• Nenhum resultado encontrado

O Advento da Globalização: a Teleologia Científica

K. Marx e F. Engels são, em 1848, eloquentes na descrição das características da globalização que começava a desenhar-se, ou seja, um fenómeno cujo primum movens se encontra no crescimento do capitalismo e industrialismo, personificado na burguesia, e aliado ao crescimento das comunicações:

o vapor e a maquinaria revolucionaram a produção industrial. Para o lugar da manufactura veio a grande indústria moderna; para o lugar da classe média industrial vieram os milionários industriais, os chefes de exércitos industriais inteiros, os burgueses modernos. A grande indústria criou o mercado mundial que o descobrimento da América preparara. O mercado mundial veio dar ao comércio, à navegação e às comunicações por terra um desenvolvimento imensurável. Este, por sua vez, veio reagir sobre a expansão da indústria, e na mesma medida em que a indústria, o comércio, a navegação e os caminhos-de-ferro se

70 expandiram, desenvolvia-se também a burguesia, que multiplicava os seus capitais e relegava para um plano secundário todas as classes que a Idade Média tinha legado (Marx e Engels, 1989 [1848]:62-3).

A atribuição destas transformações ao capitalismo que através da criação de forças de produção massivas produzem a “subjugação das forças naturais, maquinaria, aplicação da química à indústria e à lavoura, (…) navegação a vapor, caminhos-de-ferro, telégrafos eléctricos, arroteamento de continentes inteiros, criação da navegabilidade nos rios”, permitindo “populações inteiras brotando do solo” (Marx e Engels, 1989 [1848]:65), é também o reconhecimento inegável das aplicações da ciência e técnica. Vemos aqui os primeiros traços que vieram a definir o cenário do virar do século que Anderson (2005:3 e 2006: 54) denominou de pré-globalização dos transportes e comunicações, acrescida ainda do telefone, e do rádio, inventado em 1895. Vemos aqui também que o reconhecimento do papel da ciência e da técnica no aclamado progresso imprime à visão da humanidade um percurso evolucionista, como fica claro nestas palavras: “Pelo rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, pelas comunicações infinitamente facilitadas, a burguesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização” (Marx e Engels, 1989 [1948]:65). Finalmente, como corolário da globalização económica, ocorre a interdependências entre nações: “Em lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, surgem um intercâmbio generalizado e uma dependência generalizada das nações entre si” (Marx e Engels, 1989 [1948]:64-5).

O cenário europeu e norte-americano descrito no Manifesto do Partido Comunista por K. Marx e F. Engels é assim em grande medida o produto do papel das ciências desde a revolução científica do século XVII, que cria a visão de um universo governado por leis gerais cujo conhecimento permite a subjugação da natureza ao poder humano. Veja-se a britânica Royal Society, criada em 1662 para a promoção do conhecimento das “coisas naturais e das artes e experimentações úteis”:

The Royal Society was Britain’s preeminent scientific society, an institutional nexus for the cultivation and dissemination of a scientific ideology based on the rational, empirical pursuit of knowledge and the conviction that reason and science will yield universal laws and secure the progress of mankind, now freed from the shackles of traditional authority, blind faith, and superstition (Bauman e Briggs, 2003:2).

O desenvolvimento e supremacia desta visão e papel do conhecimento científico traça, desde o século XVII82 um caminho com ponto de chegada no século XIX ao conhecimento da sociedade:

82 A. Chalmers (1998:2) diz: “An influential claim is that, as a matter of historical fact, modern science was born in the early seventeenth century when the strategy of taking the facts of observation seriously as the basis for science was first seriously adopted”; ou diz “revolução científica do século XVII” (idem:247). Bauman e Briggs (2003:3 e 19) também referem o mesmo século. Já Sousa Santos (1993:5) toma o século XVI como marco do início da moderna ciência: “o século XVI, onde todos nós, cientistas modernos, nascemos”.

71 A consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no positivismo oitocentista (…) segundo este, só há duas formas de conhecimento científico – as disciplinas formais da lógica e da matemática e as ciências empíricas segundo o modelo mecanicista das ciências naturais (Santos, 1993:18).

O triunfo dos modelos de conhecimento do mundo natural torna-se hegemónico, na medida em que todo o conhecimento se torna subsidiário daqueles modelos - lógico, dedutivo, quantitativo, previsivo, utilitário e funcional – ou seja, torna-se extensível ao conhecimento da sociedade. Assim se verificou com as primeiras teorias sociológicas, entre as quais a de Auguste Comte (1798-1857), autor do termo “positivismo”, cujas palavras-chave são com certeza as de “evolução” e “progresso”. O positivismo é apenas uma face de um complexo que inclui o evolucionismo, e que tem um alcance mais vasto, contaminando para além das práticas científicas, também todas as visões da sociedade, a filosofia, a política, enfim, uma matriz que implica uma visão finalista e universalista da história e da humanidade, por via de um modelo final para o qual todas as sociedades tendem ou devem tender. Como dizem Bauman e Briggs (2003:3): “As part of the process of constructing modernity, European elites produced ideologies and practices and then elevated them to the status of universals that could be used in comprehending and dominating the rest of the world”, ou seja, a naturalização - e legitimação - de toda uma ideologia de racionalidade atribuída à supremacia do indivíduo branco, urbano, instruído, de género masculino, e consequentemente das suas práticas industriais, coloniais e imperialistas83. Estes dois autores citam Dipesh Chakrabarty que, na obra Deprovincializing Europe

(2000), sugere que tanto o colonialismo como as desigualdades contemporâneas entre ‘Primeiro’ e ‘Terceiro’ Mundos resultam de um processo de “desprovincialização” da Europa (cf. Bauman e Briggs, 2003:3); inúmeros autores partem desta crítica, como os que se inscrevem nos Cultural Studies, e muitos dos que inspiraram ou construíram os argumentos dos movimentos sociais de libertação negra ou feminina, invocando como que um “vírus”’ fundamentalmente racista e patriarcal no pensamento ocidental. Anderson (1996:2) lembra como os conceitos matriciais são, a partir do século XVIII – i.e., a época lançada com as revoluções -, entendidos globalmente: progresso, liberalismo, socialismo, republicanismo, democracia, legalidade, nacionalismo, até mais tarde o fascismo; Gellner (1994:27) lembra também que o universalismo foi um elemento matricial do Iluminismo.

Vejamos a teoria comteana, responsável pela cunhagem do positivismo enquanto princípio científico que se alarga à sociedade e à humanidade.

Na obra escrita entre 1830 e 1842, Curso de Filosofia Positiva, a primeira lição (Importância da Filosofia Positiva) dá conta da descoberta de uma lei fundamental do desenvolvimento da inteligência

83 Bauman e Briggs (2003:4) referem o processo de aceitação da ciência como modelo social: “In order for the discourse of leading scientists to become a model for transparency and order for speech and civil society, it took a lot of social work to construct a scientific realm and project it as authoritative and disinterested”.

72 humana nas diversas esferas de actividade ao longo do tempo: cada ramo do conhecimento passa sucessivamente por três estados teóricos diferentes, sendo eles, o estado teológico ou fictício (que compreende as fases do feiticismo ou fetichismo, do politeísmo e do monoteísmo), o estado metafísico ou abstracto, e o estado científico ou positivo (cf. Comte, 1989 [1842]:140 e 1989 [1944]:167-9). Mais tarde este princípio é retomado e desenvolvido em Lei dos Três Estados (da obra Discurso sobre o Espírito Positivo de 1844). Esta lei é observada pelo autor tanto no processo do conhecimento individual como no do conhecimento colectivo (sendo que se é teólogo na infância, metafísico na juventude, e “físico” na idade viril; note-se como o estado adulto é sinónimo de virilidade). Por isso, na sua concepção do conhecimento em etapas evolucionistas Comte afirma que “a filosofia positiva é o verdadeiro estado definitivo da inteligência humana” (Comte, 1989 [1842]:144).

Verifica então que o conhecimento não se apresenta no mesmo estado em todos os grupos humanos: “a maior parte da nossa espécie não ultrapassou ainda este estado [politeísmo] que persiste, nos nossos dias, na mais numerosa das três raças humanas, assim como na elite da raça negra e na parte menos desenvolvida da raça branca” (Comte, 1989 [1844]:169). Verifica também que não se apresenta no mesmo estado em todas as áreas científicas, e inclusivamente que falta na constituição definitiva da filosofia positiva a fundação das ciências sociais; esta “revolução geral do espírito humano” permitirá doravante que a filosofia positiva seja o resumo de “um só corpo de doutrina, homogéneo” (Comte, 1989 [1842]:163). Deste modo diz Comte:

Com efeito, nas quatro categorias principais de fenómenos naturais (…) – os fenómenos astronómicos, físicos, químicos e fisiológicos -, nota-se uma lacuna essencial relativa aos fenómenos sociais (…) a grande, mas evidentemente a única lacuna que se trata de preencher para acabar de constitutir a filosofia positiva (…) [e] nenhum fenómeno observável deixará de entrar em alguma das cinco grandes categorias desde então estabelecidas (…) Tornando-se homogéneas todas as nossas concepções fundamentais, a filosofia estará definitivamente constituída no estado positivo (…) tendo adquirido assim o carácter de universalidade que lhe falta ainda (Comte, 1989 [1842]:148-9)

A proposta visionária de Comte parte de uma grande preocupação com a questão da ordem nas sociedades. Atribuindo ao conhecimento científico um lugar basilar na sociedade moderna, o autor vê também que o lugar outrora ocupado pelas concepções teológicas possa ser doravante ocupado pela ciência, e assim, aos teólogos e à Igreja sucedem-se os cientistas e a ciência. Assim:

a filosofia positiva (…) pode ser considerada como a única base sólida da reorganização social que deve pôr termo ao estado de crise em que se encontram há tanto tempo as nações mais civilizadas (…) a grande crise política e moral das sociedades actuais decorre, em última análise, da anarquia intelectual (…) Enquanto as inteligências individuais não tiverem aderido, por um assentimento unânime, a um certo número de ideias gerais capazes de formar uma doutrina social comum, não podemos dissimular que o estado das nações ficará necessariamente revolucionário (…) e não comportará realmente senão instituições provisórias (…) Completando a vasta operação intelectual começada por Bacon, por Descartes e por Galileu, construamos

73 directamente o sistema de ideias gerais que esta filosofia é destinada daqui em diante a fazer prevalecer indefinidamente na espécie humana, e a crise revolucionária que atormenta os povos civilizados estará essencialmente terminada (Comte, 1989 [1842]:161-2 e 164).

Na concepção finalista comteana de uma sociedade “em ordem”é também fundamental a sua visão do papel, doravante anacrónico, do militarismo. Como refere R. Aron (1992:94-5), trata-se do século em que a riqueza depende não do saque, mas da organização científica do trabalho, pelo que as conquistas, perpetradas pela classe militar, não têm fundamento na sociedade positiva. O corolário lógico de uma teoria de fundamentos evolucionistas é a da concepção da unicidade da humanidade, sendo a sua etapa final a do positivismo universal, enquanto realização final. Assim diz Aron: “Se a ciência ou filosofia positiva é válida para todos os homens e se ao mesmo tempo a história é a da inteligência, concebe-se que deva ser pensada como a de um único povo” (1992:101).

A obra de Comte é um programa total que engloba a ciência e a educação84, a política, e a

substituição da religião por uma doutrina homóloga; vejam-se os títulos das suas obras: Programa dos trabalhos científicos necessários para a reorganização da sociedade (1822), Sistema de Política Positiva (1851-4) e Catecismo Positivista (1852). É assim que, significativamente, o programa positivista foi adoptado pelo Estado brasileiro no final do século XIX: o presidente Benjamim Constante fixou a Enciclopédia das Ciências Positivas como programa de estudos nas escolas oficiais, em 1880 foi fundado um Instituto do Apostolado e em 1891 no Rio de Janeiro inaugurado um templo positivista destinado à celebração do culto da Humanidade. Para além disso, a divisa positivista “ordem e progresso” está presente no pavilhão de fundo verde da bandeira brasileira, sendo que o verde era a cor das bandeiras positivistas (cf. Aron, 1992:133 na nota 27)85.

É visível uma afinidade entre marxismo e positivismo quanto à visão evolucionista subjacente à história humana: “ambos [marxismo e positivismo] partilham do mesmo optimismo teleológico, embora com diversas concepções da evolução: materialista e dialéctica, num caso, idealista, linear e acumulativo, noutro caso” (Braga da Cruz, 1989:IX). Este futuro anunciado seria também, em ambas as visões, tendencialmente pacífico: se Comte entendia que o estado positivo da humanidade seria pacífico, também Marx, embora por outra via, que seria a deposição do capitalismo, responsável pelo militarismo e pólo do antagonismo com o operariado - o responsável por essa mudança histórica86.

84 Diz Comte: “já excelentes espíritos reconhecem unanimemente a necessidade de substituir a nossa educação europeia, ainda essencialmente teológica, metafísica e literária, por uma educação positiva conforme ao espírito da nossa época e adaptada às necessidades da civilização moderna” (Comte, 1989 [1842]:158). 85 Na visão subsidiária das ciências físicas e naturais de Comte, a Dinâmica está subordinada à Estática, que

remetem para os termos “ordem” e “progresso”: “O progresso é o desenvolvimento da ordem” (cf. Aron, 1992:104).

86 Braga da Cruz é esclarecedor sobre o contexto da emergência da sociologia positivista: “[a] positividade da sociologia novecentista constitui [aliás] uma réplica à filosofia «negativa» ou à negação da filosofia, perpetrada pela dialéctica. Ou por outras palavras, a sociologia nasceu em pleno século XIX, como reacção

74 O positivismo, profundamente devedor do evolucionismo, implica uma visão universalista da história e da humanidade. Veremos depois como as premissas positivistas viriam a ser tomadas por certos esperantistas do início do século XX.