• Nenhum resultado encontrado

2 INTEGRAÇÃO REGIONAL: ESTADOS E TERRITÓRIOS

2.1 O CONTEXTO, AS CIRCUNSTÂNCIAS E OS PROBLEMAS

Para os fins desta pesquisa assimilou-se o entendimento de que a compreensão da formação do mercado mundial e das relações de poder da presente época carecem de adequada perspectiva histórica, pois “[...] sem o estudo da formação e expansão do mundo liberal no século XIX e da sua crise no período de instabilidade que marcou várias décadas do século XX”, não se alcança a compreensão do momento atual das relações internacionais (SARAIVA 2007, p.04). Implica, segundo Saraiva (2006, p. 59), que a contribuição da história em suas incursões nas relações internacionais do presente e do devir da convivência entre povos e nações está distante de ser preambular:

Ela é parte intrínseca à formação das estruturas do presente e matriz genética dos fenômenos internacionais atuais8. O que se tem por presente é, em larga medida, a resultante dos choques de condensação de processos que se avolumaram no passado ante as novas condições que alimentam o inédito. Isso explica, em parte, a presença de uma série de processos que, ainda inacabada, se faz ativa na nova ordem internacional do presente9. (SARAIVA, 2006, p. 59).

Por consequência assume-se o corolário de que os fenômenos sociais, econômicos e políticos, dentre os quais se incluem os fenômenos da integração e da cooperação, requerem a compreensão desses choques de condensação de processos desencadeados no passado, que se projetam no tempo e no espaço e influenciam o presente. A premissa geral do estudo parte da evidência bem concreta de que a mobilidade de pessoas naturais ou físicas10, de pessoas jurídicas11, de capitais financeiros e de bens e serviços em geral ocorre sobre espaços físicos, estabelecendo relações econômicas, políticas e sociais, além das relações homem-natureza.

8 Como lembraria Carr (1982), de forma mais atualizada, em seu clássico manual.

9 Essa foi uma das preocupações maiores dos autores britânicos que: – envoltos na discussão acerca da

pertinência da aplicação do conceito de sociedade internacional a diferentes temporalidades e contextos históricos, conforme exarado das reuniões e dos textos produzidos pelo British Committee on the Theory of

International Politics – insistem na redescoberta da História como um relevante instrumento teórico e

metodológico na formação de uma ontologia própria às relações internacionais.

10

Ser humano capaz de direitos e deveres na ordem civil. É usual a expressão pessoa física para designar a pessoa natural.

11 Aquela que, sendo incorpórea, é compreendida por uma entidade coletiva ou artificial, legalmente organizada,

com fins políticos, sociais, econômicos e outros, a que se destine, com existência autônoma, independente dos membros que a integram. É sujeita, ativa ou passivamente, a direitos e obrigações. As pessoas jurídicas classificam-se de acordo com a sua natureza, constituição e finalidades, em pessoas jurídicas de Direito Público Interno (p. ex. União, Estados, Distrito Federal e Municípios, no Brasil) e Externo (Organizações Internacionais como a ONU, MERCOSUL, OTCA, OEA, UE) e pessoas jurídicas de Direito Privado (sociedades civis, sociedades comerciais e fundações).

Trata-se das relações entre poder e espaço que consubstanciam o campo da geopolítica. Por outro lado não se revela de forma tão óbvia assim que os sujeitos dessas relações buscam acessar, se apropriar, mobilizar e organizar fatores de produção (recursos naturais, capital e trabalho), engendrar bens e serviços. Em tal processo, criam, modificam ou preservam valores simbólicos e materiais que, no plano das relações internacionais podem vir caracterizar um Regime Internacional.

Embora Adam Smith não tenha efetuado a análise de regimes internacionais em sua época, o economista fundador da moderna teoria econômica inaugurou a discussão quanto as possíveis vantagens e/ou desvantagens dos tratados de comércio para os países envolvidos, trazendo a lume o tratado comercial de Methuen entre Inglaterra e Portugal, celebrado em 1703. A análise do economista inglês sobre o regime aduaneiro restritivo é conclusiva:

Quando uma nação se obriga, por tratado, a permitir a entrada de certas mercadorias de um país estrangeiro, entrada que proíbe mercadorias provenientes de qualquer outro país, ou a isentar as mercadorias de um país de taxas às quais sujeita as de todos os outros países, necessariamente deve auferir grande vantagem desse tratado o país cujo comércio é assim favorecido – ou, pelo menos, os comerciantes e manufatores desse país (SMITH, p. 39, 1983).

Outros economistas clássicos como Ricardo analisaram essas relações comerciais do ponto de vista da integração de mercados em regime de livre concorrência, isto é, abstraindo a participação do Estado. Na visão dos liberais, os mecanismos de alocação de recursos por excelência, são os mecanismos de mercado, que privilegiam a liberdade, a meritocracia e a eficiência alocativa. Desse ponto de vista, a integração econômica vem a ser o próprio processo de expansão dos mercados, tanto do ponto de vista da integração de fluxos de capitais e de cadeias produtivas, quanto dos mercados de trabalho e das redes de consumo, operando segundo os mecanismos de livre mercado das leis de oferta e procura.

Por outro lado, Cavalcanti (1997, p. 18) nos traz a observação de que a primeira referência explícita a um processo de integração mais “ambicioso” incluindo o Estado como ator principal parece datar de 1840, quando Friedrich List em seu tratado Das nationale

system der politischen ökonomie, argumenta que o desenvolvimento econômico de uma nação

depende do território que ocupa -- posse de um terreno adequado. Mais importante ainda, Friedrich List aponta a associação de estados baseada em acordos bilaterais voluntários – especialmente uniões alfandegárias – como a melhor forma de corrigir eventuais inadequações territoriais (CAVALCANTI, 1997, p.18), defendendo mesmo a intervenção do Estado para proteger os interesses de seus comerciantes quando ameaçados pela invasão de produtos estrangeiros:

A country should not count the cost of defending the overseas trade of its merchants. And "the manufacturing and agricultural interest must be promoted and protected even by sacrifices of the majority of the individuals, if it can be proved that the nation would never acquire the necessary perfection … without such protective measures.12 (LIST, 1909, p.150).

Desde sua chegada à América do Sul, anterior ao Tratado de Vestfália, portugueses e espanhóis enfrentaram o desafio de conquistar e ocupar o imenso território natural e suas populações nativas, sob pena de ver sua conquista questionada e usurpada por outros Estados que, também, iniciavam a exploração dos oceanos. É o que Arrighi (1996, p. 33) denomina de “[...] visão territorialista do poder, cuja prioridade seria utilizar a exploração da riqueza econômica para estender a ocupação do território”. São as conquistas européias, em que a necessidade de expansão constante dos mercados para os seus produtos impulsiona o capital, segundo Karl Marx e Friedrich Engel, para toda a parte da terra. O capital precisa se fixar em toda a parte, estabelecer-se em toda a parte e criar conexões em toda a parte. A descoberta da América e a circunavegação da África na visão marxista compõem um novo capítulo e campo de ação do capitalismo:

Os mercados da Índia e da China, a colonização da América, o comércio colonial, o incremento dos meios de troca e, em geral, das mercadorias imprimiram um impulso, desconhecido até então, ao comércio, à indústria, à navegação e, por conseguinte, desenvolveram rapidamente o elemento revolucionário da sociedade feudal em decomposição (Karl Marx e Friedrich Engel, 2008).

A abordagem marxiana interpreta a descoberta da América como um período de preparação do mercado mundial criado pela grande indústria que acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação e dos meios de comunicação. Diríamos que, por causa da economia, também instalou o Estado na América do Sul, que depois, sob a bandeira do Estado-nação vem se revelando historicamente impermeável ao processo de integração regional real. Suas atenções mantiveram-se essencialmente voltadas para outros propósitos, espécie de continuação da mentalidade das lideranças dos tempos coloniais. Hoje, os líderes políticos apresentam retórica circunstancialmente “integracionista” quase sempre grandiloquente.

Os governos criam instituições supranacionais, mas as instituições do corpo estatal tendem a resistir e a criar dificuldades ao processo de integração real dos fluxos comerciais e financeiros. A legislação nacional, geralmente complexa e permeada de elementos discricionários, possibilita a imposição de barreiras burocráticas à mobilidade das mercadorias

12

Um país não deve contar o custo de defender o comércio exterior de seus comerciantes. E "os interesses de fabricação e agrícolas deves ser promovidos e protegidos até mesmo por sacrifícios da maioria dos indivíduos, se puder ser provado que a nação jamais iria adquirir a perfeição necessária ... sem tais medidas de proteção".

e das pessoas, fruto da cultura burocrática que se desenvolveu por séculos de tradição cartorial luso-espanhola.

Por isso, em razão do predomínio alcançado pelo Estado nacional, há autores como Sérgio Buarque de Holanda para quem a ideologia liberal no Brasil tem sido “uma inútil e onerosa afetação” (HOLANDA, 1979, p. 105); ou como Antonio Paim que chega ao extremo de defender a tese de que o Brasil não é capitalista, mas um país patrimonialista (PAIM, 2000, p. 11), considerações certamente extensivas à Venezuela de Hugo Chaves. Essa tendência estatista de natureza nacionalista ganhou o reforço da política protecionista da estratégia de industrialização mediante substituição de importações implementada na América do Sul. Recentemente o que tem se intensificado são os fluxos de atividades ilegais e, possivelmente, esse movimento pode estimular iniciativas mais efetivas de integração da mesma forma que, na Europa, as guerras acabaram por estimular iniciativas de integração.1

Mesmo depois de quase 200 anos de história como entes políticos soberanos, referidos Estados nacionais conservam seus territórios sob padrões de soberania territorial em que os vizinhos são geralmente tratados com indiferença ou desconfiança. Na América do Sul, exceto em circunstâncias particulares, tanto o Brasil quanto os países hispânicos, ciosos de sua soberania nacional, à maior parte do tempo têm se tratado como estranhos. Além disso, o Brasil é geralmente visto como o “gigante” ameaçador – um império a ser mantido à distância. Com efeito, ao longo da história, para os hispânicos, os brasileiros permanecem como ameaça imperialista, e vêem com desconfiança suas frentes de expansão, de “brasiguaios”, de empreiteiros, ou de balateiros, seringueiros, garimpeiros-madeireiros, que avançam sobre seus territórios na busca de riquezas.

Para os brasileiros, os hispânicos pouco ou nada têm a acrescentar ao desenvolvimento nacional, considerando que, como país-continente, os brasileiros se voltam para o próprio interior do país, para o litoral Atlântico e para os mercados internacionais. Historicamente, os interesses luso-brasileiros se concentraram na ocupação do Cone Sul, seja porque as ameaças e as disputas por territórios foram mais intensas na região em razão de estarem em jogo interesses geopolíticos portugueses, seja porque envolucrava diretamente os interesses do capital espanhol na economia da prata e do inglês na parte comercial.

1

Uma obra interessante é o projeto de paz perpétua para a Europa, publicado em 1713, no qual Abbé de Saint- Pierre argumentava que a formação de uma “União Europeia” com sede numa verdadeira “Cidade da Paz” seria muito mais vantajosa e, principalmente, menos dispendiosa do que o equilíbrio de poder mantido entre as principais casas reais da Europa (SAINT-PIERRE, 2003).

Bem distante dessa realidade, no território da calha do Amazonas e ao norte do grande rio, o comércio que se desenvolveu canalizou os excedentes gerados para o seu principal centro comercial desde o século XVII e na maior parte de sua história (Belém) e, daí, para o resto do mundo, principalmente Europa. Manaus emergiu no século XIX como pólo comercial de segunda ordem na época da borracha (1850-1920). Após o declínio da economia gomífera, a capital do Amazonas ressurgiu décadas depois com a Zona Franca de Manaus (ZFM) e o Pólo Industrial de Manaus (PIM), iniciativas essas claramente voltadas principalmente para a região Sul-Sudeste do País e, secundariamente, para os grandes mercados internacionais. Se Manaus e Belém prosperaram como centros sub-regionais, há os demais núcleos como Rondônia, Acre, Amapá e Roraima, desempenhando papéis secundários, porém essenciais à consolidação do processo de integração, seja por razões geoeconômicas, seja por causas geopolíticas.

Em relação à Venezuela o cenário não é diferente. Durante quase toda a história venezuelana, o país se voltou para o hemisfério norte, na direção dos Estados Unidos e da Europa, tendo a parte sul de seu território, a sub-região localizada ao sul do rio Orenoco, permanecido marginalizada pela administração central. Em tempos recentes, a exploração das ricas jazidas venezuelanas de petróleo não mudou referido quadro periférico. Ao contrário, parece que reforçou a concentração das relações econômicas com os Estados Unidos e outras nações do hemisfério norte. A sub-região do Sul da Venezuela, que corresponde à Amazônia guaianense, tem por polo sub-regional o Estado de Bolívar, desempenhando os demais núcleos sub-regionais, Amazonas e Delta Amacuro, papéis inexpressivos do ponto de vista econômico.

A discussão apropriada desse quadro exige base teórica capaz de proporcionar combinação complexa de dados e fatos econômicos e políticos que se entrelaçam. Conforme argumenta Strange (1994), na realidade não existem fatos exclusivamente econômicos, da mesma forma que não existem fatos políticos que não sejam condicionados por variáveis econômicas. Posto de outra maneira, comércio, fluxos de investimentos, crescimento econômico ou processos de integração são produtos de variada gama de possibilidades de combinação das forças de mercado e da ação de governantes e de autoridades que comandam instituições e agências internacionais que produzem regras ou que tomam iniciativas que, de muitas maneiras, influenciam as condições econômicas.

Nesse sentido, instâncias de autoridade, especialmente Estados Nacionais, costumam agir de maneira contrária às forças de mercado. O protecionismo representa, portanto, uma

das manifestações típicas do Estado que, por variadas razões, produz leis restringindo fluxos de comércio e de investimentos considerados indesejáveis ou contrários aos interesses estabelecidos. A indústria cresceu protegida pelo Estado, tanto na Venezuela, quanto no Brasil; o café e o cacau tiveram o amparo governamental. Por outro lado, o Estado também atua como ator importante do processo de integração regional, quando por meio de políticas fiscais e monetárias incentiva mercados onde as atividades econômicas são incipientes, a exemplo dos incentivos para o Pólo Industrial de Manaus e para o Pólo Mínero-Siderurgico de Bolívar; ou incentivando a criação de territórios urbanos como as cidades de Brasília (DF), Santana (AP), Boa Vista (RR) e ciudad Guayana (Bolívar). Foram caminhos em que o Estado se posiciona no centro da economia, exerce a tutela e a dirige por meios diretos e/ou indiretos.