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Processos de Globalização e Transnacionalismo

Retomamos O Manifesto do Partido Comunista onde encontramos uma análise dos processos do capitalismo enquanto relação de interdependência entre as nações: “A burguesia, pela sua exploração do mercado mundial, deu uma forma cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países (…) Em lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, surgem um intercâmbio generalizado e uma dependência generalizada das nações entre si” (Marx e Engels, 1989 [1848]:64).

Aqui está em causa o embrião de um processo de crescente internacionalização da produção de bens e serviços e dos mercados financeiros que percorreu o século seguinte e se intensificou nas suas duas últimas décadas. São fenómenos que ultrapassam a iniciativados Estados, na medida em que são protagonizados por actores internacionais - designadamente as empresas multinacionais -, e contaram com a adjuvação da revolução na informação (vd. Schiller, 1989:122; Tomlinson, 1991:175; Derk et al., 1998:288; Archibugi et al., 1998:1; Held e McGrew, 2002:1-6; Santos, 2003:433). Diz Habermas (1996:292): “With the internationalization of financial, capital and labour markets (…) the national legislation and administration have no longer an effective impact on transnational actors, who take their investment decisions in the light of comparing relevant production conditions on a global scale”. O termo “internacionalização” pode ser usado como alternativa a “transnacionalização”, ainda que o termo “internacional” remeta para uma relação binária entre a política doméstica e as relações internacionais, enquanto “transnacional” refere um âmbito mais global (cf. West, D. 2013:130). Tomlinson (1991:177) recorre a Frederic Jameson102 para localizar as coordenadas da expansão do capitalismo em três fases: a primeira no espaço dos mercados nacionais, a segunda no cenário do conjunto dos impérios europeus, e a contemporânea que cria um sistema global presente nas redes

92 complexas da finança internacional, na produção capitalista multinacional, e também no âmbito da experiência cultural que estes produzem, constituindo por isso um novo “espaço cultural”.

Este complexo processo de internacionalização, não sendo directamente controlado pelos Estados – nem produto de um desenho político -, é considerado por isso como não organizado, e produz consequências não esperadas, sendo a mais destacada o conjunto dos efeitos ambientais, também globalizados. Por outro lado, não implica necessariamente que a existência dos Estados esteja ameaçada (Held e McGrew, 2002:6; Giddens, 1992: 59-60; Archibugi et al., 1998:1; Calhoun, 1994: 307; Finnemore, 1999:165. Tomlinson, 1991: 175 cita também John Urry e S. Lasch (1987) The End of Organized Capitalism). Para além dos riscos ambientais, outros riscos assumem âmbito global, como os financeiros e a ameaça de terrorismo, e deste modo, os meios de garantia da segurança a nível nacional já não se circunscrevem ao espaço delimitado pelo Estado, mas podem ou devem exigir cooperação internacional (vd. Beck, 2007:52-4). Diz Beck (2007:54): “O único meio de enfrentar o terrorismo global é o mesmo que deverá ser utilizado para fazer frente ao aquecimento global, à imigração ilegal, à deterioração da cadeia alimentar e ao crime organizado. Em todos os casos a segurança nacional passa pela cooperação internacional, à semelhança do que acontece com os riscos financeiros globais”.

Há autores que tendem a fundir ou equivaler os conceitos de globalização e de capitalismo global. Held e McGrew analisam a posição dos autores que denominam de cépticos, que vêem no discurso da globalização uma justificação e legitimação do projecto neoliberal global, um imperialimo ocidental sob novas formas de controlo multilaterais – como o grupo G7 e o Banco Mundial -, também entendido como Americanização ou Ocidentalização. São habitualmente análises marxistas ortodoxas, partindo do facto inegável que a maioria da população mundial não beneficia equitativamente do desenvolvimento económico (Held e McGrew, 2002:3-6; ver também Tarrow, 2006:27-8 e Tomlinson, 1991, Cultural Imperialism, uma discussão crítica do conceito de imperialismo)103. Segundo a análise

de Held e McGrew, aos cépticos opõem-se os globalistas, que tendem a conceptualizar o fenómeno numa perspectiva mais diacrónica, através de uma visão de mudanças estruturais que se verificam numa organização social transnacional ao longo da história - assim, referem-se à globalização enquanto conceito que mobiliza dimensões para além das mais imediatas orientações económicas, e numa visão mais sistémica é entendida como um fenómeno que não é apenas contemporâneo (Held e

103 O imperialismo cultural tendeu a ser conceptualizado de quatro modos distintos: (1) como imperialismo dos média, por autores que atribuem uma centralidade excessiva aos meios de comunicação na cultura e vida social, como Jean Baudrillard e Stuart Hall; (2) como um discurso da nacionalidade, que olha para as culturas “indígenas”, naturais e autênticas, invadidas pelas culturas estrangeiras, e que está presente, por exemplo, no discurso da UNESCO; (3) como crítica ao capitalismo global, pela assunção da centralidade da cultura homogeneizadora do consumismo difundida pelo capitalismo global, segundo os neo-marxistas e Escola de Frankfurt; e (4) como crítica da modernidade, personificada na sociedade capitalista, segundo autores como Jurgën Habermas e C. Castoriadis, por exemplo (cf. Tomlinson, 1991).

93 McGrew, 2002:3-6; Archibugi et al., 1998:1, Calhoun, 1994:307, entre outros). Recorrendo pela última vez a Marx e Engels, vemos que a interdependência que estes autores entreviam entre as nações ultrapassava a esfera económica: “E tal como na produção material, assim também na produção espiritual. Os produtos espirituais de cada uma das nações tornam-se bem comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais vão-se cada vez mais tornando impossível, e das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial” (Marx e Engels, 1989 [1848]:65).

Sobre esta assunção, Smith (1990:171) refere-se a uma internacionalização das culturas literárias, e Mitchell Cohen (1995:226) terá falado no facto de Marx entender a futura realidade como uma cultura universal, dado que o proletariado era visto como a classe universal104.

Veja-se que Michael Mann também acentua tanto o carácter eminentemente cultural como o seu percurso histórico:

Transnational relations are not merely “postmodern”: they have always undercut the sovereignty of all states (…) Capitalism was specialy transnational in its early industrial phase (…) [and] finance capital usually remained highly transnational. The cultural identity of this “civil society” was not just – or even primarily – “Britain”, “France” or “Spain”. It was also “Christendom”, “Europe”, “the West”, and “the white race”. Cultural artefacts also diffused transnationally as “the Romantic movement”, “the realist novel”, the “Victorian” furniture style, the symphony orchestra, opera and ballet, “modernism” in art and design, and now soap operas, jeans, rock music, and postmodern architecture. National sovereignty was always undercut by both capitalist and cultural transnationalism (Mann, 1996:298).

Os movimentos operário e anarquista são os melhores exemplos de transnacionalismo, como também o movimento contra a escravatura que da Inglaterra se difundiu a França e à Holanda (vd. Tarrow, 2006:3-4105, vd. também West, D., 2013:128), e a própria difusão do nacionalismo como vimos com Anderson, que se estendeu da Europa para os países que ela colonizou. Uma das questões que se coloca sobre a discussão actual da globalização é se se trata de um processo que assume características diferentes e mais acentuadas por comparação com épocas anteriores; na verdade é possível afirmar que a globalização teve início com a expansão da Europa no século XV, para a qual os portugueses deram um contributo pioneiro (Anderson diz que dos europeus, os portugueses foram os primeiros conquistadores planetários, cf. 2006:59).

104M. Cohen refere-se a dois paradigmas marxistas do nacionalismo: o primeiro surge em 1848 no Manifesto do Partido Comunista, onde se entende que o curso do capitalismo conduzirá à erradicação do nacionalismo; num segundo momento, após 1848, defende-se que o nacionalismo é sustentado pelo capitalismo, distraindo os trabalhadores dos seus interesses de classe, e levando a uma intensificação de conflitos entre as nações. Apesar da divergência, os dois paradigmas estão ligados pela insistência de que “os operários não têm país”, e pela noção de que as nações e as culturas nacionais são historicamente criadas (cf. Cohen, M., 1995:226). 105 Tarrow cita S. Drescher, 1987, Capitalism and Antislavery: British Mobilization in Comparative Perspective.

94 Se, como referimos, existe uma perspectiva de cepticismo, para quem a internacionalização é como que uma “serva” do capitalismo global, também existe outra mais benevolente que antevê os seus resultados democráticos (Tarrow, 2006:27): a internacionalização como um processo que impulsiona o mundo para uma sociedade civil global, um governo mundial (world polity), ou cidadania transnacional, na visão de autores como J. Boli e G. Thomas, J. Habermas, Archibugi et al., e Sousa Santos. Esta visão não é nova: Giddens (1992: 132) lembra que os primeiros autores que debateram a globalização no fim do século XIX, subestimando o grau de soberania dos Estados-nação, acreditavam que do desenvolvimento de interligações globais adviria um movimento para um governo mundial. Contudo, como dizem Held e McGrew (2002: 122-3), cépticos e globalistas concordam em alguns pontos: entre outros, a expansão do governo (governance) internacional em níveis regionais e globais (como a UE e o WTO); a expansão da quantidade e do papel de organizações intergovernamentais (como a ONU) e não-governamentais de tipo internacional (como a Cruz Vermelha); a expansão dos movimentos sociais; e, por outro lado, a crescente dificuldade de os Estados resolverem no futuro problemas de desigualdade global e injustiça social. Mas, diz Tarrow: “International institutions, regimes, and processes are not the expression of democracy, a global civil society, or a world polity: they are arenas in which conservative and progressive, global and antiglobal, religious and secular nonstate actors intersect” (Tarrow: 2006:28).

Como enquadramento basilar desta secção, faremos uma referência breve às propostas de Giddens e de Sousa Santos. Giddens entende a globalização como uma das consequências fundamentais da modernidade (cf. 1992:137). O processo de globalização é visível através do facto de as dimensões institucionais da modernidade, baseadas no poder económico, político e militar que concederam no passado a primazia ao Ocidente, deixarem de ser elementos distintivos entre os países do Ocidente e o resto do mundo (cf. 1992:39-40)106.

Giddens identifica as quatro dimensões da globalização, ligadas às instituições da modernidade, que são as seguintes: o sistema do Estado-nação, a economia capitalista mundial, a ordem militar mundial e a divisão internacional do trabalho (vd. 1992:55). Define a globalização como a intensificação das relações sociais de escala mundial, que ligam localidades distantes de modo a que eventos locais moldam e são moldados por outros ocorridos a grandes distâncias geográficas (cf. 1992:50). Similarmente, Sousa Santos entende a globalização como conjuntos diferenciados de relações sociais, que originam diferentes fenómenos de globalização; o autor diz que “Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso,

106 As quatro dimensões institucionais da modernidade identificadas por Giddens são: o capitalismo (a acumulação de capital no contexto de mercados concorrenciais de trabalho e bens); o industrialismo (a transformação da natureza cujo efeito é a criação do “ambiente produzido”); a vigilância (o controlo da informação e supervisão social pelos estados); o poder militar (o controlo dos meios de violência no contexto da industrialização da guerra) (cf. 1992:46).

95 globalizações. A rigor, este termo só deveria ser usado no plural” (Santos, 2003:433). Giddens finaliza a conceptualização essencial da globalização apontando uma dimensão cultural:

um aspecto adicional e bastante fundamental da globalização, que se encontra por detrás de cada uma das várias dimensões institucionais (…) e que (…) podemos chamar globalização cultural. As tecnologias mecanizadas de comunicação influenciaram dramaticamente todos os aspectos da globalização desde a primeira introdução da imprensa mecânica, na Europa. Constituem um elemento essencial da reflexividade da modernidade e das descontinuidades que arrancaram o moderno ao tradicional. O impacte globalizador dos media foi comentado por numerosos autores quando se iniciou o crescimento dos jornais de grande circulação (…) A expansão global das instituições da modernidade seria impossível se não fosse a partilha de conhecimento que é representada pelas “notícias” (Giddens, 1992:60).

A abordagem de Sousa Santos é próxima da de Giddens: o autor entende a globalização como o processo de extensão a todo o globo da influência de uma determinada condição ou entidade local, sendo que a consequência é tornar potencialmente local outra condição social ou entidade rival (vd. Santos, 2003:433). É assim que a globalização pressupõe a localização (ver também Beck, 2002:23). Um exemplo deste processo, que é fundamental na discussão deste trabalho, é a constituição da lingua inglesa como lingua franca: “A sua propagação como língua global implicou a localização de outras línguas potencialmente globais, especialmente a língua francesa” (Santos, 2003:434).

Devido aos antecendes de dominação imperial e colonial, o Inglês tornou-se a mais importante das línguas “arqui-imperialistas” mundiais (vd. Forster, 1982:356; Tomlinson, 1991:28; Hobsbawm, 1998:38; Kim, 1999:148; Fishman, 2001; Anderson, 2006:18; Etzioni, 2008:119-20). É consensualmente a língua mais global de todas: “English language, [which] now serves as a kind of global-hegemonic, post-clerical Latin” (Anderson, 2006:207; ver também Tenbruck, 1990:204; Fettes, 1992:3; Fishman, 2001; Archibugi, 2005:545 e Etzioni, 2008:118). Mas uma análise mais fina permite afirmar que é o Inglês Norte-Americano e não o europeu que é ainda mais dominante (cf. Forster, 1982:356 e Steiner, 1992:52); Steiner refere-se ao Americano Creoulo ou Americano Comercial que organiza os computadores por todo o mundo e que é a língua que os cientistas têm que dominar, nomeadamente para a publicação científica (Steiner, 1992:52). Etzioni (2008:119) refere a título de exemplo dados de publicação científica em 1997: segundo informação do Science Citation Index, 95% de 925 000 artigos científicos publicados nos mais importantes periódicos foram redigidos em Inglês, ainda que apenas metade proviessem de países anglófonos. Trata-se de uma tendência com início após a 2.ª Guerra e que acelerou nas duas últimas décadas do século107. Etzioni também afirma que o Inglês

é a língua que um maior número de pessoas usa para comunicar entre fronteiras e culturas, sendo que quase um quarto da população mundial é fluente ou competente em Inglês108 (e é também a língua

107 B. Bollag, 2000, “The new Latin: English dominates in Academe”, The Chronicle of Higher Education, 47. 108 Etzioni cita David Crystal, 1997, English as a Global Language.

96 utilizada internacionalmente no controlo de tráfego aéreo). Fishman (2001) alarga aquele universo, alegando que cerca de um terço da população mundial usa o Inglês de alguma forma: “Never before in human history has one language been spoken (let alone semi-spoken) so widely and by so many” (Fishman, 2001). Já em 1931 E. Sapir se questiona sobre a possibilidade de adopção de uma língua internacional auxiliar – quiçá artificial -, afirmando que o Inglês ocupava já esse lugar, e continuaria provavelmente a ocupá-lo entretanto (cf. Sapir, 1931:99).

As circunstâncias históricas explicam o lugar também destacado de outras línguas no mapa linguístico global, que podem ser identificadas através da contabilização de publicações, como mostram as conclusões do relatório da UNESCO de 1980 Many Voices, One World, da International Commission for the Study of Communication Problems: mais de dois terços dos materiais publicados mundialmente ocorre nas línguas Inglês, Russo, Espanhol, Alemão e Francês109, sendo que se estima a

existência mundial de cerca de 3500 línguas faladas e 500 escritas (vd. Tomlinson, 1996:11).

Semelhante aos fenómenos de globalização da actividade mundial das multinacionais, do fast food ou da música popular norte-americanas, ou a adopção mundial das leis de propriedade intelectual ou das telecomunicações dos EUA, o referido fenómeno da globalização da língua inglesa é, na teoria de Sousa Santos, um “localismo globalizado”, ou seja, um dos quatro modos de produção da globalização. Outro modo é o “globalismo localizado”, que remete para as consequências das práticas e imperativos transnacionais em condições locais (sendo estas objecto de desestuturação e reestruturação no sentido de responder aos imperativos transnacionais); são exemplos os enclaves de comércio livre ou zonas francas, a disponibilização de tesouros históricos ou naturais para a indústria global do turismo, a conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação como parte do “ajuste estrutural”, alterações legislativas e políticas impostas pelos países centrais ou agências multilaterais (vd. Santos, 2003:435-6). Podemos dizer que estes dois modos de globalização se referem a uma “invasão” do local, respectivamente, por outro local, e pelo transnacional. “O sistema-mundo é uma trama de globalismos localizados e de localismos globalizados” (idem:436).

Estes dois modos de globalização são classificados pelo autor como hegemónicos (cf. Santos, 2003:438), sendo que se lhe opõem outros dois modos, contra-hegemónicos, ou por outras palavras, existe uma oposição entre a globalização neoliberal (do topo para a base) e a globalização solidária (da base para o topo) - já pudemos ver esta terminologia de “base” e “topo” nos teóricos anarquistas. Um dos dois modos é o que o autor designa de cosmopolitismo, ou seja, um conjunto “vasto e heterogéneo de iniciativas, movimentos e organizações” que se centram na luta contra a exclusão, contra a discrimação social, e contra a destruição ambiental que são produzidas pelos dois primeiros modos de globalização. O referido conjunto de actores age por meio das articulações transnacionais que a revolução das tecnologias de informação e comunicação permitiram; alguns exemplos destas

109 Sean MacBride (1980), Many voices, one World: Report by the International Commission for the Study of Communication Problems, Kogan Page/ UNESCO (cit. por Tomlinson, 1996:11).

97 actividades são redes de luta por direitos humanos mais ou menos específicos, de defesa ambiental, ou o emblemático Fórum Social Mundial realizado desde 2001, cuja primeira edição foi em Porto Alegre. Tal como Tom Nairn, que referimos acima neste Capítulo a propósito do internacionalismo operário, também Santos se socorre do termo “cosmopolitismo” sem qualquer vínculo às ideias universalistas que povoaram o mundo ocidental desde a antiguidade110. O cosmopolitismo é, para Santos, a

solidariedade transnacional entre grupos explorados, oprimidos ou excluídos pelos modos hegemónicos de globalização.

Finalmente, o último modo de globalização respeita a um conjunto de recursos fundamentais para a sustentabilidade da vida humana na Terra - e por isso, “patrimómio comum da humanidade” - que deveriam ser geridos pela comunidade internacional numa perspectiva temporal presente e futura, e que incluem a camada de ozono, a preservação da Antártida, a biodiversidade ou os fundos marinhos, e ainda a exploração espacial (Santos, 2003:436-7). O autor afirma que “o patrimônio comum da humanidade, em especial, tem estado sob constante ataque por parte de países hegemônicos, sobretudo dos EUA” (idem:437).

Como vimos acima na afirmação de Tarrow (vd. 2006:28), também Sousa Santos se refere à globalização como “um conjunto de arenas de interacção transnacional” (Santos, 2003:437). Esta discussão das lutas sociais, referida no contributo de Sousa Santos, será retomada no próximo Capítulo, relativo aos movimentos sociais.

Para o nosso enquadramento teórico, interessa-nos a discussão do papel e posição de uma língua global, em termos culturais e em termos políticos. No quadro globalizado que temos vindo a caracterizar, pode falar-se da existência de uma cultura global? E em que medida é possível falar de uma política mundial?

Featherstone na introdução à obra Global Culture (vd. 1990:1-2) faz a afirmação evidente que não é possível referirmo-nos a uma cultura global da mesma forma que nos referimos a uma cultura relativa a um Estado-nação, ou seja, uma cultura integrada num estado mundial. É sim possível falar de processos culturais que ocorrem tanto a nível internacional como a nível transnacional (no sentido em que transcendem a unidade estatal). Os processos culturais trans-societais são diversos, alguns dos quais precederam as relações entre os Estados, e outros sustêm o fluxo de pessoas, bens, imagens, informação e conhecimento, e que criam por sua vez processos de comunicação que ganham alguma

110 “Na modernidade ocidental, o cosmopolitismo está associado às idéias de universalismo desenraizado, individualismo, cidadania mundial e negação de fronteiras territoriais ou culturais. Estas idéias têm uma longa tradição no Ocidente e aparecem expressas de várias formas no ‘direito cósmico’ de Pitágoras, na

philallelia de Demócrito, na idéia medieval de res publica christiana, no conceito renascentista de

‘humanitas’, no dito de Voltaire de que ‘[é lamentável que] para sermos bons patriotas necessitamos de ser inimigos do resto do mundo’e, finalmente, no novo internacionalismo operário, socialista ou comunista do início do século XX” (Santos, 2003:436-7).

98 autonomia a nível global. Deste modo o autor refere a emergência de “terceiras culturas”, num sentido restrito de “cultura global”: “Hence there may be emerging sets of ‘third cultures’, which themselves are conduits for all sorts of diverse culture flows which cannot be merely understood as the product of bilateral exchanges between nation-states” (Featherstone, 1990:1). Trata-se de conjuntos de práticas, corpos de conhecimento, convenções e estilos de vida que são crescentemente independentes dos Estados-Nação, emergindo da necessidade de gerir a comunicação inter-cultural. O autor particulariza com dois exemplos: as instituições e protocolos do direito internacional, como o Tribunal Europeu de Justiça, e novas categorias profissionais em duas áreas - as que emergem com a desregulação e a globalização dos mercados financeiros (como advogados, consultores de gestão e de finanças), e os profissionais que trabalham nas indústrias culturais do cinema e vídeo, televisão, música, moda e publicidade (Vd. Featherstone, 1995: 90-1 e 114-5)111.

É enganador ver a cultura global como um enfraquecimento da soberania dos Estados-nação, e é também enganador ver a emergência das “terceiras culturas” como uma incorporação de uma lógica da homogeneização (Featherstone, 1990:1-2; ver também Smith, 1990:185; Calhoun, 1995; Mann, 1996: 295; Finnemore, 1999:165). Appadurai fala na tensão entre homogeneização e heterogeneização, sendo que a perspectiva estrita da homogeneização tende a centrar-se nas noções de Americanização e