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Recuando um pouco no tempo, falaremos agora dos casos galês e escocês. O caso galês analisado por Morgan (1984) mostra como no século XVI muitos aspectos da cultura, religião e administração adquiriam características anglicizadas: o sistema bárdico definhava, a cultura nativa ligada ao catolicismo extinguiu-se não tendo surgido no seu lugar uma homóloga cultura galesa protestante, o sistema jurídico local foi extinto e o Galês foi banido do âmbito administrativo; e embora as classes do

43 funcionalismo público ainda falassem a antiga língua, a sua orientação cultural era tendencialmente inglesa ou marcada por padrões europeus ocidentais. A denominada renascença galesa - ou restauração da antiguidade - no século XVIII foi desenvolvida por patriotas e estudiosos galeses que redescobriram as velhas tradições históricas, linguísticas e literárias, criando maioritariamente um passado efabulado e mitificado (cf. Morgan, 1984:53-4).

Foi fundamental a reabilitação dos eisteddfodau: os congressos anuais de bardos que tinham sido um conjunto de concursos de música e poesia sob a égide de uma Ordem dos Bardos realizados entre o século XII e o XVI. Retomados em 1700 por iniciativa de um gramático e escritor de almanaques, só no fim do século foram restaurados em ligação com as sociedades galesas que se multiplicam nos dois séculos seguintes enquanto espaços de vida literária, mas também com importante ênfase na música e na sua restauração através da reabilitação da harpa (idem: 67-72 e 84-9).

Todo o passado é apropriado de modo mais ou menos criativo, designadamente, na instituição de trajes e símbolos nacionais, na redescoberta do passado celta e na grande paixão pelas lendas druidas, e pela característica romantização da natureza, em que as montanhas agrestes outrora sentidas quase como castigo divino tornam-se símbolo de fortaleza ou defesa nacional. Como noutros movimentos românticos, há figuras que assumem um papel central, destacando-se em Gales a pessoa de Iolo Morganwg (1747-1826), que chegou a forjar documentos relativos a um dos heróis então recriados: Madoc, filho de um príncipe do século XII que tendo viajado de navio, desapareceu no mar. A antiga lenda de que teria descoberto a América foi então reavivada, o que levou grande número de galeses a emigrar no século XVIII, no rasto daqueles descendentes que falariam Galês (idem:93-4). Então: “Iolo tinha verdadeira obsessão pelos mitos e pela história, e a partir do interesse pelo druidismo no século XVIII ele inventou a ideia de que os bardos galeses eram os herdeiros dos antigos druidas, haviam herdado deles os rituais e ritos, a religião e a mitologia (religião que era uma mistura do unitarismo de Iolo e do culto à natureza típico do século XVIII)” (Morgan,1984:71).

Em ligação com a vida religiosa, a reabilitação da língua galesa é um eixo fundamental da renascença cultural. Tendo o papel do Galês na igreja anglicana diminuído no princípio do século XVIII, um crescimento simétrico é verificado nesta língua relativamente à literatura metodista e a um trabalho linguístico muito intenso (como também refere Lapierre, 1988:22: “se sont les baptistes et les méthodistes qui ont alors publié des journaux et favorisé une littérature en langue vernaculaire”). Muitos autores começavam a acreditar que o Galês era uma língua pura, e entre eles havia quem achasse que era a mais antiga da Europa, talvez do mundo - ao contrário do Inglês, uma língua “mestiça”. Era também considerada riquíssima, facto corroborado pela publicação numerosa de gramáticas e de dicionários, que também tinham um tamanho crescente (cf. Morgan,1984:80-2). Em 1764 Rowland Jones publica Origin of Language and Nations, e do mesmo autor, publicam-se os livros sobre o fundador epónimo de Cymru (Gales): The Circles of Gomer e The Ten Triads, todos eles

44 “dissecando indiscretamente e sem qualquer método as palavras galesas com o objectivo de mostrar que o galês era a raíz de todas as línguas” (idem:82)49.

Com certeza entre os românticos houve muitos intelectuais honestos, mas o contributo mirífico de alguns daqueles não é de descurar, não apenas em Gales:

O País de Gales não dispunha de uma rede de instituições culturais ou académicas para verificar e avaliar os mitos e as invenções com base na crítica (…) Os manuscritos (…) estavam quase todos trancados em bibliotecas particulares, e poucos deles eram publicados (…) Foi exactamente esta falta de instituições aptas e críticos abalizados que tornou possível a Macpherson defender os seus poemas de Ossian na Escócia, ao Barão Hersart de la Villemarqué (Kervarker) compor seus poemas bretões antigos falsificados contidos em

Barzaz Breiz, ou a Vaclav Hanka publicar [o] seu manuscrito tcheco medieval forjado, o Kralodvorsky Rukopis. Hanka escreveu-o apenas dois anos depois que Ossian havia sido traduzido para o tcheco, e só foi

desmascarado meio século ou mais depois, por Thomas Masaryck (Morgan, 1984:108-9).

O caso escocês referido por Morgan é analisado por Trevor-Roper, que se detém no movimento de criação de uma ancestralidade escocesa elaborada em fins do século XVIII e início do século seguinte. Começou pela reclamação de uma antiguidade e especificidade cultural das Highlands que de facto pertence à Irlanda, uma vez que os escoceses foram emigrados irlandeses, não sendo até meados do século XVIII, mais que uma colónia irlandesa, social e culturalmente (Trevor-Roper, 1984:25-6). O primeiro passo foi na década de 1760 a “fabricação” de uma literatura céltica escocesa por James Macpherson, criando poemas épicos atribuídos a Ossian, qual Homero celta.50 A base da obra foi

49 A mitificação da língua acompanha outras realizações pseudo-académicas, como a gramática e o imenso dicionário publicado entre 1795 e 1803, de William Owen (Pughe): “desejando recuperar no galês moderno a linguagem original dos patriarcas, Pughe construiu uma língua tão sólida e sublime quanto um mausoléu neoclássico (…) como tantos linguistas entusiastas do século XVIII emendava a ortografia para torná-la mais lógica, fazendo com que a cada letra correspondesse um único som (…) A nova gramática de Pughe exerceu influência considerável (e lamentável) sobre muitos escritores galeses do século XIX; deve lembrar-se que ele foi apenas um dos muitos que brincaram com a ortografia das línguas secundárias europeias (…) Felizmente os ministros anglicanos levantaram uma ferrenha resistência a qualquer desvio do galês utilizado na Bíblia desde 1588, e os pughismos limitaram-se à gramática e à estilística” (Morgan, 1984:83-4).

50 Esta fabricação literária teve a cumplicidade de John Macpherson através da edição de um Ensaio Crítico com “fundamentação histórica”; assim diz Trevor-Roper (1984:28): “Limpar a história escocesa das mentiras inter-relacionadas e desvirtuadoras tramadas pelos Macphersons – se é que se conseguiu removê-las inteiramente – foi trabalho para um século inteiro”. Assim em 1760 publica-se Fragments of Ancient poetry

collected in the Highlands of Scotland, depois em 1761 Fingal, an epic poem in six books together with several other poems composed by Ossian, the son of Fingal, translated from the Gaelic language by James Macpherson. Em 1763 a recolha Temora. O autor destas obras seria Ossian, guerreiro mais ou menos mítico

do século III que Macpherson transformou em poeta que, velho e cego, cantava os feitos do seu pai Fingal e seus ancestrais (cf. Walter, 1994:85).

45 sobretudo uma recolha, junto da população das Highlands, de relatos históricos, contos, lendas, poemas, e canções transmitidos oralmente através das gerações (cf. Walter, 1994:85 e Trevor-Roper).

Sublinha-se por outro lado também a criação do kilt, o termo forjado na altura para um traje recriado a partir do manto com cinto usado pelos montanheses e elevado a traje nacional, a que foi também atribuído um conjunto de padrões, forjados mas apresentados alegadamente como antigos distintivos dos vários clãs (cf. Trevor-Roper, 1984:28-50).

Estes autores naturalmente enquadram estes fenómenos de criação, recriação e aceitação alargada de tradições, em todo o espaço europeu, no “movimento romântico, o culto do bom selvagem que a civilização ameaçava destruir” (Trevor-Roper, 1984:35). Aliás, o “fenómeno de Ossian” é muito revelador, uma vez que o escândalo da impostura não impediu o rápido sucesso, com tradução em 10 línguas e honras fúnebres de sepultura do autor em Westmisnter, entre reis e poetas (cf. Walter, 1994:85-6). Walter (idem) diz que “L’influence des poèmes de Ossian a finalement pris de telles proportions qu’on a pu y voir l’une des sources les plus fécondes du mouvement romantique du XIXe siècle”, e elenca a sua influência, interesse ou inspiração em personalidades de áreas várias como a literatura, entre Byron, William Blake, Colerige, Goethe, Schiller, Lessing, Klopstock, André Chénier, Chateaubriand, Madame de Staël, Musset, Lamartine ou Stendhal; a pintura entre Ingres, Gérard, Gros e Girodet; e os músicos Beethoven, Brahmas, Haydn, Mendelssohn e Schubert. Finalmente também Napoleão Bonaparte transportava nas suas campanhas uma tradução italiana, dizendo: “J’aime Ossian pour la même raison que j’aime les murmures du vent et les vagues de la mer” (cf. Walter, 1994:86).

Smith fala na “redescoberta” do “passado étnico” levado a cabo pelos intelectuais nacionalistas, em duas dimensões fundamentais. A primeira torna visível a questão “onde estamos” pela transformação do espaço natural em espaço simbólico e poético, ou seja, reunindo os elementos simbolizados de uma terra natal ou pátria. Diz o autor: “A modern romantic historiography of the homeland turns lakes and mountains, rivers and valleys into the ‘authentic’ repository of popular virtues and collective history” (1996:120). A segunda dimensão refere-se à questão “quem somos” através do culto da “idade de ouro”, e na medida em que “descobre” os mitos das origens étnicas, define mapas e princípios morais para as gerações seguinte (cf. Smith,1996:117-22 e 1997:88).

As produções literárias, musicais e plásticas são meios fundamentais de transformação por um lado, da natureza em história poetizada, e por outro, dos artefactos culturais herdados em factos naturais do seu povo. Na sua linguagem conceptual, Smith fala da transformação da etnia demótica em nação cívica, num processo em que o povo se identifica com “as massas” e surge em substitição dos antigos heróis aristocráticos, ou seja, “at the centre of the self-appointed task of the inlelligentsia stood the rediscovery and realization of the community” (Smith, 1996:119). O autor fala assim de reconstruções étnicas enquanto tentativas nacionalistas de definição e orientação para modernas nações, exemplificando, entre outros, com o movimento irlandês de renascimento de um passado celta prévio à

46 conversão ao cristianismo de Saint Patrick, e com o movimento finlandês de afirmação contra a dominação sueca iniciada na década de 1830, e que partiu de uma recolha literária de poemas e baladas de uma época “perdida”, publicada em 1835 pelo médico Elias Lonnröt (idem:121-2).

Num sentido similar ao encontrado em Hobsbawm e outros historiadores na utilização do conceito de “tradição inventada”, também o antropólogo Anthony Cohen (2004) analisa processos de simbolização do passado – através da sua construção selectiva - em comunidades marginais dentro de Estados, ou em comunidades com experiências de colonização. Diz o autor: “Symbols of the ‘past’, mythically infused with timelessness, have precisely this competence [being ‘condensation symbols’ of norms, values and emotions], and attain particular effectiveness during periods of intensive social change when communities have to drop their heaviest cultural anchors in order to resist the currents of transformation” (Cohen, A., 2004:102). Cohen todavia explica que em Antropologia o termo “invenção” é menos recorrente devido à perspectiva de que a experiência do passado é sempre, individual e colectivamente, um “modelo” para a interpretação da realidade (cf. Cohen, A., 2004:99 e Geertz, 1975, The Interpretation of Cultures, em quem Cohen se apoia). Mas a ideia que mais importa sublinhar é a de que as comunidades que se sentem ameaçadas respondem através de uma reconstrução simbólica de fronteiras (cf. Cohen, A., 2004:76-7); subjacente a esta posição encontra-se a assunção de uma certa universalidade das funções das categorias humanas de leitura da realidade: “the boundaries of communities perform the same function as do the boundaries of all categories of knowledge” (Cohen, A., 2004:14).

1.2.3 Ditaduras europeias

Noutra obra, Hobsbawm (1998) detém-se no “apogeu do nacionalismo”, entre 1918 e 1950. Neste período situam-se os governos totalitários e as ditaduras – que na península Ibérica se alongaram pela década de 1970. Este enquadramento nacionalista mais radical terá consequências dramáticas para a história de uma língua de carácter internacional e internacionalista como o Esperanto, e para os seus defensores. Começamos por analisar o nacional-socialismo alemão, paroxismo de ideias românticas e biologistas.

Inicialmente o nacionalismo romântico poderia ser considerado “benigno”: defendia o valor e respeito pela idiossincrasia das culturas camponesas contra as tendências centralizadoras dos modelos cortesãos de Versailles, ou o comercialismo e empiricismo britânicos em particular, e contra o universalismo do Iluminismo no geral (cf. Gellner, 1994:27). Assim, seria legítimo ou preferível que o indivíduo se realizasse na música e dança rurais, em vez de rivalizar com a cultura aristocrática, enraizada na classe guerreira. Estes traços podem ser fundamentalmente encontrados no trabalho do filósofo Johann G. von Herder (1744-1803), na sua defesa de que a cultura de um povo está codificada nos seus textos tradicionais e vernaculares, sendo essas tradições (intertextualmente constituídas) os