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2 INTEGRAÇÃO REGIONAL: ESTADOS E TERRITÓRIOS

2.5 SOBERANIA TERRITORIAL, FEDERALISMO E FEDERAÇÃO

2.5.2 Território e territorialidade

O termo território vem do latim, territorium, que, por sua vez, deriva de terra e significa pedaço de terra apropriado. Na língua francesa, territorium deu origem às palavras

terroir34 e territoire, este último representando o “prolongamento do corpo do príncipe”, aquilo sobre o qual o príncipe reina, incluindo a terra e seus habitantes (ALBAGLI, 2004, p. 26). Nesse sentido, Raffestin (1993) destaca o caráter político do território, bem como a sua compreensão sobre o conceito de espaço geográfico, entendido como substrato ou palco pré- existente ao território:

É essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa). Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente [...] o ator “territorializa” o espaço. Lefevbre mostra muito bem como é o mecanismo para passar do espaço ao território: “A produção de um espaço, o território nacional, espaço físico, balizado, modificado, transformado pelas redes, circuitos e fluxos que aí se instalam: rodovias, canais, estadas de ferro, circuitos comerciais e bancários, auto-estradas e rotas aéreas, etc. (RAFFESTIN, 1993, p. 143).

Por consequência desse entendimento, território é conceituado como:

Um espaço onde se projetou um trabalho [...] e que, por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. [...] o território se apóia no espaço, mas não é espaço. É uma produção a partir do espaço, que se inscreve num campo de poder. O espaço é a “prisão original”, o território é a prisão que os homens constroem para si. (RAFFESTIN, 1993, p. 143).

Essa concepção privilegia a dimensão política e administrativa do espaço. Pressupõe, portanto, relações de poder entre os atores que intervém no espaço e, em assim sendo, suscita a discussão sobre quem se apropria do espaço e quais são os níveis ou graus dessas relações de poder. Assim sendo, todo território é resultado de relações de poder entre os agentes envolvidos, que acessam, se apropriam e transformam, em algum grau, os recursos naturais35

34

O termo terroir não é de fácil tradução. Não se reduz tão somente à noção de terreno ou solo, mas inclui os atributos que distinguem e agregam valor aos produtos de uma dada região ou localidade (LE BERRE, 1992).

35 As principais classes de recursos naturais são as terras agrícolas e florestais e os seus múltiplos produtos e

serviços; as zonas naturais preservadas com um fim estético, religioso, científico ou de lazer; as pescas em água doce ou salgada, os recursos naturais energéticos e não energéticos, as fontes de energia solar, eólica e

renováveis e não renováveis nele existentes. Trata-se do fenômeno da produção de bens e serviços destinados ao atendimento das necessidades econômicas, sociais, simbólicas e políticas, requeridas para se manter e desenvolver a vida.

No sentido mais amplo, os territórios são resultados de relações sócio-ambientais mediadas pelo aparato técnico e tecnológico à disposição da sociedade, condicionadas pelas instituições em vigor, que são sempre expressões de relações de poder. Para Oliveira (1999, p. 21) a territorialização é a intervenção da esfera política que associa – de forma prescritiva e insofismável – um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem determinados.

Haesbaert (2004) apresenta três concepções de território para além da dimensão física, que diz respeito às suas características geoecológicas e de recursos naturais (clima, solo, relevo, vegetação), bem como aquelas resultantes dos usos e práticas dos atores sociais:

- política ou jurídico-política: onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado através do qual se exerce um determinado poder, muitas vezes – mas não exclusivamente – relacionados ao poder do Estado;

- cultural ou simbólico-cultural: aquela que prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido. - econômica: enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital- trabalho, como produto da divisão “territorial” do trabalho, por exemplo. (HAESBAERT, 2004, p. 40).

O território não se reduz, portanto, à sua dimensão física, dado da natureza tal qual nos foi legada antes do “pecado original”, após o qual a humanidade foi condenada a explorá-la e a lavrá-la. O exame dessa categoria conceitual traz implícita a evidência de que há atividade econômica intimamente associada à exploração dos recursos naturais, como são as atividades primárias de produção, tais como agropecuária economia florestal, pesca e outras atividades que tem fator locacional fixo como a mineração e certas culturas agrícolas que são circunscritas a determinados territórios agrícolas por razões climáticas, por exemplo. Mas a maioria das atividades econômicas não tem fator locacional fixo, principalmente certas atividades industriais cujos produtos da terceira revolução industrial têm alto valor agregado de mercado, intensivos em capital intelectual ou tecnológico e processo produtivo flexível e as atividades financeiras, que são eminentemente ubíquas.

Para Chesnais (2003, p. 46), estas lideram a dinâmica do processo de acumulação capitalista, na qual predomina o regime de regulação de dominância financeira atingindo, principal característica da era da mundialização do capital, “uma etapa particular do estágio

geotérmica, os recursos de água e a capacidade de assimilação de desperdícios pelo conjunto das partes do meio ambiente (HOWE, 1979).

do imperialismo”. Ainda segundo Chesnais (2003), vive-se a época caracterizada pela crescente importância do capital financeiro sobre o produtivo, cuja lógica chega a subordinar até os diversos Estados nacionais, obrigados a abrir mão das barreiras de proteção às suas economias e a permitir a livre movimentação de capitais financeiros. Esses exemplos vêm a título de ilustração dos conceitos de territorialização, territorialidade e desterritorialização, onde o corolário desta, no extremo, seria o fim do Estado-nação enquanto ente territorial por excelência.

O processo de acesso, ocupação, apropriação, destinação e uso do espaço é a própria territorialização; diz respeito à formação sócio-espacial, ao arranjo espacial dos objetos e equipamentos necessários à organização das relações entre os indivíduos e destes com as instituições presentes no lugar, reunindo “[...] numa mesma lógica interna todos os seus elementos: homens, empresas, instituições sociais e jurídicas e formas geográficas” (SANTOS, 1999, p. 272). A territorialidade diz respeito, portanto, às relações entre o indivíduo ou grupo social e seu meio de referência, manifestando-se nas várias escalas geográficas: uma localidade, uma região ou um país, expressando um sentimento de pertencimento e um modo de agir no âmbito de um dado espaço geográfico (ALBAGLI, 2004, p. 28).

Santos reforça o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de pertencer àquilo que nos pertence,

[...] esse sentimento de exclusividade e limite ultrapassa a raça humana e prescinde da existência de Estado. Assim, essa ideia de territorialidade se estende aos próprios animais, como sinônimo de área de vivência e de reprodução. Mas territorialidade humana pressupõe também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o que, entre os seres vivos é privilégio do homem. (SANTOS, 2001, p. 19).

O papel da territorialidade se traduz na formação de processos identitários locais, considerando sua dinamicidade, pois os elementos que a constituem são susceptíveis de constantes variações no tempo. Esta característica confere à territorialidade a possibilidade de vivências por intermédio de um conjunto de relações emergentes de um sistema tridimensional – sociedade, espaço, tempo (RAFFESTIN, 1993, p. 160). Para Raffestin, “[...] a análise da territorialidade só é possível pela apreensão das relações reais recolocadas em seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal” (Ibid., p. 162).

E territorialidade tem a ver tanto com a etnicidade – por exemplo, na Amazônia, em Roraima, especificamente, há as etnias indígenas Macuxi, Ingaricó e Yanomami, e seus territórios tradicionais, que se diferenciam nas línguas e costumes tribais --, quanto com a nacionalidade -- brasileiros, venezuelanos e guianenses mantém suas diferenças, a partir de

suas identidades nacionais. Cirino e Frank (2010, p. 13-14) chamam a atenção para o enfoque de que “somente os Estados (neo-) coloniais se caracterizam pela sobreposição no seu interior de populações culturalmente diversificadas; concretamente, uma população “nacional” hegemônica, no geral, mas não necessariamente majoritária, da qual o próprio Estado constitui, em tese, o veículo de realização da sua “vontade política coletiva”, e outra(s) não estatal(ais), isto é, com “organização(ões) sócio-cultural(ais) própria(s), distinta(s) da organização sócio-cultural “estatal”.

A questão certamente é complexa e importante do ponto de vista político. Um dos seus desdobramentos, a homologação da terra indígena Raposa/Serra do Sol, chegou ao Supremo Tribunal Federal para decisão, que ocorreu, de modo a estabelecer a interpretação conclusiva do Estado nacional brasileiro sobre os direitos indígenas em relação ao usufruto das terras que ocupam. Isto não significa que o assunto esteja integralmente equacionado, tanto do ponto de vista das comunidades indígenas, quanto das comunidades não indígenas. É que sob a perspectiva do processo de construção da territorialidade indígena, o direito de propriedade da terra permanece com o Estado Federal. Na Venezuela também a Constituição Federal reconhece a territorialidade indígena como direito inalienável de uso, com o direito de propriedade da terra sendo também do Estado Federal. Mas já existem movimentos indígenas reivindicando a titularidade da terra em nome de cada etnia.

As territorialidades são diversas. A maioria se apresenta marcada pela idéia do progresso como desejo de transformação do mundo arcaico, pela percepção de que o acesso às conquistas econômicas da sociedade moderna é desejável e que a comunidade pode ganhar com as mudanças. A comunidade ingaricó da Serra do Sol, liderada pelo tuxaua Rosiel, na fronteira setentrional com a Venezuela, lutou e conseguiu, por exemplo, a instalação de um telefone comunitário e, de lá, tem acesso ao mundo todo. É o local conectado ao global. O sentimento de pertencimento àquele lugar continua vigoroso, forjado no parentesco, nas caçadas e na pesca, nas festas, na religiosidade e nas tradições. Se perguntado quanto a sua nacionalidade, o tuxaua Rosiel dirá que é ingaricó, mas também que é brasileiro. Esse sentimento de pertencimento também é do caboclo amazônida, do ribeirinho, de pertencer a um determinado local: sou “de Afuá” ou do “Amajari”.

Em outro contexto, pondera Darcy Ribeiro ao se referir ao caldeirão cultural brasileiro, mistura de culturas negras, europeias e indígenas, dizendo que essas tensões no Brasil são eventuais, pois a nacionalidade brasileira já se encontra plasmada no conjunto:

O conjunto plasmado com tantas contribuições é essencialmente uno enquanto etnia nacional, não deixando lugar a que tensões eventuais se organizem em torno de

unidades regionais, raciais ou culturais opostas. Uma mesma cultura a todos engloba e uma vigorosa autodefinição nacional, cada vez mais brasileira, a todos anima. (RIBEIRO, 2007, p. 207).

Não que Darcy Ribeiro desconsiderasse as desigualdades sociais, ao arguir com a ideia de unidade da etnia nacional, como se as diferenças entre as camadas abonadas e os estratos de brasileiros situados às margens dos benefícios da modernidade tivessem desaparecido. Ele as combatia firmemente e prescrevia como cura para esses males sociais a “integração de todo o povo num sistema produtivo moderno e, por essa via, nas diversas esferas da vida social e cultural do país”. E, dentro dessa unidade nacional, destacava a diversidade da territorialidade cultural brasileira rústica: crioula, caipira, sertaneja, cabocla, sulino-gaúcha e suas vertentes do pastoreio, gringo-caipira e dos matutos além de suas faces citadinas (RIBEIRO, 2007, p. 209).

O território, nesse sentido, passa a ser estruturado a partir da nova organização, articulado globalmente, ensejando a formação de novas territorialidades ou de novas formas de se relacionar com o território natural, com os demais atores dentro do território e na capacidade de se articular com atores de outros territórios. O território passa a ser concebido como territórios-rede marcados pela descontinuidade e pela fragmentação, possibilitando a constante passagem de um território para outro, onde o local se articula com o nacional, o regional e o internacional, sendo o caso do Corredor Amazonas-Roraima-Bolívar/Orenoco. Há ainda a destinação e uso de territórios estatais referentes às unidades federais, estaduais e municipais de conservação ambiental (UCs) de proteção integral ou não, e territórios indígenas que tem regras próprias.

Outra dimensão do uso do território reside no fenômeno que Santos (1999) denominou “guerra dos lugares” utilizando a chamada guerra fiscal, que consiste na oferta pelo Estado de benefícios fiscais e financeiros para a implantação de novos empreendimentos empresariais, vendendo inclusive territórios como mercadorias às grandes empresas. São os benefícios fiscais e financeiros concedidos às empresas e empreendimentos que se instalarem na Amazônia Legal, ou na Zona Franca de Manaus (ZFM) ou nas Áreas de Livre Comércio (ALCs) e nas “Free Zone”, dependendo para tanto da aprovação prévia das agências federais de desenvolvimento (SUDAM e SUFRAMA). Esse mesmo princípio se aplica à constituição de determinada região econômica, formada pela interação de dois ou mais territórios nacionais; neste caso os Estados nacionais estabelecem regimes fiscais, financeiros e aduaneiros diferenciados, destinados à promoção da integração das atividades produtivas e/ou

do comércio de bens dos territórios envolvidos, que vão configurar Área de Livre Comércio (ALC), União Aduaneira (UA), Mercado Comum (MC) e até União Monetária (UM).

Por essas razões, Haesbaert reforça a tese de que efetivamente se observa no mundo contemporâneo o fortalecimento do território, e não o seu desaparecimento:

[...] os municípios para oferecer as condições mais vantajosas em termos de subsídios, infra-estrutura, mão-de-obra e imagem, mostram que o espaço – e o território – em vez de diminuir sua importância, muitas vezes amplia seu papel estratégico, justamente por concentrar ainda mais, em pontos restritos, as vantagens buscadas pelas grandes empresas e pela intensificação da diferenciação de vantagens oferecidas em cada sítio. (HAESBAERT, 2004, p. 187).

Desse ponto de vista, a globalização, ao contrário de resultar na eliminação do território como consequência da fragmentação e fragilização do trabalho, condicionou a produção de novo complexo geopolítico de território, chamado por Haesbaert (2004) de multiterritorialidade; onde as territorialidades, regidas pelo princípio da exclusividade, que predominaram no mundo moderno estariam cedendo lugar ao mundo das multiterritorialidades, que respondem diferentemente aos interesses de cada momento e lugar, de uma determinada sociedade, e que conceitualmente vem ser:

“[...] a forma dominante, contemporânea ou ‘pós-moderna’ da reterritorialização – conseqüência do capitalismo pós-fordista da acumulação flexível, das relações sociais construídas através dos territórios-rede – sobrepostos e descontínuos” (HAESBAERT, 2004, p. 338).

No caso, a condicionante é dada pela soberania territorial como substrato estruturante da organização do espaço nacional que se manifesta sob a forma de políticas públicas e dos interesses nacionais nas suas interações com os interesses internacionais que se projetam no território nacional. Dessas interações nascem territórios e territorialidades como a Zona Franca de Manaus (ZFM); a exploração de manganês na Serra do Navio (Amapá); a localização pela Union Carbide dos depósitos do Sereno (Pará, 1966); e da United States Steel, descobrindo os depósitos de Buritirama (Marabá), assim como também as fabulosas jazidas de ferro de Carajás (1967) ou as demarcações dos territórios indígenas Yanomami e Macuxi e Wapichana (Raposa e Serra do Sol).