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Mostraremos também como é que língua e cultura são objecto de uso político, muitas vezes através de violência simbólica e real, quer para a dominção linguística (constituição de estados-nação e ditaduras) quer para responder à dominação (movimentos linguísticos minoritários, quer os vernaculares do século XIX, quer os actuais) – através de um processo recorrente que chamamos de construção da cultura através da língua. Esta construção cultural reclama, por parte dos seus “criadores”, uma legitimidade que adviria de uma institucionalização muitas vezes não mais que de “tradições inventadas”. Por isso recorremos em parte ao conceito e investigações de Hobsbawm e outros que partem da mesma perspectiva. As tradições inventadas pretendem apresentar-se como antigas de modo a serem aceites pelo seu carácter alegadamente primordial e, assim, autêntico. A legitimidade cultural reclamada pelos românticos não é mais nem menos fidedigna que a das ditaduras nacionalistas ou a das implantações republicanas. Um dos nossos objectivos é elucidar a construção destes processos em torno das línguas.

1.2.1 Os Estados-nação

A transformação das sociedades agrárias em sociedades industriais implica uma radical diferença no papel da cultura erudita na sociedade. A sociedade agrária é fundamentalmente iletrada, pelo que o domínio da língua escrita e da cultura que aquela veicula se circunscreve a um pequeno grupo de estatuto social elevado, situação potenciada pelo facto de a língua utilizada não ser apenas escrita, mas a maior parte das vezes, uma língua morta ou diferente da usada pelas restantes camadas sociais. Existe deste modo uma tensão entre a cultura erudita, transmitida pela educação formal, e a cultura popular, transmitida apenas através das práticas quotidianas, e habitualmente diferenciada segundo espaços geográficos, sendo a língua ou o dialecto o elemento mais ostensivamente diferenciador (cf. Gellner, 1996:102)43.

A sociedade industrial, orientada para o crescimento económico, e caracterizada por profundas transformações na esfera do trabalho, em escala e em especialização, necessita de formas de comunicação rápidas no tempo e no espaço, pelo que se exige uma partilha alargada de códigos de linguagem. Como diz Gellner (1996:107):

broad mass [must] share the same rules for formulating and decoding messages (…) [so] they must share the same culture, and it will be a high culture, for this standardized skill can only be acquired in formal schooling. Conclusion: the entire society must be pervaded by one standardized high culture, if it is to work at all. Society can no longer tolerate a wild proliferation of internal subcultures, all of them context-bound

43 O autor afirma: “In agrarian society, culture divides rather than unifies (…) The overall conclusion must be that in such societies, shared culture is seldom a plausible basis for the formation of political units”, advertindo que a obra de A. Smith (1986, The Ethnic Origin of Nations) defende uma visão contrária, que já foi referida no ponto anterior deste Capítulo (Gellner, 1996:104, nota 3 incluída).

36 and severely inhibited in their mutual inter-communication. Access to the appropriate high culture, and acceptability within it, is a person’s most important and valued possession: it institutes a pre-condition of access not merely to employment, but to legal and moral citizenship, to all kinds of social participation.

O crescimento industrial está na base da explicação gellneriana da emergência do nacionalismo, e é alvo de muitas críticas (cf. a obra de 1983, Nations and Nationalism). Apesar da relação entre o industrialismo e a criação de uma cultura standardizada ser teoricamente aceitável, a atribuição de E. Gellner a elementos funcionais da industrialização para o crescimento do nacionalismo, é alvo da crítica de M. Hroch (1996:85), pois muitos dos movimentos nacionais emergiram na Europa antes do advento da moderna indústria. A mesma crítica lhe dirige Breuilly (1996: 162), acresentando que também em várias partes do mundo, ainda sem uma transformação no sentido do industrialismo, se verificou a existência de uma partilha alargada de sentimentos nacionais; todavia, Breuilly não descura a importância do processo de modernização, que apresenta em termos weberianos:

However I would largely agree with the argument that there is a close, indeed necessary, connection between the formation of industrial societies and of “standard” national cultures. This is as much to do with market relations and the increasing downward penetration of state institutions such as courts, armies based on conscription and welfare bureaucracies as it is to do with the undeniable advance of mass elementary schooling. The idea that most social transactions in industrial societies take place within “cultural zones” which are increasingly defined by the national idea is a very powerful one (1996:161-2).

Breuilly prefere vincar a “divisão genérica do trabalho” para além da mera divisão económica, elencando as grandes categorias da actividade humana, i.e., a coerção, a cognição e a produção – mais comummente designadas por poder, cultura e economia – que se redefinem com a modernidade, passando a concentrar-se em instituições especializadas (cf. Breuilly,1996:163 e 170).

Na esteira de Gellner, Pierre Bourdieu (1982) reflecte sobre a relação dialéctica entre o sistema escolar e o mercado de trabalho, ou seja, a relação entre (1) a unificação do mercado escolar/educativo – e linguístico –, ligado à introdução de qualificações escolares válidas num âmbito nacional independentemente (pelo menos oficialmente) de particularidades sociais ou regionais, e (2) a unificação do mercado de trabalho, que entre outros elementos, inclui o desenvolvimento da administração estatal e o seu corpo de funcionários (cf. Bourdieu, 1982:33). Assim: “C’est san doute la relation dialéctique entre École et le marché du travail (…) qui joue le rôle le plus déterminant dans la dévaluation des dialectes et l’instauration de la nouvelle hiérarchie des usages linguistiques” (Bourdieu, 1982:33-4).

O Estado centralizado é a única instância com poder e competência para a implantação de um sistema de formação dos cidadãos que garanta a homogeneização cultural implicada: um Estado, uma cultura generalizada e homogénea (Gellner, 1993:207; ver também Hobsbawm, 1998:88), e uma educação universal. Esta cultura centralizada estabelece-se contra a cultura dos camponeses, no

37 sentido em que estes têm que ser transformados em cidadãos (Gellner, 1996:128). Assim vemos como A. Smith (1996:115-6) se refere ao caso inglês, em que os elementos cívicos da nacionalidade só se concretizaram com os efeitos da revolução industrial, e também ao caso francês: “Many regions retained their local character, even after the French Revolution. It required the application of Jacobin nationalism to mass education and conscription under the Third Republic to turn, in Eugen Weber’s well-known phrase, ‘peasants into Frenchmen’”44. Estes dois exemplos de processos de centralização cultural decorrem em estados que resultaram de dinastias fortes, como similarmente ocorreu nos países da península Ibérica (cf. Gellner, 1996:128).

A diversidade linguística - patente nas diferenças étnicas e na abundânca de dialectos - constituiu um problema maior em muitos dos Estados-Nação nascentes; veja-se que a unificação italiana em 1861 teve de lidar com uma população marcada por uma imensa diversidade linguística, da qual apenas 2,5% nessa altura faria uso quotodiano do Italiano, e em França por volta de 1780 apenas 50% sabiam a língua francesa (Hobsbawm, 1998:58)45. Mas em França a imposição da língua legítima contra os idiomas e patois dos outros grupos sociais foi não apenas um meio de comunicação operado através da política de unificação linguística no território, a partir de Paris (vd. Hobsbawm, 1998:98 e Bourdieu, 1982:31); foi um “artifício revolucionário para fazer chegar a todos as verdades da liberdade, da ciência e do progresso” (Hobsbawm, idem). Bourdieu analisa esta política linguística também em termos de poder simbólico:

La théorie condillacienne qui fait de la langue une méthode permet d’identifier la langue révolutionnaire à la pensée revolutionnaire: réformer la langue, la purger des usages liés à l’ancienne société et l’imposer ainsi purifiée, c’est imposer une pensée elle-même épurée et purifiée (…) Le conflit entre le français de l’intelligentsia révolutionnaire et les idiomes ou les patois est un conflit pour le pouvoir symbolique qui a pour enjeu la formation et la ré-formation des structures mentales. Bref, il ne s’agit pas seulement de communiquer mais de faire reconnaître un nouveau discours d’autorité (Bourdieu, 1982:31).

A “construção” de cidadãos implica, para além da imposição de uma língua comum, uma relação com o Estado que passa por vínculos administativos e de governo de carácter universal com aqueles que crescentemente assumiam o papel de eleitores, contribuintes e potenciais recrutas militares. A vinculação administrativa é visível nos registos crescentes dos cidadãos, que são concretizados no século XIX mediante a adjuvação das comunicações e transportes: a realização de censos nacionais periódicos – em complemento com os registos civis de nascimentos, casamentos e óbitos e também os registos da frequência escolar crescentemente obrigatória e, respeitante aos cidadãos de género

44 Eugen Weber, 1979, Peasants into Frenchmen: The Modernization of Rural France, 1870-1914.

45 Hobsbawm socorre-se de Tullio de Mauro, 1963, Storia Linguistica dell’Italia Unita e M. de Certeau, e para o caso francês de D. Julia e J. Revel, 1975, Une Politique de la Langue: La Révolution Française et les Patois

38 masculino, o recrutamento militar - tornou-se um elemento comum dos mecanismos de documentação exigidos por todos os Estados “avançados” ou modernos (cf. Hobsbawm, 1998:78 e 91). Um indicador relevante do problema linguístico dos Estados no século XIX encontra-se nos debates dos estatistas governamentais, que empreendiam um trabalho de normalização e coordenação dos censos nacionais. No Primeiro Congresso Internacional Estatístico - decorrido em 1853 em Bruxelas - colocou-se a questão da pertinência de incluir nos censos uma pergunta sobre a “língua falada” e qual a sua relação, se tinha, com a nação e a nacionalidade. Não é estranho, como sublinha Hobsbawm (1998:91) que a questão tenha sido colocada pelo belga Lambert Quetelet, fundador da estatística social e proveniente de um Estado marcado por tensões políticas entre franceses e flamengos. Assim, se o Congresso Internacional de 1860 decidiu que a pergunta deveria ser opcional segundo a decisão de cada Estado, o Congresso de 1873 de Vienarecomendou doravante a sua inclusão em todos os censos (cf. idem:91-2). O que os técnicos franceses, belgas, magiares, alemães e austríacos discutiam era, afinal, os critérios que deveriam definir a nacionalidade, sem que tivessem conseguido um consenso:

Cada censo transformar-se-ia num campo de batalha entre as nacionalidades, tendo as tentativas cada vez mais elaboradas das autoridades para satisfazerem as partes em litígio sido mal sucedidas (…). Na verdade, ao fazerem uma pergunta sobre a língua, os censos obrigaram todas as pessoas, pela primeira vez, a escolher não só uma nacionalidade, mas uma nacionalidade linguística. As exigências técnicas do moderno Estado administrativo ajudaram, uma vez mais, a alimentar a emergência do nacionalismo (Hobsbawm, 1998:94).

A língua nacional standardizada é obviamente o meio pelo qual a cultura nacional será veiculada, pois é a eleita parafinsoficiais e para o ensino público. Aliás, como lembra Hobsbawm (cf.1998:14), e como vimos com Anderson, as línguas nacionais-padrão, faladas e escritas, não podem existir antes da imprensa nem, claro, antes da instrução generalizada, ou seja, o ensino de massas. Veja-se também Bourdieu:

La langue officielle a partie lieé avec l’État. Et cela tant dans sa genèse que dans ses usages sociaux. C’est dans le processus de constitution de l’État que se créent les conditions de la constitution d’un marché linguistique unifié et dominé par la langue officielle: obligatoire dans les occasions officielles et dans les espaces officielles (École, administrations publiques, instituitions politiques, etc.) cette langue d’État devient la norme théorique à laquelle toutes les pratiques linguistiques sont objectivement mesurées (1982:27)

Assim torna-se claro o papel do Estado na intervenção sobre a língua, não apenas elegendo a língua oficial mas agindo sobre ela: “En fait, [s]’il faut se garder d’oublier la contribution que l’intention politique d’unification (visible aussi en d’autres domaines, comme celui du droit) apporte à la fabrication de la langue que les linguistes acceptent comme une donné naturelle” (1982:34).

39 Do mesmo modo Hobsbawm afirma que as línguas nacionais são quase sempre construções semiartificiais, ou como o Hebraico moderno, completamente inventadas, como já referido na primeira parte deste Capítulo (cf. 1998:53).

Bourdieu está em sintonia com Hobsbawm, reflectindo também sobre o processo empreendido na legitimação da língua oficial, através de meios institucionais de normalização linguística:

la langue légitime est une langue semi-artificielle qui doit être soutenue par un travail permanent de correction qui incombe à la fois à des institutions spécialement aménagées à cette fin et aux locuteurs singuliers. Par l’intermédiaire de ses grammairiens, qui fixent et codifient l’usage légitime, et de ses maîtres qui l’imposent et l’inculquent par d’innombrables actions de correction, le système scolaire tend, en cette matière comme ailleurs, à produire le besoin de ses propres services et de ses propres produits, travail et instruments de correction (Bourdieu, 1982:51).

Para além dos autores com autoridade para a escrita, as referidas instituições incumbidas da legitimação linguística fixam e codificam, ou seja, normalizam a língua: através dos académicos, gramáticos e professores que, sendo os depositários, produtores e reprodutores do patrimómio linguístico (os manuais, gramáticas, dicionários e produtos literários), actuam como os guardiões dos instrumentos de produção dos discursos escritos dignos de serem publicados, i.e., oficializados (cf. Bourdieu, 1982:27 e 46-8). Toda esta actividade de especialistas compreende o que Einar Haugen designou de “engenharia da linguagem”, definida como “le travail normatif des académies et des comités, toutes les formes de ce qu’on appelle communément culture de la langue, toutes les propositions pour une réforme ou une standardisation de la langue” (citado por Lapierre, 1988:32)46.

Retomando a já referida relação de interdependência verificada entre a escola e o mercado de trabalho, verifica-se que é uma relação mediada pelas instâncias de legitimação e normalização da língua: as normas instituídas pelos académicos, certificando a gramática e a ortografia, actuam com uma verdadeira eficácia jurídica – transformada em despachos ministeriais e portarias –, que sujeita a avaliações em exames que dão acesso a certificados, comandam assim o acesso às posições no trabalho, logo, às posições sociais (cf. Bourdieu, 1982:33, nota 12).

O processo de standardização ocorre, segundo Bourdieu, enquanto dimensão de uma generalização homóloga das esferas económica e cultural. Retomamos a citação acima incluída: “il faut se garder de lui [l’intention politique] imputer la responsabilité entière de la généralisation de l’usage de la langue dominante, dimension de l’unification du marché des biens symboliques qui accompagne l’unification de l’économie, et aussi de la production et de la circulation culturelles” (Bourdieu, 1982:34-5). A nós parece-nos que a legitimação de uma dada língua enquanto acto político está a montante desta generalização económica e cultural, deste mercado linguístico – sendo um mercado o conjunto das

40 condições políticas e sociais de produção dos produtores-consumidores (cf. Bourdieu,1982:45). Quando mais adiante Bourdieu (cf. 1982:46) aponta o sistema de ensino como instituição com o monopólio da produção massiva de produtores-consumidores (logo, o monopólio da reprodução do mercado do qual depende o valor social da competência linguística), indica como consequência a hegemonia da língua oficial no mercado linguístico, composto também de algum modo pelas línguas minoritárias. Assim: “ceux qui veulent défendre un capital linguistique menacé, comme aujoud’hui en France la connaissance des langues anciennes, sont condamnés à une lutte totale: on ne peut sauver la valeur de la compétence qu’à condition de sauver le marché” (Bourdieu, 1982:45).

Veremos agora os processos de construção cultural dos elementos do nacionalismo. O paradoxo já referido por B. Anderson de que as nações embora modernas reclamem uma antiguidade ancestral e um carácter de naturalidade, é também sublinhado por E. Hobsbawm (1984a:22-3 e 1996:256 e 259), que aplica o conceito de “tradição inventada” aos fenómenos que lhe estão associados, designadamente o nacionalismo, o Estado nacional, os símbolos nacionais, ou as interpretações históricas: assim a nação não é natural nem ancestral. Uma tradição inventada distingue-se, quer do costume das sociedades ditas tradicionais, quer das convenções ou rotinas geralmente criadas por necessidades pragmáticas e que não possuem qualquer função simbólica. As tradições inventadas nascem geralmente por reacção a transformações sociais rápidas a que as instituições não logram adaptar-se, e são conjuntos de práticas de natureza ritual ou simbólica com um intuito ideológico, na medida em que (1) se pretende que inculquem valores e normas pela repetição, e que (2) tentam estabelecer uma continuidade com um passado histórico. Pode ocorrer que sejam utilizados elementos antigos para novos propósitos, ou que se criem símbolos e elementos novos (cf. Hobsbawm, 1984a:9- 15). Uma característica fundamental é que “toda [a] tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das acções e como cimento da coesão grupal” (Hobsbawm, 1984a:21).

Hobsbawm distingue analiticamente as de tipo oficial, que têm carácter político e são geradas pelos Estados ou por movimentos sociais e políticos organizados, e as de tipo não-oficial, de carácter social em vez de político, em virtude de não ser esse o âmbito dos seus objectivos e acção (cf. 1984b:271). Registando uma produção massiva de tradições no período compreendido entre 1870 e 1914, o autor analisa o primeiro tipo referido no âmbito de Estados na Europa e das Repúblicas no continente americano, que adquirem símbolos, instituições e práticas oficiais traduzidas num cluster composto por uma capital, uma bandeira, um hino nacional, e uniformes militares – partindo de modelos como o do hino britânico, datado de cerca de 1740, e da bandeira tricolor francesa (cf. também Smith, 1996:116, que refere que os exemplos pioneiros dos estados britânico, francês e espanhol haviam de há muito sido influentes para a formação das nações modernas).

Como já referido, a padronização quer da administração, e das leis como consequência directa, quer da educação oficial, cria uma sociedade de cidadãos, em que a implementação crescente do

41 sufrágio (tendencialmente) universal47 se constitui um elemento fundamental da vida social cívica e

política: “A ampliação do progresso da democracia eleitoral e a consequente aparição da política de massas, portanto, dominaram a invenção das tradições oficiais no período de 1870-1914. O que tornava isso particularmente urgente era a predominância tanto do modelo das instituições constitucionais liberais quanto da ideologia liberal” (Hobsbawm, 1984b:275-6).

Ou seja, como garantir o apoio dos cidadãos ao Estado, no período de revoluções, do liberalismo, do nacionalismo, da democratização e da ascensão dos movimentos operários? (cf. Hobsbawm, 1998:82). Em substituição dos antigos alicerces sociais como a Igreja e a Monarquia “havia que construir-se uma ‘religião cívica’ alternativa” (Hobsbawm, 1984b:277) de acordo com a expressão de Rousseau (Hobsbawm, 1998:80-1)48. Particularmente elucidativo foi, no período em análise, o caso da III República francesa (1870-1940), com as três inovações fundamentais: (1) a escola primária enquanto equivalente secular da Igreja, agente de transmissão de princípios republicanos através do papel basilar do conteúdo dos manuais escolares; (2) a instituição de cerimónias públicas, sendo a mais importante o Dia da Bastilha; (3) a construção massiva de monumentos públicos por todo o país, essencialmente a imagem da República (na figura de Marianne) e figuras civis locais simbolizando patriotismo, mas também as ostensivas edificações da Place de la République e da Place de la Nation em Paris (cf. Hobsbawm, 1984b:279-81).

Também no caso alemão, no Segundo Império após a unificação de Bismark de 1871, é reveladora a construção de edifícios e monumentos para “estabelecer uma nova interpretação da história alemã, ou antes uma fusão entre a «tradição inventada» mais velha e romântica do nacionalismo alemão pré- 1848 e o novo regime” (Hobsbawm, 1984b:282). Destaca-se o novo edifício do Reichstag (1884- 1894), ou a profusão de monumentos a Bismark, mas também as figuras do “Deutsche Michel” representando a nação não como um país ou estado, mas como “o povo” e o seu “carácter nacional”. Hobsbawm refere que “Michel” foi essencialmente um símbolo anti-estrangeiro, talvez não alheio à insistência nas comemorações do aniversário da guerra franco-prussiana de 1870-71, que se acompanhavam da “canção nacional” (Wacht em Rhein) caracterizada pela hostilidade à França (cf. Hobsbawm, 1984b:283-5).

47 Segundo Hobsbawm o sufrágio universaliza-se entre 1848 e 1898 sucessivamente na Suiça, Dinamarca, Reino Unido, Alemanha, França, Bélgica e Noruega, e entre 1901 e 1914 na Austrália, Finlândia, Áustria, Suécia, Itália e EUA (cf. 1984b:275). Contudo, estes dados não especificam os casos do sufrágio feminino.

48 Rousseau refere a necessidade social de uma religião laica, que designa por Religião Civil, “feita não propriamente de dogmas de religião, mas de «sentimentos de sociabilidade sem os quais é impossível ser um bom cidadão e um subdito fiel» (J. Alves, 2012:25-6). Sobre a necessidade de construção dessa religião cívica alternativa diz ainda Hobsbawm (1984b:277): “Tal necessidade foi o núcleo da sociologia de Durkheim, trabalho de um dedicado republicano não-socialista”; noutra obra (Hobsbawm, 1998:82) diz “A sociologia que brotou nos últimos vinte anos do século XIX era, em primeiro lugar, uma sociologia política