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Línguas Imaginadas: Línguas Internacionais Auxiliares

A ideia da necessidade de uma língua universal é um desígnio antigo, talvez da mesma idade da percepção dos obstáculos decorrentes da diversidade linguística. Como refere Archibugi (2005:537-8), aquela necessidade parece avivar-se periodicamente na história europeia e mundial quando há convulsões e revoluções. Em Paris em 1848, Gustave Flaubert (em L’Éducation Sentimentale [1869])

,

reportava um debate sobre a procura de uma língua que pudesse ser um meio de comunicação da “Nova Europa”, “uma língua única para a democracia Europeia”, talvez um idioma morto ainda que modernizado, como o Latim; contudo, este recurso exclusivo da elite aristocrata, intelectual e religiosa proporcionaria uma pretensa democraticidade, colidindo, por outro lado, com antigas aspirações do Francês a língua universal, quer pela versão inflamada da Revolução de 1789, quer depois pela acção imperialista de Napoleão.

Um recurso linguístico comum revelou-se necessário já nos congressos da paz do século XIX (em que a maioria dos discursos foi proferida em Francês), como também nos fóruns internacionais dos operários: Marx escreveu o discurso da AIT em Inglês e Alemão, e a língua dominante da Internacional Socialista era o Alemão, para descontentamento dos membros francófonos. Os primeiros quatro congressos da Internacional Comunista recorreram a uma miríade de intérpretes numa longa cadeia que causou distorções (cf. Archibugi, 2004:541-2). A questão linguística foi desde cedo reconhecida e debatida naqueles fóruns, como lembra Stefano (2010:100):

116 En el Congreso de la Asociación Internacional de Trabajadores realizado en Lausana, en Setiembre de 1867, 64 delegados – representantes de Inglaterra, Italia, Bélgica, Alemania, Suiza y Francia, y de una notable variedad de gremios, oficios y profesiones – aprueban una resolución en la que sostienen: “El Congreso acuerda que una lengua universal y una reforma de la ortografía constituirían un beneficio general y contribuirían a la unidad de los pueblos y a la fraternidad de las naciones”.

Como vimos no subcapítulo anterior, a crescente diversificação dos cenários globalizados e transnacionais intensifica a diversidade linguística. As organizações internacionais governamentais e não-governamentais enfrentam necessariamente o problema da diversidade linguística, designadamente a UE, forçada a decisões sobre protocolos de comunicação entre membros de governos, funcionários europeus e cidadãos. Archibugi (idem:542) refere como no Fórum Social Mundial em Mumbai, em 2004, a tradução simultânea de 13 línguas foi realizada por profissionais em voluntariado.

A solução pragmática em contextos e situações multilingues tem sido conseguida através da mediação pontual de intérpretes e tradutores, ou ao recurso a línguas francas. Estas representam uma solução mais sistemática, mas nem por isso planeada, pois são resultado de factos vários como a tradição, a hegemonia política ou outros factores históricos. As línguas francas podem também ser chamadas auxiliares ou veiculares, e Eco (1996:18) enquadra nesta categoria as línguas naturais ou as gírias mais ou menos restritas que substituem as línguas naturais em áreas multilingues. A UNESCO em 1951 definia lingua franca como um idioma usado habitualmente por pessoas cujas línguas maternas são diferentes, de modo a facilitar a comunicação entre si (o Anexo A apresenta uma categorização das línguas para as principais situações de diversidade linguística, segundo a UNESCO). Curiosamente, como diz Steiner (1992:52), as componentes da expressão lingua franca provêm respectivamente do Latim e do Francês, línguas que se referem a dois momentos em que a Europa julgou ter uma língua única.

Assim: veja-se como o Latim Medieval foi língua eclesiástica durante séculos, e também língua das elites intelectuais, políticas e científicas, sendo em Latim que tantos autores escreveram pelo menos parte das suas obras, como Santo Agostinho (354-430), Dante Alighieri (1265-1321), Erasmus (1467- 1536), Copérnico (1473-1543), Ignacio de Loyola (1491-1556), Francis Bacon (1561-1626), Kepler (1571-1630), Descartes (1596-1650), Spinoza (1632-1677), e ainda recentemente Jacques Derrida (1930-2004) redigiu naquele idioma os seus discursos de aceitação de Honoris Causa na Universidade Oxford (cf. Walter, 1994:126).

Nos meios diplomáticos foi especialmente o Francês que subsistiu desde o século XVII (após o Tratado de Vestefália de 1648), até que o Inglês veio a partir do pós-1.ª Guerra Mundial tomar o seu lugar (cf. Lapenna et al., 1974:5-8; Forster, 1982:171; Santiago, 1986:18-20; Tonkin, 2004:2). Sobre a hegemonia da língua inglesa na actualidade já falámos no subcapítulo anterior, mas podemos referir

117 novamente este facto, a partir da observação de Eco (cf. 1996:307): se Hitler tivesse vencido a 2.ª Guerra, ou se os Estados Unidos da América tivessem sido reduzidos a uma confederação de pequenos Estados com um grau de força e estabilidade semelhante a outros países da América Central, não poderíamos supor que o lugar do Alemão fosse hoje o que é ocupado pelo Inglês?

Em contextos coloniais os idiomas dos colonizadores como o Português, Francês, Inglês e Espanhol foram tão dominantes que ainda actualmente são as línguas veiculares – e oficiais - da maioria dos novos países independentes, em virtude de uma diversidade linguística e dialectal muito característica daqueles territórios (e.g., González-Quevedo, 1997:226). Já o Swahili na África Oriental, é tipicamente a primeira língua falada entre dois estranhos, sendo também recurso habitual em mercados, na educação elementar, em publicações governamentais de tipo informativo, na rádio e no cinema: “New movies from India are often dubbed in Swahili and shown in towns and villages throughout Kenya, Tanzania, and Uganda” (Fishman, 2001). O Swahili é a língua mais importante do grupo Bantu, e é também falada como segunda língua por milhões de africanos, e foi, mesmo em momentos de profunda acção colonial, usado como língua franca; sofreu muitas influências árabes e latinas num quadro de sincretismo linguístico e cultural e mais recentemente esteve sob um programa de standardização através do Inter-Territorial Language Committee criado em 1930 na África Oriental. Esta língua foi na década de 1970 adoptada como língua oficial no Quénia, sendo que não estava associada a nenhuma unidade tribal no período anterior à independência nacional daquele país (cf. Eastman, 1975:132-3; Eco, 1996:18 e 309; González-Quevedo, 1997:226-7; Fishman, 2001). O Mandarim, o Hindi e o Russo são outros exemplos actuais de línguas francas em várias regiões do mundo (Archibugi, 2005:545).

Também de forma não planeada a mediação pode ser realizada através de “línguas de bricolage” que nascem espontaneamente do encontro de duas civilizações de língua diferente, como os Pidgin que surgem nas regiões coloniais: sendo supranacionais, todavia, são línguas parciais e imperfeitas que possuem um léxico e uma sintaxe extremamente elementares que servem apenas certas actividades também elementares como as transacções comerciais (são exemplo as centenas de English Pidgin que emergiram informalmente entre diversos grupos na Austrália, Caraíbas, Papua Nova Guiné e África Ocidental) (cf. Eco, 1996:18; Fishman, 2001).

A adopção deliberada de uma língua comum, com abrangência mais ou menos próxima da universalidade, pode seguir uma de duas vias essenciais: a selecção de uma língua existente, ou a criação de uma nova língua ou linguagem, isto é, pela escolha ou de uma língua “natural” ou de uma língua “artificial”. Todavia, em qualquer contexto, a selecção de uma língua existente traz consigo as marcas da sua proveniência nacional ou cultural, e é por isso que, olhando para a História, Sapir pode afirmar que o Francês não logrou permanecer a única língua da diplomacia, nem o Latim a língua internacional da ciência: “Ces deux langues n’ont pu se débarasser entièrement des implications nationales et religieuses qui s’attachaient à elles et – si elles ont paru, pendant une longue période,

118 apporter une solution partielle au problème – il faut avouer que, au sens le plus profond de cette expression, elles n’ont jamais constitué de véritable langue internacionale (Sapir, 1968 [1931]:102-3).

A história da criação de línguas planeadas é longa e diversa, inscrevendo-se numa “utopia ao longo de um período de quase dois mil anos” segundo Eco (1996:20), sendo que este autor apresenta uma categorização muito útil da “procura da língua perfeita” que englobou tanto as tentativas de redescoberta como de invenção de uma língua comum. Assim, temos (cf. Eco, 1996:16-20):

1. a redescoberta de línguas históricas, consideradas originárias ou misticamente perfeitas, como o Hebraico, o Egípcio ou o Chinês;

2. a reconstrução de línguas tidas como originárias ou línguas-mãe mais ou menos “fantasmáticas”, das quais a mais significativa foi o “modelo de laboratório” do Indo- Europeu;

3. as línguas mágicas, redescobertas ou construídas, que aspiram a uma perfeição proveniente de uma eficácia mística ou de um secretismo iniciático;

4. as que aqui nos interessam: línguas construídas artificialmente. Estas podem ter três objectivos:

a. perfeição em termos de função ou de estrutura, como as línguas filosóficas a priori dos séculos XVII e XVIII que “deviam servir para a expressão perfeita das ideias e para a eventual descoberta de novas conexões entre aspectos da realidade”;

b. perfeição em termos de universalidade, como as línguas internacionais a posteriori, do século XIX;

c. perfeição em termos práticos, “ainda que meramente putativos”, como as poligrafias125.

Eco refere ainda outros dois tipos de línguas artificiais. O primeiro tipo compreende as línguas romanescas e poéticas (como o Newspeak de George Orwell no romance 1984, ou as línguas das populações fantásticas de Tolkien, a que acrescentamos o Klingon, da saga fílmica Guerra das Estrelas126). Na maioria destes casos são fornecidas apenas partes de linguagem isoladas de um léxico completo ou uma sintaxe, mas que pressupõem uma língua. O segundo tipo integra as línguas oníricas dos “alienados”, dos estados de transe, ou das revelações místicas (cf. idem).

O episódio bíblico de Babel, do Génesis, parece constituir o primum movens de todos os sonhos de “restituição” da língua inicial e única: a língua de Adão. Tendo, por acção divina, sido destruída a

125Poligrafia é uma pasigrafia, i.e., o projecto de uma língua escrita ou um alfabeto internacional para o qual não se prevê execução verbal, que funciona como uma chave de descodificação das línguas pelo recurso a números ou sinais (vd. Eco, 1996:187-9 e Janton, 1973:9-11).

126 Sobre o Klingon: “it has its own translation of Hamlet (taH pagh taH be) (…), an Académie Française-style institute and journal, and a global network of devotees. D’Armond Speers, an American, spoke only Klingon to his son until he was three (his wife spoke English) (…) Nick Nicholas, a business analyst from Melbourne, Australia, speaks both Klingon and Esperanto” (“Tongues and grooves”, Economist, 8/6/2011).

119 Torre que os humanos construíram para se aproximarem do Céu, estabeleceu-se a confusão linguística: “Desçamos e confundamos de tal sorte a linguagem que não ouça cada um a voz do que lhe está mais próximo (…) e por isso lhe foi posto o nome de Babel, porque nela sucedeu a confusão da linguagem em toda a terra” (Génesis, 11, cit. por Eco, 1996:24)127.

A história das línguas perfeitas inclui uma série de insucessos, contudo, não é em si um insucesso:

os vários projectos não vingaram, mas deixaram como um rasto de consequências benéficas (…) muitas das teorias que hoje praticamos, ou muitas das práticas que teorizamos (das taxonomias das ciências naturais à linguística comparada, das linguagens formalizadas aos projectos de inteligência artificial e às investigações das ciências cognitivas), nasceram como efeitos colaterais de uma investigação sobre a língua perfeita (…) Por fim, analisando os vícios das línguas perfeitas, nascidas para eliminar os vícios das línguas naturais, descobriremos não poucas das virtudes destas últimas. O que será uma maneira de nos reconciliarmos com a maldição de Babel (Eco, 1996:34).

Da incontável apresentação de Eco, referiremos apenas alguns projectos que de algum modo remetem para o Esperanto, e aqueles que são historicamente relevantes, na sua maioria, por partirem de personalidades fundamentais do património cultural.

Encontramos em Dante Alighieri o primeiro projecto consistente de língua perfeita do mundo cristão medieval, denominado De Vulgari Eloquentia, e escrito provavelmente entre 1303 e 1305. Dante faz uma apologia das línguas vulgares – que se opõem ao Latim Escolástico, “perpétuo e artificial” –, e elabora uma norma ideal de referência para aquelas línguas, atendo-se à ideia de uma gramática universal. Defende um idioma “vulgar ilustre”, cujo exemplo máximo é a sua própria língua poética (cf. Eco, 1996:46-56 e 84).

Ramón Llull (c. 1232-1316), coevo de Dante, é um catalão nascido em Maiorca - na altura, encruzilhada das três culturas cristã, islâmica e judaica -, que escreve a maior parte da sua vasta obra em Árabe e Catalão, tornando-se o primeiro filósofo europeu a escrever textos doutrinais em língua vulgar. A sua ligação à Ordem Franciscana é determinante para os princípios da sua Ars Magna, que é um sistema de língua filosófica perfeita concebido como instrumento de conversão dos “infiéis”, ou seja, “é uma lingua que se pretende universal porque universal é a combinatória matemática que articula o seu plano de expressão, e universal o sistema de ideias comuns a todos os povos, que Lúlio [Llull] elabora no plano do conteúdo” (Eco, 1996:63). A utopia de uma concórdia universal entre populações de diversas etnias e religiões é uma característica fundamental do pensamento franciscano, assim, veja-se também Roger Bacon (1214-1294), membro daquela Ordem e contemporâneo de Llull,

127Existe uma incongruência com o Génesis 10, que conta que foram os descendentes dos três filhos de Noé que após o Dilúvio se estabeleceram em diversos territórios onde cada um teve a sua linguagem, as suas famílias e o seu povo particular, havendo neste caso, uma pluralidade linguística anterior a Babel. Eco diz que ao longo da história se encontrarão oposições entre Génesis 10 e 11, segundo os períodos e as posições teológico-filosóficas em causa (cf. Eco, 1996:25).

120 que atendendo igualmente a uma exigência universalista, deslocou um pouco a visão da relação entre as línguas e o contacto com os “infiéis”: não se trata de inventar uma língua nova, mas antes, da difusão do conhecimento das línguas dos outros povos, não apenas para a sua conversão à fé cristã, como também para que os seus conhecimentos possam ser apropriados pelos ocidentais. Dois séculos mais tarde Nicolau de Cusa (1401-1464), renovador do platonismo no período inicial do Renascimento, retoma o apelo à concórdia universal (cf. Eco, 1996:63-4 e 78).

A mesma utopia universalista de Llull e de Nicolau replica-se em Guillaume de Postel (1510- 1581), que entende que existe um único mundo, um único género humano, um Deus único, assim deve ter existido também uma só língua, i.e., uma “língua santa”. Defende a derivação de todas as línguas a partir do Hebraico, e afirma em De Orbis Terrae Concordia (1544, I) a importância da língua na instauração de uma concórdia universal entre todos os povos (cf. Eco, 1996:83-4). Naturalmente, baseando-se o pensamento cristão num Antigo Testamento escrito em Hebraico, houve na Igreja assunções de que esta língua seria o idioma primordial da humanidade, e a ideia de que possuía um carácter divino sobreviveu ao longo da Idade Média; contudo, o mundo pré-renascentista considerava o cristianismo “como correcção e derrogação da tradição judaica” (Eco, idem:87), e o debate renascentista foi multifacetado e complexo (cf. Eco, 1996:29, 82-3 e 87). Postel incorporou pois uma posição considerada ambígua, tendo condenado em várias ocasiões as perseguições aos judeus, e tendo falado na “judaicidade de todos os homens”, bem como de “Cristãos Judeus” e de “Judeus Cristãos” (idem:86). Tanto Llull como Postel sofreram directamente em resultado da defesa das suas convicções: de Llull diz Eco (1996: 64) “A lenda quer que (…) tenha morrido martirizado pelos Sarracenos, aos quais se apresenta munido da sua Ars como de um meio de persuasão infalível”; e Postel, julgado pela Inquisição, foi considerado insano e preso, vivendo depois em reclusão até à sua morte (idem:85-6). Falemos agora das línguas filosóficas a priori, fenómeno dos séculos XVII e XVIII. Constituem uma mudança de paradigma no sentido em que, se até este momento a busca da língua perfeita era inspirada por tensões religiosas, a linguagem filosófica que se pretende visa precisamente um afastamento do universo religioso pelo que este constitui de obstáculo ao progresso científico. Assim “é necessário identificar e organizar uma espécie de «gramática das ideias» independente das línguas naturais e que deve ser postulada a priori. Só depois de traçada esta organização do conteúdo será possível construir caracteres capazes de a exprimir (…) [O] trabalho do filósofo deve preceder o do linguista” (Eco, 1996:210). O facto de partir do espaço britânico a maioria dos apelos a uma língua universal, não se prende exclusivamente com questões expansionistas, como diz Eco. As outras motivações recobrem: o âmbito comercial, como a facilitação das transacções na Feira Internacional de Frankfurt; o âmbito educacional, dada a irregularidade da ortografia inglesa e dadas as primeiras tentativas de ensino linguístico dos surdos-mudos; as motivações religiosas, não apenas de difusão evangélica, mas também pela recusa do Latim, língua veicular dos eruditos mas identificado com a Igreja Católica (e um idioma difícil para os ingleses pela dissemelhança com a sua língua); e finalmente, e fundamental, o âmbito científico, por via da exigência de encontrar nomenclaturas

121 adequadas às descobertas do campo físico e natural, e numa recusa da linguagem alquímica precedente, marcada pela sobrecarga de imprecisões simbólico-alegóricas. Nesta categoria de línguas a priori podem ser inseridas as línguas formais com um âmbito de aplicação restrito como a química, a álgebra ou a lógica (vd. Eco, 1996: 19 e 199-200).

De acordo com o que mostrámos em capítulo anterior, o surgimento da ciência moderna enquadra a mudança paradigmática de que fala Eco. O nome de Francis Bacon (1561-1626) surge aqui como pedra angular, tendo inspirado os cientistas que meio século depois formaram a Royal Society, designadamente com a obra Novum Organum de 1620, que visa a crítica do Organum de Aristóteles. As suas grandes preocupações e contribuições prenderam-se com a renovação do método científico, acompanhadas de uma desconfiança científica da linguagem, pois esta é marcada pela existência de ideias falsas impostas por meio das palavras que são, ou nomes de coisas que não existem, ou nomes de coisas que existem mas que são confusa e parcialmente definidas. A sua mais arrojada proposta para ultrapassar o hiato entre as palavras e as coisas foi a criação de um corpo artificial de signos que emanassem da natureza das coisas e reflectissem as leis naturais de um modo racional e transparente. A linguagem universal e perfeita ou aperfeiçoada providenciaria um modelo lógico para a filosofia natural, um meio de controlo da imaginação, e um veículo para a preservação da ordem política. Trata- se da concepção de uma “terapia linguística”, que exercerá influência na filosofia anglo-saxónica, designadamente, em Thomas Hobbes e em John Locke (vd. Bauman e Briggs, 2003:19-20 e Eco, 1996:200-3). Então:

In De augmentis scientarium, Bacon outlined his proposal for such an artificial language based on real characters whose signification will be apparent to speakers of different languages, signs that would be connected by a logical grammar. Nevertheless, he largely left the construction of this model for modern communication to others, including members of the Royal Society (Bauman e Briggs, 2003:25-6).

Outra influência sobre o meio intelectual inglês aqui em análise terá sido a do humanista morávio Jan Amos Komensky (Coménio) (1592-1670). Em 1631 desenvolve em Janua Linguarum um manual de ensino do Latim, e mais tarde, a sua Pansophiae Christianae Liber III (1639-40) incorpora uma crítica aos defeitos das línguas naturais e apela a uma reforma linguística que elimine os adornos retóricos, fonte de ambiguidade, e que fixe com clareza o sentido das palavras usando um nome só para cada coisa, restituindo aos termos o seu sentido originário. Em 1657 propõe em Didactica Magna uma reforma do ensino que seria essencial por sua vez para uma reforma política, social e religiosa. Finalmente a Via Lucis, de 1668, apresenta uma visão utópica de um Concílio do Mundo que deve inspirar um Estado perfeito, no qual se falará uma língua filosófica, que denomina de Panglóssia: uma língua universal artificial que deverá superar as limitações políticas e estruturais do Latim (cf. Eco, 1996:203-5 e Janton, 1973:14).

Pela mesma época em que Komensky inicia as suas obras, em França as mesmas questões são abordadas e discutidas. Em 1629 René Descartes (1596-1650) recebe o projecto de uma “nouvelle

122 langue”, que lhe é enviado pelo padre Marino Mersenne. O autor era Des Vallées, um advogado, que declarara ter descoberto uma língua matriz que permtiria entender todas as outras. A análise de Descartes é céptica quanto à implementação de um sistema de escrita universal, e coloca o problema da vertente oral dadas as diferenças de pronúncia observáveis nas várias línguas; no entanto, julga possível a sua criação, se os nomes correspondessem a uma ordem das ideias ou dos pensamentos com a mesma lógica de que é dotada a ordem dos números. O postulado cartesiano de que uma língua universal depende da verdadeira filosofia será, a partir de 1650, muito influente (vd. Eco, 1996:205-7