponto da extinção do Estado, ao menos até sua redução aos mínimos termos” (BOBBIO; BOVERO, 1987, p. 113).

A concepção lockeniana certamente relativiza o conceito de soberania. Se para Hobbes a soberania tem por detentor e titular o Estado (Leviatã), para Locke, a soberania é do povo:

“A primeira e fundamental lei positiva de todas as comunidades é o estabelecimento do poder legislativo”, o qual será “[...] não apenas o poder supremo da comunidade, mas o poder sagrado e inalterável nas mãos de quem a comunidade o tenha colocado” (LOCKE, 2004).

Mesmo quando o conquistador acessa e conquista outro território, para Locke a conquista não confere direito algum sobre as posses do conquistado. Abordagem oposta à visão de Hobbes, para quem os homens, no estado da natureza, eram inimigos uns dos outros e viviam em guerra permanente. E como toda guerra termina com a vitória dos mais fortes, o Estado surgiu como resultado dessa vitória, sendo uma organização de grupo dominante para manter o domínio sobre os vencidos. Locke ponderava que sua vida, sim, pode ser tomada, mas seus bens, segundo o princípio de que a natureza “visa” tanto quanto possível, à preservação de toda a humanidade, “devem pertencer aos filhos para impedir que pereçam”. Dessa forma, “apesar da conquista, bens continuam a pertencer aos filhos”. Locke, na defesa da propriedade, não reconhece a diferença entre o direito individual à propriedade e a criação de um novo território político, ato de poder da comunidade política, do Estado, na medida em que o poder político é derivado do consentimento dos indivíduos.

E este é o núcleo “duro” do pensamento liberal que preside a proposta de Adam Smith, exposta na obra “A Riqueza das Nações” (1776). Ele inicia sua análise com duras críticas contra as diversas regulamentações e privilégios mercantilistas patrocinados pelos Estados nacionais de sua época e contrapôs a este conjunto de intervenções o seu “sistema de liberdade natural”; ou seja, para Adam Smith o direito de propriedade privada constitui atributo inerente à condição humana, situando-se no campo do direito natural; sendo assim é permanente e inviolável. E essas ideias foram revolucionárias à época porque confrontavam

diretamente os privilégios, os subsídios, os mecanismos de proteção, os monopólios, enfim, se opunham ao sistema mercantilista e suas restrições ao livre movimento do capital e de mercadorias estrangeiras.

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), por sua vez, parte também do chamado “estado de natureza”, só que um estado de paz e liberdade, em que os homens vivem dispersos e de forma solitária. A inveja resultante da desigualdade surge quando os homens passam a viver coletivamente e se envolvem na disputa pela riqueza, a propriedade. Essas disputas e desavenças por causa principalmente da propriedade de bens tornam necessárias a celebração do contrato social. Mas, diversamente de Locke, a fonte do poder não é a vontade individual, para ROUSSEAU o que institui o Estado é a vontade coletiva, baseada no interesse comum. O indivíduo, isoladamente, pode ter vontade particular contrária ou diversa da vontade geral que tem como cidadão. Pelo contrato social cada indivíduo se submete à vontade geral, outorgando de forma livre e voluntária o poder constituinte. Disso resultaria a associação soberana, em que caberia às pessoas que se associam ditar as leis a que se submeterão (VILLANUEVA, 1991, p. 296-297). Para Rousseau, o soberano é o povo no estado ativo e o ato de soberania legítima é aquele no qual o soberano age conhecendo o corpo da nação, e sem distinguir nenhum daqueles que a compõem (Rousseau, Du contrat social, L. II, cap. 3).

Na mesma linha de Rousseau e Locke, Immanuel Kant (1724-1804) concebe o Estado como resultado do contrato social; traz a concepção de que o contrato consiste na “idéia do ato pelo qual o próprio povo se constitui em Estado” onde as “leis do soberano são as leis que nos demos a nós próprios”. Para Kant, a saída do estado de natureza e o ingresso no estado civil não se circunscrevem à motivação de caráter utilitário de Hobbes (segurança) ou de Locke (propriedade), mas representam dever moral: “Do direito privado no estado natural, decorre agora o postulado do direito público; tu deves graças à relação de coexistência que se estabelece inevitavelmente entre ti e outros homens, sair do estado de natureza para entrar num estado jurídico” (BOBBIO, BOVERO, 1987, p.122). E, no caso, estado jurídico corresponde subordinação às leis construídas pelos indivíduos.

Max Weber sustenta, porém, que não se trata de qualquer conjunto de leis, pois, diferentemente, por exemplo, do conjunto de leis do milenar mandarinato chinês, o único território em que o capitalismo moderno pode prosperar é o terreno do Estado racional, que se apoia na burocracia especializada e no direito racional. Correspondem esses predicados ao

Estado Moderno Ocidental31 que se diferenciou ao longo da história de outras formas estatais, como a patriarcal e a patrimonial. É sob a égide do Estado racional que se pauta no direito racional e na burocracia profissional que se assenta o fortalecimento do capitalismo moderno.